pub

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 02/02/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #83: Alexander Flood / Greg Spero / The Diasonics

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 02/02/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Alexander Flood] The Space Between / Stretch Music-Ropeadope

Quer, certamente, dizer alguma coisa o facto de Christian Scott aTunde Adjuah ter escolhido para primeiro lançamento alheio no seu selo Stretch Music (marca subsidiária da Ropeadope) o álbum de estreia do jovem baterista australiano Alexander Flood, Heartbeat, trabalho que foi lançado em 2019. Logo aí, o nativo de Adelaide combinava o seu pulsar mais orgânico no kit acústico com o recurso a máquinas como a icónica 808 da Roland de forma a afirmar uma particular noção de swing, capaz de admitir os ensinamentos tradicionais do jazz, mas igualmente aberto à exploração de outras formas de marcar o tempo rítmico, viajando entre ideias captadas em África ou na Índia com igual à vontade.

Agora, no arranque de 2022, Flood reforça a vitalidade da sua “voz” com um novo álbum, The Space Between, que procura, lá está, explorar esses tão misteriosos quanto excitantes espaços liminares que se abrem entre géneros, eras, práticas e culturas, em busca do que é novo e contemporâneo. O baterismo de Alexander Flood é sólido, mas não vistoso no sentido em que um Yusef Dayes pode ser vistoso quando dispõe cadências impossíveis em cima de métricas que parecem gizadas por inteligência artificial, tal a sua complexidade. A riqueza da sua arte parece residir antes no seu absoluto domínio do tempo e na subtil sofisticação que imprime aos diferentes balanços que ensaia com micro-detalhes de riqueza imensa. O álbum abre precisamente dessa forma, com um “simples” beat hip hop que vai sendo ligeiramente rendilhado com pormenores preciosos entrelaçados no trabalho de bombo e pratos enquanto a tarola agarra o tempo como se tivesse uma garra. Por cima do seu musculado padrão baterístico evolui depois Nelson Dialect, fazendo de “All For The Pocket” uma espécie de manifesto que aponta a direcção ao resto do álbum: graves fundos, um primeiro solo de piano a deixar claro o terreno em que esta música se move, flow curvilíneo por parte do MC de serviço, e uma deriva de guitarra que poderia chegar directamente de um disco de fusão dos anos 80. Quando “LDN” chega, já nos encontramos noutro planeta, e ainda é apenas a segunda faixa: escuta-se Josh Chenoweth no trompete a temperar uma aproximação ao swing tropical dos Azymuth que remete a peça para as pistas de dança com classe irrepreensível. 

Desenrola-se depois uma espécie de diário de viagem: com piscadelas de olho ao r&b embrulhado em seda (“Nostalgia”); aos estados pós-bop com o mentor Cristian Scott a flutuar de forma nobre numa nuvem de reverb; às baterias de escola de samba da Bahia; à África que existe no mundo (na belíssima “Starseed” em que brilha a cantora nova-iorquina Vivian Sessoms e também em “Umoja”, fantasia mutante movida a talking drums e a grave cataclísmico subtraído à 808); ao mágico e sedutor Médio Oriente (na incrível Kantra em que brilha Zayn Mohammed no oud); e tudo isso antes do regresso ao “jazz” fusionista (em “Goodmorning”) e do ponto final colocado no périplo chegando a uma estação orbital que parece sobrevoar todas as coordenadas antes exploradas (“Weighing of the Heart”). Ao longo dessa viagem, há pistas – umas mais óbvias, outras nem tanto – sobre a capacidade técnica de Flood, que consegue sempre injectar detalhes de requinte no seu personalizado ataque ao ritmo. The Space Between produz também suficiente mel melódico e harmónico na forma como os solos e os diferentes elementos musicais se combinam, procurando o colectivo fugir ao óbvio sem nunca evitar o mergulho no desconhecido. Alexander Flood está bem para lá de promissor.



