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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 18/02/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #48: Nick Walters & The Paradox Ensemble / Muriel Grossmann / Menagerie

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 18/02/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Nick Walters & The Paradox Ensemble] Implicate Order / D.O.T. Records

Nick Walters conta já mais de uma década de actividade na cena musical britânica, tendo trabalho de sessão no seu currículo registado ainda antes da estreia do seu Paradox Ensemble, em 2013, com o EP Entanglement em que participou o baterista Yussef Dayes. Walters já soma igualmente uma longa experiência como parte de Ruby Rushton, projecto em que ombreia com Ed “Tenderlonious” Cawthorne como solista e com que já gravou quatro álbuns, incluindo o muito aplaudido Ironside, que data de 2019.

Após uma longa pausa, o Paradox Ensemblevoltou a reunir-se em 2018 para Awakening, álbum em que já se faziam ouvir os mesmos músicos que agora se reencontraram para as sessões de Implicate Order: Aidan Shepherd no acordeão e sintetizador, uma secção de metais que inclui Ed Cawthorne no sax tenor e flauta piccolo, Sam Healey no sax alto, Ben Kelly na tuba e Richard Foote no trombone – e isto além do próprio líder, Nick Walters, em trompete, pois claro – e ainda Anton Hunter na guitarra, Rebecca Nash no piano, Paul Michael no baixo, Jim Molyneux na bateria e Kodjovi Kush na percussão. Um grupo diverso, multi-cultural, com larga experiência acumulada e uma óbvia empatia que traduz de forma fluída as composições e arranjos do líder. Em entrevista ao Rimas e Batidas, o trompetista explicou como correram as sessões: “Fizemos dois dias, mas foram dois dias bons, muito produtivos. Foram ambos divertidos. Tínhamos muita coisa para percorrer e, como deves de saber, existem sempre falhas técnicas a que temos de saber dar a volta. Mas foi como tu disseste: uma das coisas de que mais gostei foi do facto de nesta banda termos todos uma mentalidade muito semelhante. Demo-nos muito bem e divertimo-nos imenso.”

O novo trabalho volta a explorar a noção particular de swing que faz balançar a modernidade britânica, um misto de cadências africanas e caribenhas que sustenta um edifício construído com as típicas dinâmicas das big bands da era pós-bop, mas com um edge moderno que se sente por exemplo na repetição de alguns fraseados, como se o colectivo tivesse educado os seus ouvidos tanto a ouvir os clássicos do jazz, como os seus samples em discos de hip hop: o arranque da belíssima “Volta Region”, por exemplo, poderia servir de base, se apresentado em loop, a um MC. Esse tema, cujo título referencia certamente a antiga República do Alto Volta, actual Burkina Faso, tem o seu pulso, maravilhosamente desenhado pelo baixo e bateria, síncrone com as cadências que a diáspora africana espalhou pelo mundo, e em cima de tudo, o colectivo pinta uma decididamente maravilhosa paisagem, com o líder a assumir um solo de recorte bastante espiritual que lhe sublinha os amplos recursos discursivos.

Parte dos evidentes méritos do grupo assentam na forma como todos se encaixam em intrincadas tapeçarias tímbricas: são onze os músicos do colectivo e, no entanto, todos parecem ter o seu lugar definido nos arranjos, com “ar” suficiente para que todos respirem, facto a que não deve ser alheio o trabalho do engenheiro de som Rhys Downing.

Em cima de um groove permanente, o Paradox Ensemble consegue, e talvez essa possa ser uma explicação para a designação do colectivo, soar, por um lado, espiritual, poético e inventivamente abstracto e, por outro, imprimir uma tremenda fisicalidade à sua música que também é decididamente pensada para ser dançada. “Be Seeing You” é, nesse ponto, um claro exemplo, suspendendo a dada altura o seu passo quase drum n’ bass, com uma prestação fantástica da bateria de Jim Molyneux, antes de, a dado momento abrir espaço para o baixo de Paul Michael e as congas de Kodjovi Kush embalarem um solo de Sam Healey de tranquilidade quase bossa. Essas variações dinâmicas são constantes e insuflam na música essa generosa dose de surpresa que nos prende decididamente a atenção. Não estamos, isso é certo, perante um qualquer exercício de jazz para “sala de estar”.

