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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/02/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #47: Antonio Neves / Marcos Resende & Index / Francisco Mora Catlett

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/02/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Antonio Neves] A Pegada Agora É Essa / Far Out Recordings

É extraordinária esta estreia de Antonio Neves no catálogo da Far Out Recordings, a editora de Joe Davis que graças a trabalho desenvolvido desde 1994 com artistas lendários do Brasil como Azymuth ou Marcos Valle se afirmou como uma verdadeira embaixada cultural desse país de samba e bossa nova. E de jazz, pois claro.

Trombonista, multi-instrumentista e produtor ultra-activo como arranjador e músico de sessão na cena do Rio de Janeiro (tocou em projectos de Moreno Veloso, Kassim, Elza Soares, Hamilton de Holanda ou Leo Gandelman), Antonio Neves possui já uma longa experiência profissional e até há um enquadramento familiar que lhe sustenta a sua ligação à música – Eduardo Neves, o seu pai, foi professor de música nas prestigiadas Julliard School of Music e California Jazz Conservatory. Esse rico percurso manifesta-se uma vez mais num ambicioso segundo trabalho como líder.

A Pegada Agora É Essa pretende ser um retrato da agitada e variada cena musical do Rio de Janeiro e para tanto, Neves convocou um alargado ensemble, assegurando o próprio boa parte das baterias, o trombone e até, pontualmente, voz e guitarra. E depois há inúmeros convidados: o seu pai toca flauta num dos temas, Leo Gandelman traz sax alto para “Lamento de um Perplexo” e até Hamilton de Holanda empresta o seu mandolim a “Forte Apache”, com vozes a serem assumidas por Leda (“Simba”), Alice Caymmi (“Noite de Temporal”) ou Ana Frango Eléctrico (“Luz Negra”). Luiz Otávio no Rhodes, Joana Queiroz no clarinete baixo, Gus Levy na guitarra eléctrica, Eduardo Farias no piano e André Vasconcelos no contrabaixo asseguram as bases para os oito temas do alinhamento.

Há ainda vários percussionistas convocados para diferentes passagens, porque – e essa é uma das características fundacionais deste trabalho – Antonio Neves imaginou a sua abordagem a material original, mas também a alguns standards (“Summertime” ou “Luz Negra”) partindo de ritmos que ajudam a definir a particular cultura musical do Rio de Janeiro: a cadência partido alto serve de base para o tema que dá título ao álbum ao passo que o jongo impõe o seu pulso nos temas “Jongo No Feudo” e “Luz Negra”; “Noite de Temporal” parte de ritmos da religião afro-brasileira Candomblé e “Forte Apache” subtrai nervo aos rituais da Umbanda; e até a urgência do funk carioca ajuda a definir o impulso de “Simba”. O swing do Brasil é diferente do de qualquer outra cultura porque o resultado histórico da experiência africana nesse país teve igualmente contornos particulares e Antonio Neves constrói um intrincado mosaico neste álbum partindo exactamente dessas singularidades rítmicas que lhe sustentam arranjos densos, ricos em termos harmónicos e realmente vibrantes. “Forte Apache” é um belíssimo exemplo, quase uma lição de história, com a cadência soluçante a impelir para a frente uma intrincada tapeçaria harmónica em que se destaca o mandolim que em determinados momentos não esconde que Hamilton de Holanda ouviu atentamente o fado português.

Há invenção livre, improviso, e uma comunhão que se percebe ser cultural no sentido em que cada um dos músicos recorre ao mais fundo da sua identidade para trazer à tona algo que é distintamente brasileiro e profundamente único. A pegada agora é essa: um presente que reconhece e não esconde a sua rica história, que a entende como tesouro vivo e garantia de futuro. Aprenda-se com isso.



[Marcos Resende & Index] Marcos Resende & Index / Far Out Recordings

É ultra curiosa a história do pianista Marcos Resende: na década de 60 do século passado rumou a Lisboa para estudar medicina, mas acabou embrenhado na cena musical local. Tocou em vários grupos e chegou mesmo a subir ao palco do Cascais Jazz, em duas ocasiões distintas: em 1971, juntamente com alguns músicos portugueses, secundou Dexter Gordon; no ano seguinte liderou os seus Status no mesmo evento, um colectivo que incluía o baterista Vítor Mamede (Quarteto 1111, Sindicato), um jovem baixista de nome Luís Santos, o saxofonista tenor João Ramos Jorge, o guitarrista britânico, então igualmente residente em Portugal, Mike Briton, além de um compatriota também por cá residente, Décio Lemke, em percussões (nota extra: no programa da edição de 1972 do Cascais Jazz, na página referente aos Status, indica-se que o grupo tencionava estrear-se ainda nesse ano com um LP. Terá alguma vez sido gravado?).

Marcos Resende ainda deixaria gravada uma participação no álbum de 1973 dos declamadores Mário Viegas e Daniel Filipe, A Invenção do Amor e Outros Poemas, integrando um pequeno ensemble dirigido por José Niza, mas acabou por regressar ao Brasil em 1974, após a Revolução dos Cravos. Aí criou um novo grupo com Rubão Sabino (baixo), Cláudio Caribé (bateria) e Oberdan Magalhães, saxofonista da Banda Black Rio que também tocou com os Cry Babies e com a banda Abolição de Dom Salvador. Verdadeiras “feras”, portanto.

