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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 18/01/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #81: Jeff Parker / Glenn Fallows & Mark Treffel

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 18/01/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Jeff Parker] Forfolks / International Anthem

Suite For Max Brown, o trabalho anterior de Jeff Parker como líder do projecto New Breed (já que JP’s Myspace Beats, apesar de ter sido lançado em 2021, reúne, como o título aliás indica, material de arquivo), foi por aqui alvo de atenção logo quando a aventura Notas Azuis começava a dar os primeiros passos. E nessa ocasião, parte do percurso criativo do guitarrista foi mencionado para efeitos de contextualização, destacando-se projectos como os Isotope 217, Tortoise ou Chicago Underground como vectores relevantes de uma carreira tão ampla quanto sólida. O alcance da arte de Parker extravasa, no entanto, os seus principais projectos, com o seu músculo colaborativo a ter múltiplas oportunidades de ser exercitado com frequência, como se pode constatar com a sua participação recente – e para efeitos ilustrativos tome-se apenas 2021 como exemplo – em trabalhos de Makaya McCraven, Steve Gunn, Theo Croker, Dion Kerr, Josh Nelson, Maria Elena Silva ou Dosh. 

Precisamente por essas razões, este Forfolks, meditativo e solitário trabalho para guitarra e loops, ganha especial relevância por oferecer uma renovada oportunidade de escutar de forma ainda mais atenta o trabalho de um artista que normalmente escapa aos holofotes. Em 2016, Jeff Parker apresentou-se de forma idêntica em Slight Freedom, trabalho em que alinhava visões de reportório alheio tão diverso quanto o que foi assinado por gente como Billy Strayhorn ou Frank Ocean. Desta vez, lado a lado com novas composições da sua lavra, encontra-se por aqui uma peça de Thelonious Monk (“Ugly Beauty”), uma pequena pérola do grande livro dos standards americanos, “My Ideal”, e ainda novas versões de “La Jetée” (composição gravada pelos Isotope 217 e também pelos Tortoise) e de “Four Folks” (tema que inspira o título do álbum e que data originalmente de 1995), ambos escritos igualmente por Parker.

A abordagem foi simples e a data das sessões de 28 e 29 de Junho de 2021 pode sugerir que este trabalho foi realmente consequência dos períodos de isolamento a que todos fomos sujeitos nos passados dois anos: Jeff usa o seu pedal de loops para criar bases sobre as quais sola em takes únicos pensados para reterem toda a liberdade e beleza do momento, facto amplificado (literalmente) por uma granular gravação em que o espaço – a casa do autor, na verdade – também representa um papel, ajudando a ancorar ainda mais o resultado final num momento e lugar específicos. Essa estratégia rende uma miniatura como a peça de abertura “Off Om”, espécie de declaração de intenções, ou a deriva de considerável fôlego que é “Excess Success” que se aproxima bastante dos 11 minutos. Em ambas – e, na verdade, em todas as outras peças – há uma luz idêntica, aquela que ilumina a sua emocional e discreta capacidade de alinhar ideias que dispensam demonstrações de virtuosismo, embora se amparem numa evidente segurança técnica. Só que Parker é um daqueles músicos cujo guitarrismo serve um propósito nobre: o de conjurar emoções por via de uma cuidada exposição de ideias melódicas que vai tecendo em espirais de encantamento como quem, pacientemente, constrói uma tapeçaria. E ao fazê-lo, de forma humilde, Parker não teme evocar mestres de outrora, de Wes Montgomery e John Fahey a Robert Fripp, em detalhes de imenso preciosismo que logo se esfumam para darem lugar a uma altruísta transparência que expõe o âmago de cada melodia muito mais do que os dedos que a executam. Este é, de facto, um disco para as pessoas. For folks. Todos nós.



