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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/07/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #61: Rodrigo Pinheiro & Pedro Carneiro / José Lencastre Nau Quartet + Pedro Carneiro / Pedro Carneiro | Pedro Melo Alves / Luís Vicente Trio

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/07/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Rodrigo Pinheiro, Pedro Carneiro] Kinetic Études / Phonogram Unit

[José Lencastre NAU Quartet + Pedro Carneiro] Thoughts Are Things / Phonogram Unit

[Pedro Carneiro & Pedro Melo Alves] Bad Company / Clean Feed

[Luís Vicente Trio com Gonçalo Almeida, Pedro Melo Alves] Chanting in the Name Of / Clean Feed

Um ecossistema é uma rede natural complexa de interligações entre organismos numa localização específica, com relações de dependência mútua a ditarem ciclos de equilibrada regeneração. Assistir a um festival como aquele em que o Rimas e Batidas agora marcou presença a norte – o Festival Porta-Jazz – dá-nos uma ideia clara desse mesmo tipo de ecossistema no muito específico universo do jazz: músicos que se integram em colectivos como executantes, mas que podem ser compositores de obras para outros grupos; músicos que lideram trios ou quartetos, mas que também são liderados noutros contextos; músicos que se cruzam em formações variáveis, que exploram diferentes vertentes e linguagens em múltiplas situações, numa busca contínua de equilíbrios e desequilíbrios. De encaixes.

O caso presente é sintomático dessa prática: quatro discos recentes muito diferentes, mas com ligações claras que o natural fluxo criativo dos músicos vai impondo. O pianista Rodrigo Pinheiro divide os créditos de Kinetic Études (edição da Phonogram Unit) com o percussionista Pedro Carneiro que em Thoughts Are Things (da mesma editora) se junta ao NAU Quartet do saxofonista José Lencastre, colectivo em que milita também Rodrigo Pinheiro (além de Hernâni Faustino e João Lencastre), e em Bad Company (Clean Feed), surge na boa companhia do baterista Pedro Melo Alves que é igualmente membro do Trio de Luís Vicente em Chanting in The Name Of (Clean Feed, uma vez mais), trabalho para que também contribui o contrabaixista Gonçalo Almeida. Isto anda, de facto, e como já em tempos observou Sérgio Godinho, tudo ligado.

As extensões desta teia de cumplicidades e afinidades artísticas são muito maiores se começarmos a observar o que cada um dos músicos presentes nestes quatro lançamentos já fez em nome próprio ou enquanto participante noutros projectos e não se vai por aqui percorrer os vastíssimos currículos individuais de cada um, convidando antes o leitor a seguir os hyperlinks associados aos seus nomes no parágrafo acima que poderão conduzir a novas descobertas, a mais nomes, a mais exemplos de intensa colaboração criativa. Mas é bastante sintomático que estes músicos se cruzem de alguma forma em quatro discos que mereceram edição muito recente entre nós.

Kinetic Études – comece-se por aqui… – é um belíssimo trabalho de interligação de piano e marimba, um “dueto” não tão frequente quanto se poderia pensar, sobretudo ouvindo os belíssimos resultados deste álbum. Pinheiro e Carneiro são músicos dotadíssimos, tanto em termos técnicos como de domínio de diferentes linguagens, e neste conjunto de estudos (seis, ao todo) o que evidenciam é a capacidade de escuta mútua, de resposta ao outro, de complementaridade, num crescendo realmente exploratório de aproximação, de gestão de tensões, de pressão e libertação, que se traduz numa complexa teia harmónica tecida por Pinheiro no piano acústico e por Carneiro na marimba com extensão de quarto de tom. Jazz e música contemporânea em diálogo, em trabalho de eliminação de margens e de fomentação de afinidades, invenção livre a procurar servir a música, com cada um dos músicos a sabiamente evitar manifestações inusitadas de virtuosismo técnico, preferindo o mergulho incondicional no que o caminho tomado exige. O resultado é simplesmente estonteante.

O que Pedro Carneiro faz em Thoughts Are Things como convidado de José Lencastre e interagindo com o NAU Quartet é algo de completamente diferente. E o mesmo pode dizer-se para o trabalho de Rodrigo Pinheiro, igualmente mais visceral e menos cerebral. O pianista de RED Trio é aliás um importante propulsor deste registo, um provocador constantemente em busca de terreno instável, e percebe-se que o seu trabalho é importante para guiar a marimba de Carneiro, sempre em busca de espaços para se expressar, numa paisagem acústica densamente povoada de ideias, de, como o título indica, pensamentos, aqui expressos em gestos, em choques, em sugestões, em complementos, em micro explosões que nos mantêm constantemente na ponta da cadeira. Pedro Carneiro soa muito menos expansivo, mais reflexivo, procurando servir o todo, mantendo a sua natural elegância e reafirmando a sua insuperável capacidade para a expressão da surpresa. Em “The Magnet of Thought”, a mais longa e derradeira peça do alinhamento, a um verdadeiro maelstrom que parece ter nascido do silêncio, Carneiro responde desenhando figuras em torno do piano de uma enorme subtileza, posicionando-se depois atrás do terno e quase baladeiro saxofone de José Lencastre como uma espécie de sombra harmónica, com plena subtileza e assertividade. Cada nota está ali porque precisa de estar.