Depois da entrada electrónica de “Diminishing Returns”, Aidan Shepherd, troca os sintetizadores por um belíssimo solo de acordeão que tem por trás uma subtil coloração da tuba de Ben Kelly, num arremedo quase dub profundamente original que percorre a distância, em termos melódicos, que separa as Caraíbas de um qualquer ponto perdido na Ásia. O álbum fecha depois com aquele que é talvez o seu momento mais espiritual, o tema que lhe dá título, “Implicate Order”, que evolui a partir de um rendilhado tímbrico muito delicado, estabelecido entre o piano eléctrico, o baixo, a guitarra e a bateria. Quando os metais respondem à convocatória do compositor, já nos encontramos todos a flutuar algures na estratosfera, de olhos fixos nas estrelas, como convém.

Belíssimo trabalho de Nick Walters: esperemos que 2021 permita que este ensemble pise alguns palcos. Dedos cruzados deste lado.



[Muriel Grossmann] Quiet Earth / Dreamlandrecords

Saxofonista austríaca a residir em Ibiza, Espanha, Muriel Grossmann é uma artista prolífica que conta uma dúzia de álbuns enquanto líder, metade dos quais lançados desde 2015 ao rigoroso ritmo de um a cada ano. Quiet Earth é o mais recente, foi editado no final de 2020 e é um poderoso registo em quinteto em que os saxofones alto e tenor da líder dialogam com a guitarra de Radomir Milojkovic, o baixo de Gina Schwarz, a bateria de Uros Stamenkovic e o órgão de Llorenç Barceló.

A música de Muriel Grossmann nasce de uma reflexão profunda sobre a humanidade e os abismos que enfrenta, sobre a natureza e o espírito e como todos esses pontos se entrecruzam. Isto de um ponto de vista filosófico. Musicalmente, como a própria confessou à publicação Bandcamp Daily, John Coltrane é o seu alfa e ómega: “Fascina-me como a sua energia pode fluir de forma tão livre, o seu som é de enorme beleza para mim. Uma vez que se descobre John Coltrane, é para a vida.”

E esse ponto de partida para a arte que Muriel Grossmann tem desenvolvido nos seus projectos dos últimos anos tem neste Quiet Earth uma tradução muito concreta. Explica a saxofonista que “o foco neste álbum é na fluidez e na forma como é tocado, como se podem dominar as pequenas coisas que fazem parte do todo. Escolhi o título de propósito para este tempo. Deu-nos a chance de re-questionar algumas das coisas que têm acontecido à nossa volta e oferece-nos uma mais profunda perspectiva sobre a década que temos pela frente”.

O tempo presente, de reclusão forçada pela pandemia, também afectou o ritmo criativo traduzido em edições a que Muriel Grossmann tinha habituado os seus seguidores nos últimos anos. Parte do material do novo álbum remonta a Awakening, registo de 2013 gravado ao vivo no espanhol Eivissa Jazz Festival. Foi aí que pela primeira vez se apresentaram as peças “Wien” (“Viena”, referência directa às raízes de Muriel) e “Peaceful River”. Esses temas, que a artista acreditava já apontarem numa direcção mais condizente com as explorações espirituais em que embarcou nos últimos anos, foram regravadas em Setembro de 2019, em contexto de estúdio, e agora recuperadas para o alinhamento de Quiet Earth que inclui ainda os temas “African Call” e Quiet Earth”. Quatro peças de durações muito equilibradas (a mais curta tem pouco mais de 8 minutos e meio, a mais longa quase chega aos 11 minutos e meio), de pulso rítmico firme conseguido graças ao entrosamento total entre o baixo de Gina e a bateria de Uros e feitas igualmente de uma densa tapeçaria harmónica desenhada entre o órgão de Llorenc e a guitarra de Radomir, ambos com pronunciados “sotaques” blues, sobre os quais o discurso de Muriel se desenvolve de forma livre, inventiva, altamente poética, mas também com a assertividade própria de quem se sente muito confortável com o seu domínio técnico das ferramentas expressivas.