[Greg Spero] Chicago Experiment / Ropeadope

A banda é de luxo: Greg Spero, pianista, guia um ensemble que inclui Makaya McCraven na bateria, Marquis Hill no trompete, Joel Ross no vibrafone, Jeff Parker na guitarra, Darryl Jones no baixo e ainda Irvin Pierce no saxofone tenor. Vários músicos que são líderes por mérito próprio, todos eles feras de capacidades mais do que comprovadas em inúmeras sessões e incontáveis palcos. O projecto é o quarto numa série que tem promovido encontros entre passado que é cultura e presente que quer ser futuro em diferentes pontos cardeais do mapa musical norte-americano: começou em 2001 em Filadélfia com o clássico The Philadelphia Experiment em que Questlove dos Roots dialogou com Uri Caine e Christian McBride e depois foi avançando com tomos dedicados a Detroit (2003) e Harlem (Nova Iorque, 2007). Quinze anos depois, volta a então a necessidade de experimentar, desta vez com condução assegurada por Greg Spero em sessões que se prolongaram por quatro dias de estúdio e para as quais convocou um elenco de figuras proeminentes da Windy City.

De certa forma, este The Chicago Experiment regressa à ideia original expressa com classe na experiência original de Filadélfia: a série não trata tanto de ensaiar colisões entre o jazz e outros géneros (estratégia talvez mais presente nos volumes de Detroit e Harlem), mas de testar a elasticidade do género numa era que consagrou outras cadências, porventura algo divergentes da noção clássica de swing. E nesse sentido, a escolha de Makaya McCraven para este novo volume revela-se tão certeira quanto a de Questlove foi em 2001. É que o homem que ainda recentemente se dedicou a “decifrar a mensagem” do catálogo clássico da Blue Note entende como poucos o pulso contemporâneo. E isso significa, como por exemplo se escuta em “Cloud Jam”, que McCraven possa na sub-cave do arranjo dispor uma cadência de intensa propulsão e de claro recorte contemporâneo e, ainda assim, que o trompete de Marquis Hill e o vibrafone de Joel Ross consigam enredar-se num terno e poético diálogo que parece pertencer a outro tempo. Mas o certo é que as duas dimensões temporais funcionam. Essa é uma estratégia que acaba por marcar boa parte do álbum. Os músicos, como se começou por sublinhar, são todos autoridades nos seus respectivos instrumentos e entendem bem a história criativa da cidade em que se inserem equilibrando, muitas vezes num mesmo tema (ouça-se “Maxwell Street”), a tradição que emergiu dos blues com episódios mais exploratórios da história musical de Chicago sem que o ensemble alguma vez permita esquecer-se que é a este tempo que pertence. E isso rende momentos de excelência nos solos de Parker, Ross, Hill ou Pierce, mas também generosas amostras da solidez da fundação que McCraven, Spero e Jones proporcionam ao longo das 11 peças do alinhamento. Tudo certo, aqui.



[The Diasonics] Origin of Forms / Record Kicks

“Funk Hussardo”, garantem eles. E “eles” são os Diasonics, um quinteto moscovita formado por Anton Moskvin (bateria), Maxim Brusov (baixo), Anton Katyrin (percussão), Daniil Lutsenko (guitarra eléctrica) e Kamil Gzizov (teclados) que subtrai o nome a uma marca nipónica de guitarras. Na verdade, o que os Diasonics oferecem em Origin of Forms é uma altamente personalizada e destilada fórmula desenhada a partir de elementos significantes extraídos do funk – tanto o clássico que derivou da invenção revelada ao mundo por James Brown como a sua declinação mais recente, sobretudo a que se impôs nas vias abertas pelos alemães The Poets of Rhytm e pelos americanos Dap Kings – mas a que são adicionados temperos extra refinados a partir de uma escuta atenta de obscuras bandas sonoras europeias dos anos 70, library music clássica (italiana, francesa e britânica), jazz etíope, psicadelismo turco e o que mais lhes aprouver. Da cuidadosa combinação de todos esses diferentes elementos nasce uma música de pronunciado carácter lúdico, elegantemente executada, cinematicamente dançante, evocativa de Rivieras imaginárias, de carros clássicos descapotáveis parados à porta de casinos de Montecarlo, de heróis de semblante carregado habituados a guerras frias e a paixões quentes. Se algum dia descobrirem uma banda que encaixe melhor no décor do Pérola Negra, por favor avisem.

pub

Últimos da categoria: Notas Azuis

RBTV

Últimos artigos