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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 21/06/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #100: Flock / Jean Carne, Adrian Younge and Ali Shaheed Muhammad

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 21/06/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Flock] Flock / Strut

Estamos em 2022, já ninguém está num único lugar e o isolamento, embora possa acontecer fisicamente, não é sequer uma opção numa era em que as nossas projecções digitais nos colocam noutro lugar qualquer de forma instantânea. Tudo se liga e entrecruza. E em nenhuma outra dimensão isso será tão real quanto na música contemporânea. A complexa e ultra-orgânica cena jazz britânica do presente é um bom reflexo dessa condição: parte da sua força advém, seguramente, do facto dos músicos funcionarem num circuito que potencia colaborações, encontros em palco ou estúdio, experiências múltiplas, umas mais pontuais, outras mais duradouras, mas, certamente, todas significantes.

O projecto Flock, uma espécie de supergrupo que espelha a força criativa desse novo jazz britânico, é disso um óptimo exemplo: Bex Burch (Vula Viel), Danalogue The Conqueror (The Comet is Coming, Soccer96), Sarathy Korwar (Upaj Collective), Al MacSween (Maisha) e Tamar Osborn (Colluctor) juntaram-se durante o confinamento para uma sessão do Boiler Room e cimentaram ligações desde então. O vibrafonista Bex Burch apontou o caminho: “Escrevi textos como partituras para a sessão colocando o ênfase na respiração e na capacidade de nos escutarmos uns aos outros. Foi uma nova viagem ao desconhecido para todos nós, em que nunca estivemos totalmente no controlo. Todos vieram, respiraram e trouxeram as suas aberturas de coração, ouvidos, pulmões e asas”. 

Um bando de pássaros ou rebanho de animais (Flock), tem a capacidade de se mover como uma unidade, desenhando com os seus movimentos uma fluída e harmónica geometria que muitas vezes desafia o entendimento humano. Essa é, precisamente, a força da música que este grupo apresenta no seu registo de estreia. E também a capacidade de não existir num plano estacionário ou idiomático, desenhando nas diferentes peças tangentes mais ou menos próximas a outras culturas e práticas musicais: o minimalismo americano de Terry Riley ou Steve Reich, a música gnawa, o “quarto mundismo” de Jon Hassell e, obviamente, o pensamento cósmico de Sun Ra parecem ter funcionado como coordenadas num álbum de música entusiasmante e irrequieta feita por um conjunto de criativos que para estúdio levou um alargado arsenal de instrumentos e efeitos (Tamar Osborn, por exemplo, ao seu mais recorrente barítono acrescentou ainda clarinete baixo, saxofone soprano, flauta e pedal de loops), com especial atenção aos recursos electrónicos. 

O resultado bem patente nas 10 peças do alinhamento deste homónimo registo dos Flock é uma música expansiva, inquisitiva e ludicamente curiosa que vibra com detalhes texturais, mas que também consegue soar determinada, como se cada um dos exploradores envolvidos nesta expedição soubesse exactamente para onde se dirige, mesmo não tendo um mapa que sirva para orientação. Tal como um bando de aves capaz de migrar de um continente para outro, sobrevoando um oceano sem outro GPS que não o instinto natural afinado ao longo de incontáveis gerações. Isso sente-se de forma particularmente intensa na “tour de force” do álbum, “How Many Are One”, peça de quase 14 minutos que começa por se desenhar com as esparsas contribuições de Korwar e Osborn e que pacientemente se vai entrelaçando numa vívida e reverberante tapeçaria sónica que relembra a fantasiosa exótica do trompetista Jon Hassell – música para um mundo que não existe noutro lugar que não seja na imaginação dos seus criadores.



[Jean Carne, Adrian Younge & Ali Shaheed Muhammad] Jazz Is Dead 12 / Jazz Is Dead

Jean Carne é a protagonista do primeiro álbum da segunda série de lançamentos da Jazz Is Dead recentemente anunciada com o volume 11 (que deixa saber que álbuns com veteranos como Henry Franklin, Lonnie Liston Smith, Tony Allen ou Phil Ranelin e Wendel Harrison serão igualmente lançados ao longo dos próximos meses). Os produtores, compositores, multi-instrumentistas e ideólogos da Jazz Is Dead prosseguem assim a sua missão de devolver ao presente figuras tutelares que a história já tinha maioritariamente arquivado (na primeira série lançaram novos álbuns de Brian Jackson, Doug Carn, Gary Bartz, Roy Ayers ou João Donato). E em boa hora o fazem, chamando de volta a mesma Jean Carne que, ao lado do então marido, o pianista Doug Carn, inscreveu o seu nome numa série de clássicos lançados pela mítica Black Jazz Records, incluindo os muito cobiçados (e oportunamente reeditados) Infant Eyes, Spirit of the New Land e Revelation, lançados entre 1971 e 1973.

Se nos já mencionados clássicos, Carne se distinguiu por aplicar palavras a peças sobretudo instrumentais de John Coltrane, Horace Silver, Wayne Shorter, Bobby Hutcherson ou McCoy Tyner, colocando temas como “Acknowledgment”, “Naima”, “Peace”, “Infant Eyes”, “Little B’s Poem” ou “Contemplation” noutro plano graças a uma amplitude vocal considerável que encaixava na perfeição em arranjos que denotavam raízes bop, mas não enjeitavam, antes abraçavam as diferentes nuances da modernidade, com incursões por terrenos de uma maior espiritualidade ou até de uma mais vincada aproximação ao libertário groove enunciado por James Brown, aqui, já equipada com uma considerável experiência adquirida ao longo de 75 agitados anos, Jean soa tão segura como em qualquer outra altura, mostrando-se perfeitamente capaz de encaixar improvisos vocais e arremedos poéticos nas bases que a dupla de compositores e produtores preparou. 

É importante perceber que a música que a The Midnight Band (o grupo de estúdio comandado por Adrian e Ali) executa navega livremente pelo vasto oceano de águas profundas da Grande Música Negra Americana, equilibrando jazz de diferentes vibrações (pós-bop, modal, fusão, espiritual…), R&B, soul e funk com arranjos de vocação cinemática e cadências rítmicas claramente influenciadas pela visão sampladélica da história a que o hip hop nos habituou. O tom geral é de sentida reverência e quase se pressente que a música foi gravada com cada um dos músicos de sessão vestidos com a sua melhor roupa domingueira, na verdade a única forma de não destoarem ao lado de uma estrela que – na nossa imaginação, pelo menos – surge sempre deslumbrante em vestidos compridos de corte irrepreensível. Esse respeito pela história traduz-se numa música de elegância extrema feita para servir a prestação de Carne, claramente entusiasmada com a possibilidade de reutilizar o instrumento que tanto brilhou em registos de Earth Wind & Fire, Roy Ayers, Dexter Wansel, Norman Connors ou Grover Washinton, Jr.. Essa energia contagiante que atravessa “People of the Sun”, “The Summertime” ou “Black Love” assegura inequivocamente que esta é música viva que até pode ter vontade de embarcar numa máquina do tempo, mas só se for para viajar para o futuro.

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