Faustino, na sua habitual, discreta e segura forma, é um elemento gravitacional natural para o quarteto. E Lencastre um expressivo líder, de alma funda, um soprador de fôlego criativo intenso, de energia contagiante, tão capaz de discursos eloquentes como de interjeições breves e provocatórias. E o seu irmão, João, é a cola que, juntamente com Hernâni Faustino, providencia a sólida, ainda que sempre subtil, base para que este edifício, que se faz de pensamentos que se transformam em coisas, cresça sem nunca correr o risco de colapsar.

Carneiro volta a brilhar intensamente ao lado desse outro cometa que é Pedro Melo Alves, um baterista que é igualmente compositor, explorador e escultor (tanto no sentido físico como acústico do termo). Em Bad Company, disco que nasceu sem mapas, sem pautas, sem ideias pré-definidas, Pedro Carneiro recorre uma vez mais à sua marimba com extensão de quarto de tom e Pedro Melo Alves traz para a sala da Orquestra de Câmara Portuguesa (espaço em que foram igualmente gravados os discos aqui mencionados de Nau Quartet e de Rodrigo Pinheiro com Pedro Carneiro) a sua bateria preparada. Improvisadores de mão-cheia, o que Alves e Carneiro aqui nos oferecem é um festim para os ouvidos, uma celebração da amplitude quase infinita da percussão, do ritmo, dos pulsos, das texturas: e por aqui há madeira e vento, cristal e metal, sombra e luz, abismo e estratosfera, o resultado da implosão microscópica do tempo e do espaço todo ele partículas de diferentes tonalidades que nos prendem a atenção, sobretudo quando a escuta é feita em auscultadores, experiência que muito se recomenda de forma a captar todos os detalhes microtonais.

Finalmente, completa-se este círculo (ou quadrado…) com Chanting in the Name of, trabalho do trio que Luís Vicente montou aqui com o contrabaixista Gonçalo Almeida e com o baterista Pedro Melo Alves. E, uma vez mais, é de diferenças que convém falar, porque o baterismo que Melo Alves aqui aplica é muito distinto daquele que se escuta no seu encontro com Pedro Carneiro, retendo apenas a sua inventividade de marca, a sua capacidade de contínua surpresa, o seu habitual gosto pela descoberta. Com um brilhante Gonçalo Almeida ao seu lado, esta secção rítmica dá ao incansável Luís Vicente um amplo terreno para a exploração, para o desenho de caminhos improváveis, mas sempre estimulantes, agindo em contraponto e injectando alguma turbulência sob o mais planante discurso do líder ou, pelo contrário, segurando-o na Terra, qual cabo que liga o balão de ar quente ao chão, quando parece envolvido numa espiral ascendente sem fim.

Escreve, nas liner notes, Hamid Drake (com quem Vicente gravou o espantoso Goes Without Saying, But It’s Got To Be Said), citando Hazrat Inayat Khan, místico sufi que apresentou o sufismo ao Ocidente no início do século XX, que “a música é muito mais do que uma forma de entretenimento para passar o tempo. É, na verdade, o código subjacente a todo o universo”. Drake não poupa depois justos elogios ao “maravilhoso trio”. O que é compreensível, sobretudo após uma escuta atenta deste álbum. É que este trio alcança planos cósmicos muito elevados. Escutando a peça título, a mais longa do álbum e a que ocupa o centro do alinhamento, entende-se tudo isto: sobre baixo dissonante tocado com arco, a soar quase como um violino ou violoncelo, Luís Vicente desenrola um lírico mantra que recorda a espaços o lado mais espiritual de Miles, não necessariamente por afinidades de técnica, mas porque aqui o trompetista português parece apontar a um mesmo plano de superior contemplação que o mestre americano logrou pontualmente alcançar. Mas esse é um registo que de forma inteligente é depois trabalhado de forma a dar espaço a um discurso mais visceral, que parece um vórtice que nos puxa para o centro, de forma irremediável. Essa força gravitacional que se sente ao longo de todo o álbum recompensa sem dúvida quem por ela se deixe levar. É que este é um trabalho de puro assombro espiritual.


 





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