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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 30/11/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #72: The Brkn Record / Thiago França / João Lencastre’s Communion

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 30/11/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[The Brkn Record] The Architecture of Oppresion Part 1 – Mr. Bongo

Dos Sault a Angel Bat Dawid, de Adrian Younge a Pink Siifu, dos Irreversible Entanglements a Mourning (A) Blkstar, de Tristany a Pretu ou Ikoqwe e Batida, muitas têm sido as mentes a pensarem a condição negra contemporânea, pintando retratos musicais diversos, mas com o traço comum de dispensarem as tonalidades mais “douradas”, retratos esses que são compreensivelmente informados pelo doloroso presente que o movimento #BlackLivesMatter tem procurado de alguma forma transformar.

Jake Ferguson, uma mente ultra-criativa que tem no currículo importantes álbuns criados enquanto parte de projectos como os Heliocentrics ou Soul Destroyers e trabalho de sessão para artistas como Skinny Palembe, DJ Shadow ou Lloyd Miller, oferece agora o seu contributo para essa discussão tão urgente quanto necessária com o fantástico The Architecture of Oppresion Part 1, álbum lançado com selo da Mr. Bongo.

Em termos musicais, Ferguson – que aqui assume, além de baixo e guitarras, vários sintetizadores, kalimba, outros pequenos instrumentos e ainda arranjos de cordas – explora aquele entusiasmante território em que o jazz, o psicadelismo, a library music, o funk e a electrónica pioneira se encontram em ambiente laboratorial que rende sempre passagens profundamente cinemáticas. A ajudá-lo há o incrível baterista Malcolm Catto, seu companheiro nos Heliocentrics, e ainda Raven Bush, que interpreta as partes de cordas. E por cima de tudo, um conjunto de artistas/ativistas/pensadores que assumem o lado poético e interventivo do projecto: Dylema, Jermain Jackman, Brother Andrew Muhammad, Lee Jasper, Yolanda Lear, Ugochi Nwaogwugwu, Janette Collins, Leroy Logan, Adam Elliot Cooper, Zara Mcfarlane e ainda Great Okuson e Sarah Solomon. Em diferentes registos, uns mais cantados, outros mais falados, ou simplesmente como resultado de reflexões tidas em frente a um microfone, estas vozes entoam histórias, fazem das feridas fontes de força e orgulho e pensam sobre o que significa nascer, crescer e viver com pele negra num sistema que as oprime, forçando-as à condição de vítimas.

O trio de peças que encerra o álbum é especialmente intenso. Em “Witness The Whiteness”, tema com Adam Eliott Cooper, há um discurso com profunda revolta no tom que é envolvido em diáfana e dramática textura ambiental, percebendo o autor que esse discurso, que parece ter sido captado de uma emissão de rádio ou TV, tem força por si só. E depois, o arranjo que se segue traduz essa mesma urgência numa psicadélica passagem que emana da sua vibrante linha de baixo (que soa a algo que se poderia escutar num filme policial dos anos 70) e que depois cruza cordas com declinação oriental, sirenes de polícia e demais sons que oscilam entre a tonalidade e a atonalidade e que parecem ilustrar o caos da grande cidade, o perfeito desenvolvimento que nos deixa todo o espaço para pensarmos na mensagem que acabou de nos ser transmitida. “Lifeline”, a peça que se segue, retira inspiração directa de “Venus in Furs” dos Velvet Underground, adaptando o seu obsessivo pulsar à interpretação de Zara McFarlane. E, finalmente, em “Reparations”, com o baixo a ditar novamente toda a tensão, é a ideia de música de cinema (pense-se em trabalhos de realizadores como Sidney Pollack e nas histórias que procuravam ecoar a turbulência política daqueles tempos pós-Watergate) que volta a impor-se, sublinhando uma vez mais o quanto Jake Ferguson é um compositor, produtor e arranjador capaz. 

A capa do álbum refere “Part 1” no título, algo que, tendo em conta a qualidade do trabalho aqui apresentado, é uma excelente notícia. Este é, sem dúvida, um álbum especialmente eficaz nos nossos auscultadores, a melhor forma de deixar não apenas que estas palavras ressoem, mas também que a música ilustre as densas e dramáticas imagens que elas sugerem.



[Thiago França presents A Espetacular Charanga do França] The Importance of Being Espetacular – Mais Um

Thiago França é um agitador incansável, seja como parte de Metá Metá ou como espécie de arma pouco secreta em discos de gente tão diversa quanto Rodrigo Brandão, Marcelo D2, Jards Macalé ou, entre tantas outras pessoas, Elza Soares.

