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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 26/02/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #49: Tony Paeleman / André Fernandes / Javier Subatin

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 26/02/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Tony Paeleman] The Fuse / Shed Music

A Shed Music é um selo baseado em Paris que tem Tony Paeleman como um dos homens do leme. O jovem teclista e engenheiro de som assina aqui novo trabalho como líder (em 2017 lançou Camera Obscura, também na sua Shed Music). Neste The Fuse, editado há apenas algumas semanas, Tony assume o papel de líder e ainda o Fender Rhodes e demais teclados enquanto Julien Herné trata dos sinuosos grooves no baixo e Stéphane Huchard dita a tensão rítmica na bateria.

O som deste álbum é bastante denso, o que é nota importante de sublinhar tendo em conta que se trata apenas de um trio. Em parte, tal deve-se ao facto de haver um preenchimento de espaços a cargo dos sintetizadores de Tony Paeleman, com o Rhodes a posicionar-se sempre como o elemento planante que sobrevoa as bases electrónicas. Mas tanto Julien como Stéphane não são propriamente dados ao recolhimento ou contenção. Com referências no período dourado do jazz de fusão (Mwandishi de Herbie Hancock ou Return to Forever de Chick Corea parecem ser aqui referências) e um ouvido contemporâneo que coloca em primeiro plano a secção rítmica, o pianismo de Tony Paeleman assume a tensão de ter que estar em permanente jogo de dinâmicas com a bateria e o baixo, o que também contribui para a ideia de que há muito em jogo por aqui. E há, de facto: com um recorte eléctrico e electrónico, esta música clama urgência, vive de se perder em sinuosos labirintos de groove e de emergir do lado de lá com ânimo próprio de quem acabou de cumprir uma missão de complexidade pronunciada.

Escute-se, por exemplo, o frenético “Call Me Fonzy”: baixo eléctrico a fazer horas-extra, riffs sintetizados em abundância, piano aditivado ao máximo e bateria que soa como se funcionasse a choques de 10 mil volts. O resultado parece adequar-se a uma banda sonora de um filme em que um qualquer herói fosse forçado a cumprir uma tarefa contra relógio, com a imagem acelerada para nos dar uma ideia ainda mais nítida dessa urgência.

Tanto Paeleman como Herné e Huchard são, ainda assim, dotados de plena elegância: dominam a técnica, mas também são estilistas sabedores, que cuidam do tom em que tocam, que sabem exactamente como atacar cada arranjo, como dosear a energia investida em cada andamento. E isso resulta num trabalho altamente lúdico, pleno de energia, que nos obriga a prestar atenção aos detalhes. As recompensas dessa concentração, garanto, são generosas.



[André Fernandes] Kinetic / Clean Feed

Editado ainda durante 2020, em Outubro, este belíssimo Kinetic conheceu agora justa e apropriada edição em vinil. Escreve-se por aqui “apropriada” pois a gravação feita nos Timbuktu Studios e misturada e masterizada pelo próprio André Fernandes, com espaços perfeitamente definidos, plena de luz, dinâmica e com o grão certo a acentuar a personalidade de cada instrumento, bem que merecia esse suporte analógico.

À guitarra do líder André Fernandes juntam-se para esta cinética aventura de medição de forças o saxofone colorido com efeitos de Perico Sambeat, o piano e demais teclados de Xan Campos, o baixo de Frederico Heliodoro e a bateria de João Pereira. Pela forma como se posicionam, quase se diria que não há distinções hierárquicas entre os diferentes instrumentos, com cada um dos músicos a reclamar atenção, puxando de galões, de técnica e expressividade, para, à vez, assomarem ao primeiro plano.

A música resulta assim bastante irrequieta, expressiva, repleta de surpresas, mas também preenchida com inúmeros detalhes que apontam para pensamento, para uma maior reflexividade, talvez porque, pela primeira vez, André Fernandes conduz um ensemble não pelos labirintos das suas próprias composições, antes por uma série de peças “encomendadas” a pares que admira. Há oito compositores referidos para as faixas aqui incluídas: Xan Campos assina “Atoms” e “Sadcess”, Perico Sambeat é o autor de “Wiccano”, “Ratios” tem assinatura de Ohad Talmor, “Future” é de Sara Serpa, “Sesladanafia” de David Binney, João Pereira é o responsável por “Same Little Twice” e, finalmente, Akiko Pavolka foi quem escreveu “Rainy Night, Neon Light”.