A música resulta assim viva, vibrante, honesta e tão transparente e fresca quanto um lago de águas tranquilas. É música que não pretende ser opaca, antes quer comunicar, tocar e elevar espíritos alheios, uma música que busca de facto a harmonia com algo maior e que soa tão clássica, tão em sintonia com o que os mestres do passado alcançaram, quanto do momento presente, o único que permite com olhar com idêntica perspectiva para o que já aconteceu e para o que poderá ainda acontecer. Esta Terra tranquila de Muriel Grossmann é a Terra que a artista deseja alcançar. Pudesse o mundo sintonizar-se com a sua vibração e tal poderia eventualmente suceder…



[Menagerie] Many Worlds / Freestyle Records

Este é já o terceiro álbum do colectivo australiano Menagerie liderado por Lance Ferguson, também parte dos Bamboos. Aqui, Lance assume as guitarras, a produção e as composições que são executadas por um dilatado ensemble que inclui Benjamin Hanlon nos baixos acústico e eléctrico, Daniel Farrugia na bateria, Phil Binotto na percussão e vibrafone, Mark Fitzgibbon no piano, Phil Noy nos saxes soprano, alto e tenor, Ross Irwin no trompete e Christin Deralas e Fallon Williams nas vozes.

Tendo recrutado boa parte dos seus companheiros de aventura nos Bamboos, grupo em que explorou um pulsar mais soul-funk, Lance, que é também um activo e reconhecido DJ com acesso a uma generosa colecção de discos, estruturou estes Menagerie como um laboratório em que pode aplicar as fórmulas que no passado foram avançadas por mentes criativas como Alice Coltrane ou Pharoah Sanders e exploradas depois por colectivos como os Oneness Of Juju em trabalhos para etiquetas como a Black Jazz, Strata East ou Tribe. Esta é, muito claramente, música que resulta de estudo aturado e de devoção honesta, o mesmo ponto de partida conceptual que serviu, noutro quadrante musical, os Bamboos e toda uma geração de dedicados estudiosos do groove inventado por James Brown.

O jazz espiritual tem nos últimos tempos merecido atenção de muitos colectivos presentes. Os Menagerie dividiram, aliás, espaço no alinhamento do volume 13 da popular série da editora Jazzman que tem explorado a rica história do género que ligou a mais pura inventividade com o espírito, sintonizando a música com as tradições ricas de África ou da Índia. Este Many Worlds deixa claro que a sua inclusão em Spiritual Jazz 13 (com o tema “Nova”, retirado do alinhamento do seu segundo álbum, The Arrow of Time, lançado em 2017) fez pleno sentido e o grupo prossegue concentrado na sua missão de reflectir no presente as derivas passadas do jazz pelos elevados terrenos do espírito.

Mantendo o groove como base sólida do seu som, os Menagerie combinam harmonias vocais com uma elaborada teia cromática feita pelos sopros, pela guitarra e pelos teclados, pelo piano e vibrafone. E com músicos de elevada competência técnica, todos eles cuidadosamente selecionados por serem fluentes neste tipo de “linguagem”, o resultado é um álbum envolvente, que por acaso tem data de 2021, mas que provavelmente poderia passar por registo gravado em 1977 – que foi quando os Last Poets gravaram com Bernard Purdie o clássico Delights of the Garden, uma inspiração clara para o hino à liberdade que é “Free Thing”. É que mesmo quando o rigor orquestral em que assenta este trabalho evoca as recentes derivas de mentes criativas como Kamasi Washinton ou Shabaka Hutchings, a verdade é que tal acontece porque Ferguson terá certamente bebido nas mesmas fontes que inspiram os seus contemporâneos.

Many Worlds é assim um triunfo, um exercício que se coloca fora do tempo para poder contemplar a história, mas que regressa ao presente senão para nos fazer dançar (colectivamente, pelo menos, tal ainda não é possível…), pelo menos para nos carregar a imaginação para longe. Para muitos outros mundos.

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