Este ano, França regressou à sua Espetacular Charanga, projecto com que gravou já um par de álbuns (o último dos quais, Bomba, Suor e Bapho, em 2017), reunindo um vasto conjunto de músicos, sobretudo sopradores, como ele próprio (que aqui se escuta em saxofones alto e tenor), e percussionistas. Entre as vozes convidadas descobrimos Lucas Santtana, Juçara Marçal ou Tulipa Ruiz, todas capaz de assumir o lado festivo que a música impõe. O próprio Thiago França encarrega-se dos arranjos e até de algumas composições. Uma das excepções é uma extraordinária leitura de “Don’t Stop ‘Til You get Enough”, clássico de Michael Jackson que em tempos também mereceu abordagem dos portugueses Cool Hipnoise, e que aqui se transforma num infeccioso pedaço de funk devidamente “metalizado” e “acarnavalizado” como compete à Charanga.

Música para desfiles, um pouco como as tradicionais marching bands de Nova Orleães, o material que se reúne neste ultra-animado The Importance of Being Espetacular tem toda a vibração lúdica de uma festa intensa de carnaval, é plena de energia positiva e de grandes solos por parte dos diferentes músicos, todos eles dotados de pulmões carregados de classe, que entendem não apenas a história do jazz que emanou da histórica cidade do Louisianna, mas também a particular temperatura que o samba impôs a essa tradição que foi importada de África e transformada, através dos séculos, numa celebração de liberdade e fantasia. Escute-se, a título de exemplo, o incrível “Obá Iná”, tema que encerra este álbum, para se perceber que embora a música carnavalesca da charanga sirva de moldura conceptual para este projecto, os chops aqui aplicados são de real valor jazzístico, servidos por elegantes e complexos arranjos que exploram com inteligência toda a riqueza cromática que define um projecto desta natureza.



[João Lencastre’s Communion] Unlimited Dreams – Clean Feed

Há quase uma década e meia a separar One!, o primeiro registo do colectivo Communion liderado pelo baterista e compositor João Lencastre, deste mais recente Unlimited Dreams, lançado com selo Clean Feed. Lencastre é, pois claro, membro ultra-activo da contemporânea cena musical (jazz e não só) nacional, com créditos em aventuras como o Nau Quartet, Mantha ou em ensembles de João Hasselberg e Marco Franco, por exemplo. Experiência funda que lhe permite usufruir de uma igualmente vasta panóplia de recursos baterísticos, sempre apoiados em sólidos argumentos técnicos.

Aqui, João Lencastre é secundado por Albert Cirera (saxofones tenor e soprano), Ricardo Toscano (saxofone alto), Benny Lackner (piano e electrónica), André Fernandes (guitarra eléctrica), Pedro Branco (guitarra eléctrica), João Hasselberg (baixo eléctrico e electrónica) e Nelson Cascais (contrabaixo), um autêntico grupo de “feras” em que pontuam diversos líderes de pleno direito. Mas, ao mesmo tempo, um ensemble de geometria original graças à combinação de duplas de saxofones, guitarras e baixos, com o piano e a bateria a surgirem solitários, mas igualmente determinantes. O facto de dois dos músicos (Lackner e Hasselberg) ainda adicionarem variáveis electrónicas aos seus instrumentos principais afirma este colectivo como fonte de um vasto leque tímbrico, característica que serve na perfeição as composições panorâmicas de Lencastre.

Nas seis peças de que se faz o alinhamento deste álbum há uma inquietude que se adivinha na derivação colectiva por diversos territórios musicais, partindo-se sempre do jazz, mas com a estrutura das peças a revelar uma natural “curiosidade” que as leva a acercarem-se de outras linguagens, seja pelo lado do dispêndio de energia (há momentos com autêntico nervo rock) ou pelo mergulho em lagos de maior abstracção (que remetem para modos mais próximos das músicas contemporâneas).

Curioso é que apesar da relativamente curta duração dos temas (o álbum queda-se abaixo dos 40 minutos), sem espaço, portanto, para maratonas improvisacionais mais dilatadas, este Unlimited Dreams soe tão denso e cheio, mercê da variedade cromática à disposição do líder: entre o carácter mais abrasivo da guitarra de André Fernandes, os grooves bem definidos pelo baixo eléctrico de João Hasselberg ou o pianismo inquisitivo de Benny Lackner, evoluem os sabedores saxofones de Albert Cirera e Ricardo Toscano, cada um deles um solista dotado da imprevisibilidade que garante a submissão da nossa atenção. 

Estes sonhos sem fim de João Lencastre são, afinal de contas, reais, assim que fechamos os olhos e deixamos que o som que se desprende das colunas nos invada o pensamento.

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