O álbum de estreia do grupo foi gravado, referem as notas de lançamento da Far Out, por Toninho Barbosa, o “Rudy Van Gelder brasileiro” (que gravou clássicos absolutos como Light as a Feather dos Azymuth ou Precisão do Tempo de Marcos Valle), nos estúdios Sonoviso. A escolha foi acertada, porque a música que Resende e os seus Index criaram nessa ocasião enquadra-se bem nessa estética de jazz de fusão então a experimentar o seu próprio travo no Brasil.

Por alguma razão, esse trabalho de estreia permaneceu inédito e do grupo conhece-se apenas um álbum de 1978, Festa Para Um Novo Rei, particularmente cobiçado por causa da pérola jazz-funk que é “Vidigal”. É por isso mais do que bem-vinda esta edição inédita operada pela etiqueta de Joe Davis que depois de recentemente ter “desenterrado” as incríveis Demos dos Azymuth, volta a descobrir mais um tesouro do passado da música brasileira. E a descoberta, revela o próprio Joe Davis, aconteceu em Lisboa, em 2018, quando Resende revelou ter guardado os masters dessa longínqua gravação de 1976.

Em piano eléctrico e sintetizadores, Marcos Resende mostrava nessa estreia à frente do grupo Index estar perfeitamente a par dos desenvolvimentos que então aconteciam nos domínios do jazz de fusão, com a música do seu grupo a navegar águas próximas daquelas que eram exploradas não apenas pelos conterrâneos Azymuth, mas também por grupos americanos como Weather Report ou Return to Forever: música com doses generosas de invenção livre no plano melódico e harmónico, mas centrada num groove constante e ultra sofisticado. Em “Praça da Alegria” (certamente uma referência à experiência lisboeta – é, afinal de contas, o nome da praça onde desde a década de 50 se situa o Hot Clube de Portugal que Resende há-de ter frequentado) a secção rítmica está particularmente bem oleada, com Resende a alternar riffs e sugestões de direcções melódicas que Oberdan Magalhães aceita com óbvio deleite. O grupo, certamente gravado ao vivo, soa como se estivesse a tocar num clube e isso diz muito da vibração plena, ainda que presa a um tempo específico, que estas fitas retiveram durante os 45 anos em que ficaram guardadas.

PS: Marcos Resende faleceu, em Lisboa, no passado mês de Novembro.



[Francisco Mora Catlett] Mora! 1 & 2 / Far Out Recordings

Poucos músicos representarão, como Francisco Mora Catlett, o longo arco do devir cultural afro-latino-americano: nascido em Washington em 1947, filho de intelectuais mexicanos, estudou na Cidade do México, onde se afirmou como percussionista em sessões para a Capitol Records local, antes de deixar a cidade para partir em digressão com uma mítica troupe itinerante que a História reconhece como Sun Ra Arkestra.

Logo aí, Mora percorreu um longo caminho, o que separava os seus estudos formais das percussões africanas e a sua sobrevivência no Novo Mundo do inventivo afro-futurismo preconizado pelo líder da Arkestra, corriam então os agitados e libertários anos 70. Depois da sua considerável ligação à Arkestra, que se estendeu por cerca de 7 anos, estabeleceu-se em Detroit onde gravou, em 1986, o trabalho Mora!, que lançou como uma edição de autor hoje consideravelmente valorizada.

O álbum, gravado com a ajuda do baixista Rodney Whitaker, que trabalhou abundantemente com Roy Hargrove, do pianista Kenny Cox, fundador da etiqueta Strata, do saxofonista tenor e flautista Vincent Bowens (que tocou em discos de Travis Biggs, incluindo o clássico Challenge) e de um par de percussionistas, explorava uma panóplia de ritmos que a diáspora africana impôs nas Américas com um vigor digno de nota. Notáveis as suas explorações do pulsar que o Brasil exportava para todo o planeta.

Mora gravou uma sequela para esse trabalho que nunca chegou a ver a luz do dia. Com a participação de Marcus Belgrave, trompetista notável que tocou com toda a gente, de Ray Charles, Charles Mingus, Hank Crawford a Eddie Russ e Wendell Harrison, esse álbum parecia acentuar ainda mais a óbvia paixão que Mora não escondia sentir pela particular vibração afro-brasileira, em jams densas, servidas por intrincadas polirritmias, plenas de liberdade e côr.

Pode pensar-se nesse díptico como uma espécie de elo perdido que une a fase anterior da carreira de Francisco Mora Catlett aos seus passos nos anos 90, quando se aproximou de uma outra cena de Detroit, mais electrónica, aliando-se a Carl Craig e tornando-se parte activa do projecto Innerzone Orchestra que prosseguia essa investigação das mais fundas ligações entre o pulsar do jazz e a vertigem do futuro.

A londrina Far Out Recordings recupera agora ambas as gravações, dando pela primeira vez à estampa em vinil os dois volumes de Mora!, registos em que o jazz cruza eras e fronteiras, desce ao sul da América e ousa cruzar o oceano para reencontrar África e assim completar um longo arco histórico e cultural.

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