[Glenn Fallows  & Mark Treffel] The Globeflower Masters, Vol. 1 / Mr. Bongo

Há uma linha comum que liga os trabalhos de gente como os Heliocentrics de Malcolm Catto, Adrian Younge, Sven Wunder ou, por exemplo, Calibro 35: tratam-se de mentes criativas obviamente fascinadas com um passado muito específico cujos trabalhos são como estudos de momentos concretos da história da música. Imaginem um pintor a quem é dado acesso privado a um qualquer grande museu – Louvre ou Prado ou National Gallery… – para assim se dedicar a minuciosamente estudar as obras-primas de grandes mestres do passado – eventualmente através da cópia de quadros clássicos – antes de se aplicar, usando as mesmas técnicas, ferramentas e pigmentos, na criação das suas próprias visões artísticas. Este The Globeflower Masters, Vol. 1 é mais uma conta para esse auralmente delicioso rosário.

Glenn Fallows e Mark Treffel, ambos baseados em Brighton, são músicos experimentados, com os ouvidos bem afinados para as marcas sónicas de outras eras. O primeiro regista passagens pelos Impellers, Emanative ou Andres y Xavi, o último passou pelos Blue States ou Soul Steppers. E pode-se pensar em todos estes projectos como os tais exercícios de mimetismo técnico por que os discípulos sempre passam na tentativa de captarem um pequeno vislumbre do génio criativo dos mestres. Para ambos, foi a forma conseguida de perseguirem a ideia do groove enunciada originalmente por James Brown e depois aplicada ao longo dos anos em diferentes contextos – mais soul ou mais jazz –, que lhes ditou esses passos. The Globeflower Masters, Vol. 1 é, pode dizer-se, e mantendo a comparação, a sua própria tentativa de criarem uma obra que possa ser inscrita no cânone que os inspira: o que foi escrito por quem nos finais dos anos 60 e alvores dos anos 70 do século passado criava, sobretudo na Europa, bandas sonoras para filmes que captavam a luz particular das costas mediterrânicas, para intrigas internacionais que invariavelmente passavam por Casinos e hotéis de luxo, e que, em gravações comerciais ou em produções para catálogos de selos de Library Music, assinavam obras que fundiam tradições orquestrais com os modernos pulsares do jazz, da soul, do psicadelismo e até de algumas cadências mais tropicais. Gente como – e não há problema em usar as certeiras referências sugeridas nas notas de lançamento pela Mr. Bongo, etiqueta que dá à estampa este trabalho – David Axelrod ou Piero Umiliani, como Jean Claude Vannier ou Ennio Morricone. E outros nomes, de Quincy Jones a Roy Budd, de Johnny Harris a Alessandro Alessandroni poderiam ser evocados. Fallows e Treffel, certamente, estudaram-lhes as nuances atentamente.

Usando as consideráveis capacidades de Glenn Farrow na guitarra, bateria e baixo e o arsenal de teclados e pianos de Mark Treffel, a dupla conjurou, recorrendo ao estúdio como laboratório, um álbum repleto de crime jazz e groove cinemático que bem poderia ter estado décadas escondido num conjunto de bobines analógicas gravadas algures na Riviera francesa, nas imediações da Cinecittà em Roma ou num dos massivos estúdios de sessão de Los Angeles ou Londres. As composições são elegantes e sofisticadas, polvilhadas com todo o tipo de deliciosos “toppings”: pianos e cravos eléctrico, guitarras adornadas com os pedais vintage certos e expressivas secções de cordas, tudo enquanto a bateria e o baixo fazem horas extra de forma a garantirem que as cabeças abanam na cadência certa para que a imaginação possa projectar no ecrã da nossa cabeça imagens tecnicolor de fantasias que metem carros descapotáveis, paisagens de postal ilustrado e gente vestida – ou não… – como se tivesse acabado de sair de uma produção de moda para a Vogue em 1966. Tudo certo aqui.

(Discos disponíveis na Jazz Messengers, loja situada na LX Factory, no espaço da Livraria Ler Devagar.)

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