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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/09/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #69: Amir ElSaffar / Javier Subatin

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/09/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Amir ElSaffar, Rivers of Sound] The Other Shore / Out Note Records

A orquestra que o trompetista e vocalista americano Amir ElSaffar (nascido nos Estados Unidos, em Chicago, filho de mãe americana e pai iraquiano) dirige é, em si mesma, fruto de uma experiência, de um programa, tanto estético quanto ideológico. Nela combinam-se instrumentos típicos do jazz – bateria, baixo acústico, guitarra, instrumentos de sopro como os saxofones alto, baixo, tenor e soprano e ainda o trompete, o piano e o vibrafone –, mas também outros mais associados à música clássica – como o violino, o violoncelo, o corne inglês ou o oboé – e outros ainda típicos das culturas árabes como o bouzouki, vários instrumentos de percussão, como o mridangam, os ouds e ainda o santur, que o próprio líder assume, além, claro dos encantatórios vocaleses em árabe.

ElSaffar tem explorado a combinação dos modos maqam com o jazz com pleno sucesso ao longo da sua discografia que se estende já por década e meia, mas a profunda riqueza de The Other Shore tem o inequívoco sabor de um absoluto triunfo artístico. De uma enorme beleza cromática derivada da amplitude instrumental abraçada pelo colectivo de 17 músicos apropriadamente designado como Rivers of Sound – porque são, de facto, poderosas as correntes que aqui nos transportam -, a “outra margem” a que aqui se aporta é, segundo palavras do próprio Amir ElSaffar, a de “um modelo musical que agrega uma multitude de expressões musicais”. Ou seja, um lugar que é tanto novo como ancestral, tão “estranho” como familiar. Pela música de ElSaffar, além das estruturantes, do ponto de vista musical, correntes do jazz e da música árabe, pressentem-se ainda ecos, mais ou menos distantes, do minimalismo americano e da tradição clássica europeia, das polirritmias de África.

“Ashaa”, uma de três quase-suites que se expandem bem para lá da marca da dúzia de minutos de duração, é um prodígio de tensão orquestral, intrincada filigrana cromática tecida por sopros e cordas e ritmo propulsivo que convida a expressivos solos por parte de diferentes instrumentistas, com os ouds a destacarem-se e o contrabaixista – o fantástico Carlo DeRosa – a deixar claro que não é uma sombra discreta nesta rica paisagem sonora. Nesse tema, entende-se claramente que a ideia de ElSaffar não podia estar mais distante de um qualquer intuito expeditório guiado por uma bússola “exótica” ou “nostálgica”, mas antes na construção de um edifício cultural novo e vibrante, apoiado em diferentes tradições, mas interessado, sobretudo, no futuro. Um dos grandes discos de 2021, sem dúvida.



[Javier Subatin] Mountains / Habitable Records

Foi em Fevereiro último que por aqui se escreveu sobre Trance, álbum lançado na recta final de 2020 e em que o mais português dos guitarristas argentinos se rodeava de sólido talento local, como João Paulo Esteves da Silva ou Pedro Moreira, entre outros. No novíssimo Mountains, lançado no passado mês de Agosto, Javier Subatin volta a deixar claro que não facilita no departamento de recursos (sobre)humanos ao recrutar para o trio base os fantásticos Demian Cabaud no contrabaixo e Pedro Melo Alves na bateria. A eles juntam-se ainda os não menos excelsos João Mortágua em sax alto, Ricardo Jacinto em violoncelo e Samuel Gapp no piano (os dois primeiros participam em três temas, o último em quatro e todos se escutam nas peças “Shadows” e “Solo#5” que fecham o alinhamento).

E percebe-se bem que para escalar estas montanhas, Subatin precisava de contar com “alpinistas” tão fortes quanto ele. Demian Cabaud e Pedro Melo Alves não surgem aqui como mero “suporte” do líder, antes como parceiros de igual importância, cada um deles com amplo espaço para expor ideias e pensamentos, a partir, certamente, de um profundo conhecimento comum, de uma natural empatia afinada durante a residência no Musibéria, em Serpa, em Abril último, ocasião em que este trabalho foi registado. Com as peças tituladas “Mountain” e numeradas de 1 a 6 a serem a espinha dorsal deste projecto (todas da lavra de Subatin), cada uma investida de real sentido exploratório servido pelo assertivo guitarrismo do líder, mas igualmente beneficiando da matéria conjurada por cada um dos outros elementos, os restantes temas – “Rocks”, “Birds”, “Cave”, Ground” e “Shadows” – são o resultado de derivas improvisacionais colectivas em que o mundo natural pode ter servido de inspiração, mas em que o resultado são murais muito mais “abstractos” do que “paisagísticos”.

Esta música soa livre, profundamente física, espontânea e vibrante por estar carregada de intenção, por procurar subverter normas e, ainda assim, reter algo de uma praxis, nomeadamente a do jazz, de onde muito naturalmente emana. Só que, chegados ao topo destas “montanhas” fica-se sempre com a sensação de que os vales que daí se avistam eram até agora desconhecidos e precisamente por isso são mais do que convidativos. É fazer a viagem, que tanto o percurso como a chegada ao destino são altamente recompensadores para ouvidos, alma e cérebro.

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