Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Desidério Lázaro] Oblivion / AsUR
O saxofonista Desidério Lázaro tem exposto a amplitude do seu som em diversos contextos – em duos com piano ou bateria, em trios… –, prova de uma vontade exploratória que o tem mostrado a correr riscos, condição fundamental a que todos os criadores precisam de se submeter para avançarem. Em Oblivion, o mais recente trabalho numa já considerável discografia em nome próprio que se estende por mais de uma década de edições (a estreia em nome próprio remonta a 2010, com Rotina Impermanente, trabalho do seu trio lançado pela JACC), faz-se acompanhar por Ricardo Pinheiro em guitarra (em seis das oito faixas do álbum) e Mário Delgado no mesmo instrumento (nas duas restantes peças do alinhamento) e ainda por Cícero Lee no baixo e Carlos Miguel na bateria. No disco surgem também o guitarrista Ricardo Faustino (que se junta a Ricardo Pinheiro no tema “Thin Line) e Mimi Froes na voz (em “Eclipse”, faixa que encerra o álbum). As peças são todas da autoria de Lázaro com excepção de “Eclipse” que tem co-autoria de Froes.
E é da tensão estabelecida entre um pulsar algo roqueiro e decididamente eléctrico que anima “Supernova”, “Rebound” (os dois temas com participação de Mário Delgado…) e parte de “Thin Line”, com nuances mais funk ou até reggae a oferecerem contorno aos grooves, e uma vocação mais, vá lá, baladeira, que toma conta de composições como “Morning Hum”, “Suspension of Disbelief”, “Song for The End of Times”, “The Final Journey” e “Eclipse” e que se envolvem em texturas mais acústicas (é na guitarra desprovida de corrente que Pinheiro se faz sobretudo ouvir) que se faz este álbum que, sem grandes surpresas ou rasgos disruptivos, se apresenta com um jazz que sem procurar desbravar novos caminhos ainda assim apresenta argumentos sólidos no repisar de ideias já com lastro, com Desidério Lázaro a exibir um saxofonismo adulto e seguro, de traços elegantes, como tão bem demonstrado na forma como se “deita” na cama acústica dedilhada por Pinheiro em “Suspension of Desbelief”.
[Bernardo Tinoco & Tom Maciel] NoMad Nenúfar / Clean Feed
Cinco peças ao todo com Bernardo Tinoco (saxofones alto e tenor, duduk, flauta) e Tom Maciel (piano, sintetizadores, caixa de ritmos) a procurarem adaptar-se aos tempos correntes partindo em busca de uma funcional (no sentido “palco” do termo), mas ainda assim distinta, voz em duo. João Pereira junta-se-lhes na bateria em três das peças, mas a sua discreta presença parece indicar que os temas possuem argumentos para resultarem igualmente em duo. Claro que Tinoco e Maciel, acabados de sair de um sério e sólido percurso académico, têm os diferentes cânones bem presentes e hão-de ter estudado as duplas que, antes deles, exploraram as possibilidades de encaixe existentes entre piano e saxofone, mas há igualmente por aqui uma nítida modernidade que não passa apenas pela integração de electrónica nas composições, expandido possibilidades texturais, harmónicas e discursivas, mas que se sente também na forma desenvolta como cruzam linguagens integrando nas suas composições ecos (mais discretos ou mais presentes) de jazz, música contemporânea, tradicional e de géneros mais comprometidos com o grande oceano pop contemporâneo. E há também um refrescante e subtil humor, não apenas expresso nos títulos – “Desculpa o incómodo”, “Provisoriamente sem título”, “Este comboio já para em Arroios” e até “5 Minutos” (tem 7 e 24 segundos, na verdade…) – mas também na forma lúdica como os dois instrumentistas “brincam” com os seus instrumentos, levando-os a serem ferramentas de expressão emocional tanto quanto musical: “5 Minutos” é disso bom exemplo, com delicada introdução pianística de Maciel, que na forma como ataca as notas parece enamorado da reverberação do instrumento, a que depois se junta o sopro de Tinoco, todo ele contenção até que um som mais electronicamente recortado o inspira a partir para uma meditação que melodicamente parece carregar ecos de alguma clássica do século XX (Prokofiev?…), enquanto Maciel, por baixo, gera trovoada com fagulhas sintetizadas a que adiciona piano para boa medida. Podia ser peça de banda sonora de mistério de espionagem… Super interessante.
