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Ilustração: Riça
Publicado a: 03/12/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #38: Naná Vasconcelos & Agustín Pereyra Lucena / Tenderlonious

Ilustração: Riça
Publicado a: 03/12/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Naná Vasconcelos e Agustín Pereyra Lucena] The Incredible NANÁ with AGUSTÍN PEREYRA LUCENA / Altercat

A ideia da vibração – física ou espiritual, emocional ou intelectual – como matéria resultante da comunicação (entre pessoas, entre animais, entre corpos celestes…) é antiga. E se prova fosse necessária de que essa vibração é uma das mais preciosas formas de entendimento musical entre duas mentes criativas, a audição deste clássico com meio século gravado na Argentina, bastaria.

Naná Vasconcelos tornou-se, pois claro, uma incontornável referência mundial da percussão, um gigante requisitado por outros gigantes: gravou ou tocou com Gato Barbieri, Jan Garbarek, Pat Metheny, Jon Hassell, Walter Bishop, Jr, Chico Freeman e, pois claro, com a “realeza” musical do seu país, de Milton Nascimento e Caetano Veloso a João Donato, Joyce e Sérgio Mendes. Terá participado em muitas centenas senão mesmo milhares de sessões, o que é um atestado da sua enormidade. Mas em 1971, o nativo do Recife, que então ainda não tinha completado 30 anos, estava ainda no início da sua frutuosa carreira.

Em Buenos Aires para tocar com Gato Barbieri a convite do produtor e apresentador de rádio Arturo Cavallo, Vasconcelos conheceu o igualmente jovem guitarrista Agustin Pereyra Lucena e a empatia foi tão instantânea que o promotor do encontro resolveu levá-los para estúdio, onde, na penumbra, conforme pedido pelo percussionista brasileiro, os dois músicos estabeleceram um intenso e mágico diálogo. O resultado dessa sessão foi lançado na Tonodisc do próprio Arturo Cavallo e agora, quase 50 anos depois, redescobre o caminho do presente numa bem vinda reedição da alemã Altercat.

Pereyra Lucena é o autor de Brasiliana, pequena pérola lançada a meio da década de 70 que traduzia uma empatia geracional com a mais livre música do Brasil, a “música de harmonia rica”, como a descreveu Ed Motta, que o músico argentino provou conhecer como qualquer nativo de Vera Cruz, ligando-se á sua mais funda vibração (lá está…) de forma intuitiva, poética e arrebatada.

Neste álbum dividido com Naná Vasconcelos e gravado cinco anos antes de Brasiliana, Agustín começa por se revelar reverente admirador, entregando ao mestre percussionista a escrita do primeiro capítulo desta história. O diálogo de vibrações só se inicia com “Improvisação”, uma luminosa dúzia de minutos que nos mostra como a comunicação, mesmo quando os músicos, às escuras, não se olham olhos nos olhos, pode acontecer: a harmónica poesia do guitarrista, dono de um dedilhar com algo de primevo, casa de forma perfeita com o chocalhar múltiplo de Naná, que parece ir colorindo as voltas das melodias, soando como se tivesse circulado pelo estúdio, em transe, possuído e certamente elevado alguns centímetros acima do chão.

Em “Tempo Feliz” e “Conversa de Poeta” é Pereyra Lucena que brilha em solos tão comoventes quanto delicados, música imaginada para um morro carregado de luz, banhado pelo sol e pela paz.

Os dois músicos já vibram em harmonia com o universo, noutra dimensão, tendo Naná falecido em 2016 e Agustín, revela-nos a Altercat, em tempos mais recentes, vítima de cancro no pulmão.



[Tenderlonious] Ragas From Lahore – Improvisations with Jaubi / 22a

A vibração, uma vez mais, que pode estabelecer-se harmonicamente entre culturas, experiências e geografias supostamente distantes adquire contornos fascinantes quando exposta de forma musical. Neste seu bastante prolífico ano, Edward Cawthorne já nos tinha mostrado um primeiro 10 polegadas com o resultado do seu encontro em Lahore com os Jaubi, quarteto local com que gravou em Abril de 2019 numa sessão de absoluto improviso.

Aqui com Kashif Ali Dhani na tabla e vozes, Zohaib Hassan Khan no sarangi, Ali Riaz Baqar na guitarra e Marek Pędziwiatr nos drones de sintetizador, o saxofonista e flautista assinou uma aventura de procura de harmonia que é fascinante e espiritualmente intensa. A experiência é descrita em detalhe nas notas que acompanham este lançamento, mas as palavras não são necessárias para se perceber que estes improvisos com os Jaubi documentam uma demanda profunda por parte do músico britânico.

Há na tradição jazz britânica outros exemplos de comunicação estabelecida com a tradição musical daquela parte do mundo, com as Indo jazz Fusionsde Joe Harriott com o duplo quinteto de John Mayer a serem um óbvio expoente e, pois claro, a obra prima Hum Dono, que o saxofonista jamaico-britânico gravou com o guitarrista indiano Amancio d’Silva, a ser outro documento de inestimável valor e alcance nesse encontro de espíritos proporcionado pelo jazz. Obviamente que mestres americanos nomeados pelo próprio Cawthorne, como Coltrane (e um dos temas aqui incluídos tem, decerto não por acaso, o título “Impressions”) ou Yusef Lateef também buscaram nos modos da música clássica indiana um terreno para a libertação e elevação espiritual e Tender partiu para o Paquistão com conhecimento total do lastro histórico desse tipo de aventuras estéticas e a sua atitude é aqui perfeitamente reverente ainda que lhe pertença o natural papel de solista.

Mas é sobretudo de partilha, de sintonia e de harmonia que trata este encontro, feito de ciclos de êxtase e libertação, de drones capazes de moverem montanhas (ou placas tectónicas) e escalas que se elevam em espiral até aos confins do espaço que existe sobre ou dentro das nossas cabeças, com Tenderlonious a brilhar em flauta e soprano, deixando uma vez mais claro que domina perfeitamente a técnica dos seus instrumentos, mas, talvez até mais importante, as dinâmicas emocionais deste tipo de comunicação e entrega.

(O primeiro disco está disponível na Jazz Messengers de Lisboa)

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