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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 05/01/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #111: Nduduzo Makhathini & Mbuso Khoza

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 05/01/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Nduduzo Makhathini & Mbuso Khoza] Abasemkhathini Vol – I / Ed. de autor

Saiu no dia 25 de Dezembro, este álbum do pianista Nduduzo Makhathini — que tanto se destacou nas listas de final de ano graças ao seu brilhante In The Spirit of Ntu (Blue Note) — com o diseur/poeta/vocalista Mbuso Khoza e que conta ainda com Justin Bellairs no saxofone alto. Uma maneira singular e feliz destes artistas nos desejarem a todos um feliz kwanzaa e de celebrarem, como Makhathini começa por explicar, a ideia de comunidade. 

Nas parcas notas de lançamento, Khoza esclarece-nos: “uMkhathi é um espaço (também um lugar e um tempo) que se tornou conhecido pelos nossos antepassados como um ponto de partida cosmológico fundamental. Após vários engajamentos de uMkhathi, os nossos antepassados também descobriram que, em tal paradigma, os seus pensamentos (como sinais) poderiam produzir mudanças no mundo através de uma invocação de “eus” primordiais. Estando eMkhathini onde está o espaço, Makhathini está no meio desse espaço enquanto também invoca noções de tempo”. E, depois, conclui: “Tudo isto e muito mais está codificado nos nossos apelidos (e nomes de clã), como uma ligação simbólica. E através disso, estamos a abrir-lhe um convite para vir dançar connosco no espaço”. Comunidade, então.

Gravado ao vivo perante uma entusiasmada audiência no Blue Room dos Heritage Studios da Cidade do Cabo, África do Sul, no passado dia 17 de Setembro, este Abasenkhathini Vol – I é uma extraordinária surpresa de final de ano que serve como mais uma prova definitiva da abundância criativa que emana hoje daquele país, com a música a servir ainda como ferramenta fundamental no processamento da sua particular história. E daí a presença no alinhamento de várias composições de Princess Magogo, uma inescapável figura fundacional da cultura zulu da primeira metade do século XX e, por isso mesmo, uma referência de identidade e resistência. Para lá das quatro peças compostas ou ligadas a Magogo, o alinhamento comporta igualmente composições de Makhathini – incluindo “Unonkanyamba”, uma das mais belas peças de In The Spirit of Ntu, e também “Isgekle”, gravada em 2020 pelo trompetista Ndabo Zulu, figura-chave na cena de Joanesburgo.

Este álbum vale pela sua música, claro, pelo contexto em que foi registado, igualmente, mas também pelos discursos que o pontuam: entre cada faixa, Nduduzo e Mbuso contam histórias e reflectem sobre as suas vidas e música, ajudando a compreender de forma mais aguda a música que aqui se apresenta. A dada altura, o pianista explica o que ali os leva: “Queremos que entendam como estas canções foram enunciadas a partir de uma mundivisão muito particular que, de forma incrível, sobreviveu às catástrofes do tráfico de escravos, do colonialismo e do apartheid, mas que continua determinante para nós, o povo africano”. E depois, Makhathini questiona: “O que é que consideramos ser nosso?” As sérias questões de opressão histórica e centenária e a sobrevivência de uma cultura que era oposta aos modos coloniais, quando tudo foi feito para a suprimir, dominam o assertivo, inteligente e tranquilo discurso do líder e é, de facto, impossível dissociar essas ideias, esses pensamentos, da música aqui apresentada, que surge envolta numa profunda espiritualidade, mas também não renega uma festiva exaltação que foi sempre alavanca de resistência, sobrevivência e transformação.

Mbuso Khoza também questiona a ideia de “herança” e como se carrega esse peso para o futuro antes do trio se atirar a “Yini Bafowethu”, de Princess Magogo, uma tocante canção em que a voz de Khoza sobrevoa uma melodia enunciada em uníssono por Makhathini e Bellairs. Há aqui, claramente, a ideia de que se fala uma língua comum, e nem sequer me refiro ao isiZulu da maior parte das letras, nem sequer aos diferentes idiomas musicais que aqui se cruzam – o jazz, claro, mas também os sons da tradição zulu -, mas antes a uma estruturante língua emocional que liga os três artistas com laços indestrutíveis. Ouvir este trabalho de um só fôlego garante teletransporte até ao Blue Room daquele estúdio da Cidade do Cabo no final do último Verão. A música – e a sua escuta – torna-se lugar que é possível habitar, fechando os olhos e deixando que o som nos mova através do espaço. Em “Emlilweni (umlolozelo)”, uma composição de Makhathini em que se abre espaço para a interpolação de uma canção de embalar tradicional que Princess Magogo também gravou, convivem uma dimensão pronunciadamente rítmica (que aliás marca boa parte da música aqui apresentada) e uma inventividade enunciada nos solos que arrebata nos seus mais intensos momentos. Mas no que toca à intensidade, não há nada que nos prepare para a desarmante beleza de “Zul’eLiphezulu”, uma balada de tristeza sem fim escrita por Mbuso Khoza e pelo pianista Themba Mkhize a que Makhathini se entrega com alma exposta, dando-nos uma lição de refinada dimensão poética. 

Melhor presente que se poderia pedir, porque carrega em si todo um passado que nunca desistiu do futuro.

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