O que se pode dizer sobre a personalidade do colectivo aqui reunido por André Fernandes (no álbum anterior, Dianho, do seu projecto Centauri, além de baixo e bateria, o guitarrista contava ainda com dois saxofonistas; desta vez optou por ter apenas um sopro e um piano ao seu lado, além da secção rítmica) é que tem identidade suficientemente vincada para não ser óbvio que cada um dos temas apresentados tem uma diferente marca autoral. Ou seja, por muito que os “estímulos”, sugestões estruturais, melódicas e harmónicas, possam ter sido diferenciados, traduzindo diferentes ideias de diferentes cabeças, a verdade é que as variáveis deste Kinetic se resolvem de forma sólida, com as tensões que o título parece evidenciar a desembocarem num exercício de plena elegância, vívido e de ampla riqueza cromática.



[Javier Subatin] Trance / ears&eyes

Lançado já em Novembro ultimo, Trance foi o segundo lançamento de 2020 do guitarrista argentino residente em Portugal Javier Subatin, sucedendo a Variaciones, trabalho que está prestes a completar um ano. E se no álbum anterior, Subatin experimentou trabalhar com um ensemble mais dilatado onde se cruzavam Pedro Moreira (sax tenor), João Paulo Esteves da Silva (piano), André Rosinha (contrabaixo) e Diogo Alexandre (bateria), desta feita apenas o baterista é de novo chamado, juntando-se ao saxofonista alto Daniel Sousa. E o que isso nos diz é que Subatin procura variar os contextos em que trabalha, de forma a encontrar novos ângulos para explorar o seu guitarrismo.

E há marcas vincadas na arte do guitarrista e compositor: um apego a modos tradicionais, carregados consigo na sua privada diáspora, uma forma de retenção de identidade cultural, mas também de coloração da sua ideia de jazz com tonalidades diferenciadas. O resultado, diga-se, é altamente entusiasmante precisamente por soar diferente.

Trance é um trabalho formalmente conceptual que retém a ideia fundacional do jazz de abordagem aos standards que passava por expor o tema melódico, por o expandir depois através da improvisação e pelo regresso à premissa inicial. Essa estrutura serve de ponto de partida para uma complexa proposta, que assenta em ideias curtas, devidamente anotadas e apresentadas ao trio, mas também na repetição como base para o desenvolvimento de motivos contrastantes por cada um dos solistas, com generoso ênfase depositado na improvisação. Música que sabe de onde parte, mas que desconhece sempre para onde se dirige ou onde poderá, finda a deriva de “olhos vendados”, terminar. O que se traduz em momentos de vívida expressividade, de plena invenção, num jogo de contrastes e encaixes em que cada um dos instrumentos se deixa apanhar. Essas peças inserem-se na série “Trance#” de que são apresentadas 5 partes (o facto de um dos temas, de acordo com o título, ser o oitavo da série indica que nem todo o material registado seguindo este preceito desembocou neste disco).

Há mais duas composições: um “Solo#2” de profunda carga poética, uma atmosférica leitura de um ritmo tradicional uruguaio, o candombe, de beleza tremenda, com o dedilhar de Javier a revelar um guitarrista de amplos recursos expressivos. Trata-se de uma composição que se insere numa série que Subatin tem vindo a usar para pontuar os seus diferentes lançamentos. Há também uma leitura inteligente do clássico “C Jam Blues” de Duke Ellington em que o trio adopta a mesma abordagem estrutural experimentada nas composições “Trance#” e que aqui assume um tom quase “conversacional”, com cada um dos músicos a puxar de diferentes nuances do seu leque de recursos técnicos para “responder” aos seus companheiros. Correndo o risco de estar a escutar algo que lá não está, arrisco escrever que parece haver senão uma subtil dose de humor empregue nesta leitura, pelo menos um óbvio deleite na sua execução, o que lhe confere um carácter algo lúdico, por oposição aos restantes temas que serão porventura mais cerebrais. Seja como for, belíssimo trabalho de Javier Subatin: o transe em que embarcou com os seus músicos está também, mediante escuta atenta, ao nosso alcance.

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