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Ilustração: Riça
Publicado a: 24/06/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #17: Pedro Melo Alves / Hugo Raro

Ilustração: Riça
Publicado a: 24/06/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


in igma

contemporary / avant-garde music Aubrey Johnson vocalsBeatriz Nunes vocalsMariana Dionísio vocalsEve Risser piano Mark Dresser doublebass Abdul Moîmeme electric guitar and objects Pedro Melo Alves drums and percussion “in igma”, a free variation of “ignis” – latin word for fire/light and a homophone reference to “enigma”.


[Pedro Melo Alves] In Igma / Clean Feed

Resultante de uma encomenda de Serralves para a sua programação Jazz no Parque de 2019, In Igma é a resposta de Pedro Melo Alves ao desafio de montar um ensemble de música contemporânea que interpretasse composições próprias. A resposta do baterista e líder do projecto foi recrutar o guitarrista Abdul Moîmeme, o contrabaixista Mark Dresser e a pianista Eve Risser como cúmplices instrumentistas capazes de sustentar o trio vocal formado por Beatriz Nunes, Mariana Dionísio e Aubrey Johnson. O “enigma” que se entrevê no título deste projecto agora dado à estampa pela Clean Feed resolve-se sobretudo na intrincada tapeçaria tecida pelas três vozes entrelaçadas, em constante demanda bem para lá das margens do sentido, todas elas sussurros e pequenos gritos, ruídos guturais e lamentos, estalidos e soluços, soando por vezes como vizinhas em animada conversa numa língua estranha.

Na primeira parte do tríptico que cede o título a este álbum, o tom inicial é quase operático e a voz (Beatriz Nunes?) bem que poderia ser um theremin, com o quarteto instrumental a posicionar-se como fonte de ruídos aparentemente urbanos, como uma cidade que é cenário para as “conversas” daquelas três mulheres, que ora choram, ora exultam, numa língua universal que projectada de um palco é bem possível que seja entendida de forma plena por uma audiência que se concentre na performance que exibe uma nítida dimensão física – estas vozes pertencem a corpos e estes corpos parecem mover-se pelo campo do espectro sonoro.

O piano quase sempre abstracto, muito mais textural do que melódico, o contrabaixo feito drone pela passagem do arco sobre as cordas, a guitarra como tradutora do vento ou como fonte de partículas sónicas em suspensão e a percussão sempre fragmentada são ferramentas de exploração do que se queda para lá da harmonia, do tempo ou da tonalidade, elementos de construção da banda sonora possível de um filme só capaz de ser visto de olhos firmemente cerrados, sem princípio nem fim, sem luz ou enredo, e ainda assim absorvente pela estranha acção que se estende entre as vozes e os instrumentos.

Em “In Igma II – On Meaning” é o piano que conduz, assumindo farrapos melódicos como sugestivas peças de sentido que o tempo acaba inevitavelmente por desmontar, com a lenta implosão da peça a acontecer perante os nossos ouvidos que se vão alegremente perdendo entre as diferentes personagens de tão intrigante acção. Um enigma faz-se da tensão entre os elementos que o definem e a permanente possibilidade de revelação, da resolução que o desmonte e exponha. E assim acontece nesta peça, ela mesma apoiada nessa ideia de tensão permanente: entre cada um dos instrumentistas e as vozes, entre o silêncio e os diferentes ruídos que o tornam visível. Mais um claro triunfo para Pedro Melo Alves.



[Hugo Raro] Connecting the Dots / Carimbo Porta-Jazz

É apenas uma pequena entrada num vasto currículo, mas os leitores do Rimas e Batidas mais sintonizados com os mais refinados marcos da memória recente do hip hop nacional hão-de ter escutado o piano de Hugo Raro em “Carrossel das Mentiras”, um dos melhores momentos do excelente Árvores, Pássaros & Almofadas, trabalho que Minus lançou em 2014. Raro fez, pois claro, muito mais e além de um longo percurso académico acumula igualmente uma sólida experiência em múltiplos ensembles incluindo, e para mencionar apenas um exemplo mais recente, o Impermanence de Susana Santos Silva que já este ano nos deu um fantástico The Ocean Inside a Stone.

É como líder que Hugo Raro se apresenta neste interessante Connecting The Dots dado à estampa pela Carimbo Porta-Jazz. Ao lado do pianista surgem João Mortágua (saxofone alto), José Carlos Barbosa (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria), peças de um sólido e experiente quarteto que se espraia por 7 composições (presumivelmente – não há indicação – da autoria do líder da sessão) bem registadas por Serafim Borges numa gravação límpida no estúdio Groove-Wood.

Há amplo espaço para cada um dos músicos expor os seus consideráveis dotes, com o saxofone de Mortágua a assumir naturalmente a dianteira solista logo no arranque de “O Bom, O Mau e os Vilões”. Entre o apelo da tradição bop (e – elogio – há momentos em que o quarteto soa a típica working band de clube de jazz nova-iorquino: escute-se “In Between” caso seja necessária prova) e uma pontualmente mais aberta veia exploratória e abstracta (“Catrapum” é bom exemplo), este Connecting The Dots (lá está…) também dá a Raro a oportunidade de exibir dotes baladeiros. “Terra Molhada”, peça com piano pleno de lirismo na dianteira, ou “Old House”, com Mortágua a ecoar as lições dos grandes mestres e Raro a mostrar-se subtil contraponto harmónico, são momentos-chave deste alinhamento que se resolve num exótico “Era Uma Vez”, com Raro e Cavaleiro a entrelaçarem cadências quebradas que sustentam a sugestão melódica orientalizante expressa no alto. É o tema em que Hugo Raro assina o seu mais expansivo solo, com a mão direita a voar segura e melodicamente inventiva antes da história para que o título remete terminar numa toada mais melancólica.

Diferentes modos rítmicos, múltiplas nuances melódicas e emocionais, estes pontos unidos aqui pelo quarteto liderado por Hugo Raro revestem-se de óbvio interesse e servem de afirmação veemente das capacidades de um líder que espero poder reencontrar em mais sessões a serem carimbadas num futuro tão próximo quanto possível.

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