[João Lencastre/Leo Genovese/Drew Gress/Pedro Branco] Safe in Your Own World / Phonogram Unit
Primeiro registo do baterista João Lencastre na Phonogram Unit e logo acompanhado por Drew Gress no contrabaixo, Leo Genovese no piano e Pedro Branco na guitarra. Lencastre não tem parado quieto: o seu nome surge, nos últimos três anos, em registos de Ernesto Rodrigues, Nau Quartet do seu irmão José, à frente do seu próprio projecto Communion e ainda em lançamentos em nome próprio – No Gravity e Parallel Realities – em que surge ladeado por gente como João Hasselberg, Rodrigo Pinheiro ou Pedro Branco. Essa discografia oferece provas sólidas da sua capacidade de encaixe em diferentes desafios, mas ainda assim não representativas da total amplitude do seu trabalho se tivermos em conta não apenas registos de estúdios que ainda não foram lançados, mas também as aventuras em que tem embarcado em diferentes palcos com os vários projectos com que toca regularmente.
Neste novo álbum, Lencastre surge então em zona de conforto, seguro no seu próprio mundo, aquele que se estende entre os campos da música que é composta ou pelo menos estruturada e a que resulta do livre confronto de ideias, experiências e linguagens, quando no mesmo espaço se juntam pessoas que partilham de idênticos espírito e vontade de descoberta. Explica, nas notas de lançamento, o próprio músico que apesar de já ter explorado diferentes formatos, do trio ao octeto, esta foi a primeira vez que gravou em quarteto, impondo-se assim um novo desafio que superou com total classe, diga-se.
“Esta gravação aconteceu durante uma digressão de dois concertos com Leo Genovese e Drew Gress. Tivemos um dia de folga e como eu tinha escrito música nova para a ocasião, pensei que seria uma boa oportunidade para a gravar”, explica. “Conheço Leo há quase 20 anos e tocamos juntos muitas vezes desde então, e desde que me lembro que sou um grande fã do Drew e foi incrível tocar com ele pela primeira vez e partilhar estes momentos musicais com ele”. Para chegar ao desejado formato de quarteto, Lencastre pensou imediatamente em Pedro Branco que assegura ser “um guitarrista e músico incrível” e logo “uma grande adição à música”.
O facto de a sessão (que decorreu nos já extintos estúdios Atlântico Blue, em 21 de Outubro de 2021, sob a orientação de André Tavares) ter demorado apenas três horas e de todos os temas, com excepção de “Staying Power”, resultarem de primeiros takes, diz-nos que a música que aqui se apresenta é o feliz resultado do encontro de músicos que se entendem e que percebem o mais profundo significado das palavras “comunicação” e “partilha”. Lencastre não tem dúvidas: “A música soa fresca e espontânea, onde todos correm riscos e deixam o momento dizer-lhes o que tocar, que é para mim o que esta coisa chamada Jazz deve ser”. “Deve” funciona para expressar o pensamento de João Lencastre, embora “pode” talvez abrisse mais o espectro de possibilidades, mas isso não é realmente importante aqui. O que é de facto relevante é que neste álbum a música flui de forma natural, alongando-se entre passagens mais abstractas, de enorme beleza e fantasia, e outras mais assertivas em que os músicos se encaixam como peças de lego em construções melódicas, harmónicas e rítmicas de grande inventividade e frescura. Seria bom vê-los agora a partirem daqui para novos lugares, talvez num palco perto de nós…