Chegámos ao recinto mesmo a tempo de não perder a filha do rapper do fato e gravata (Grand Daddy I.U.), Yaya Bey, que se estreou em Portugal num dos palcos secundários do NOS Alive e fez questão de deixar a sua marca. Enérgica e socialmente ativa, a voz de Brooklyn mostrou que não é “apenas uma entertainer”, não teve papas na língua e aproveitou a ocasião para nos contar um brevíssimo resumo das últimas três semanas que tem passado pela Europa, expondo um tema que leva séculos de atraso.
Não houve muita gente que se deslocasse propositadamente ao palco WTF Clubbing do certame para ver a americana tocar ao vivo. Mas como é costume neste tipo de festival, também não tardou muito até que quem por ali passava ou pedia uma cerveja a curtos metros de distância fosse sugado para a plateia vazia, em frente a um palco de onde já se escutavam as primeiras notas. O seu som sugeria o r&b como uma aposta segura para o que iria ali acontecer, mas acabou por ser muito mais do que isso.
Como também é habitual neste ambiente festivaleiro, o primeiro tema serviu para ajustar o volume dos microfones e instrumentos enquanto Yaya aquecia a voz para o que estava para vir, e não deixou passar o primeiro intervalo entre músicas para dar voz à narrativa: “É muito bom estar aqui. Há três semanas que tenho viajado pela Europa e posso dizer-vos que não é [um sítio] fixe, mas Portugal é bastante porreiro. Hoje fui à praia e vi mais pessoas de cor do que em qualquer outro lado na Europa”, partilhou em jeito de introdução.
“Mas vocês têm que pagar indemnizações ao Brasil. Quando chegarem a casa tem que sentar-se à mesa com os vossos pais e avós e explicar-lhes sobre como os europeus foderam África e a América do Sul com o seu colonialismo enquanto traficaram milhões de pessoas”, disse, concluindo as declarações iniciais de um tópico que voltaria a abordar mais à frente.
No palco, Yaya Bey partilhou espaço com um teclista, um baterista e uma guitarrista que se mantiveram discretos durante os curtos e incisivos discursos da cantora, mas que tampouco tiveram quaisquer dificuldades em relaxar e aproveitar o tempo em comunhão musical com os fãs. A faixa “keisha” – segunda do alinhamento – foi merecedora de uma interpretação virtuosa e um belo exemplo disso mesmo, tendo terminado numa curta jam que serviu de ponte para o tema seguinte.
Findado o tema, novo intervalo entre músicas e mais um discurso – “Sei que estou a incomodar algumas pessoas com as minhas palavras, consigo ver algumas caras, mas quero que saibam que estou a ser humana e não puramente uma entertainer. (…) O mundo é um sítio fodido, e se queremos terminar com a transfobia, a homofobia, o sexismo, o racismo… temos que ter estas conversas”, rematou encerrando o tema e embrenhando-se nas canções do seu último par de projetos, Remember Your North Star e Exodus the North Star.
“nobody knows” foi um desses temas que mais se destacou ao vivo, apesar de ser também um dos que menos streams tem no Spotify. No NOS Alive, a faixa ganhou uma dimensão instrumental superior, bem ao jeito do blues rock, deixando os músicos libertar toda a eventual ansiedade e nervosismo que o palco lhes possa criar com breaks de bateria e arranjos intrincados. A mesma fórmula foi ainda aplicada a temas como “blessings”, em que os arranjos divergiram bastante da versão de estúdio, mas mantendo o minimalismo.
Retornando ao nome que nos levou até àquele palco, Yaya ia comprovando as nossas suspeitas e vocalizava um timbre que não nos é fácil de esquecer. Os mais distraídos, se fechassem os olhos, podiam julgar estar a ouvir Alicia Keyes. No final, o concerto até terminou com uma nota positiva da cantora que, entretanto, descrevera os portugueses como “o seu povo favorito” entre os Europeus. Elogiou a comida e — não se esqueçam desta — as pessoas que “lavam as mãos quando saem da casa de banho”. Mas, sobretudo, Yaya parece ter adorado as nossas praias.
Pela quarta vez no NOS Alive e francamente ativos no mercado da música ao vivo em Portugal, os Throes + The Shine não faziam parte dos nossos planos de cobertura à partida para este festival. Mas é difícil contrariar o corpo e a mente perante ordens tão expressivas e, lá do fundo, atraídos pelo som, tivemos que vir mexer um pouco o pé mal ouvimos as primeiras notas de “Balança”, um dos hits da originária da cidade do Porto que consta do álbum Enza.
O nome do grupo que cose o kuduro e a eletrónica com linhas de rock foi suficiente para atrair uma plateia composta logo ao início do concerto, mas sabemos que a energia de Throes + The Shine é bem capaz de superar o seu nome. Durante a atuação não faltaram momentos fantástico que chegaram a cativar os ouvidos e corpos dançantes não só de quem pisava o chão da tenda onde se montou o palco WTF Clubbing, mas quem circulava pelas zonas circundantes e parava para escutar e dançar um pouco. E, que nem formigas, vimos grupos que para ali se dirigiam em curtos carreiros – sem nunca parar de abanar o rabiosque.
E mesmo esgotando alguns dos principais singles ainda numa fase inicial do concerto, tudo correria de acordo com as previsões do vocalista, Mob Dedaldino: “É a quarta vez que nos pisamos este palco. A primeira foi fixe, a segunda incrível e a terceira foi top, mas esta vez vai ser do caralho!”. E foi mesmo — que o digam as cerca de 30 pessoas que terminaram a atuação a partilhar o palco com os artistas.
Diretamente do Reino Unido, os Ibibio Sound Machine prometeram dar groove à noite e não só não desiludiram, como acabaram por representar uma das grandes surpresas do festival. Numa combinação fatal de ritmos dançáveis, o grupo de Londres conjuga a eletrónica, sonoridades afro e funk e um jeito de tocar bem “jazziano” para uma receita secreta que nunca – repito, nunca! – poderia resultar mal ao vivo.
No NOS Alive, a formação liderada pela vocalista Eno Williams apresentou um membro extra em relação à composição de estúdio, que conta com apenas 7 elementos. Aqui, com a seção de teclas reforçada por um teclista a tempo inteiro (já que as teclas costumam estar a cargo dos três homens que integram também a seção de sopros), um dos membros da banda pôde poupar alguma energia sem ter que se desdobrar entre dois instrumentos, focando-se apenas nos sopros. Esta é talvez a seção mais característica e diversificadora do grupo, que combina particularmente bem com os dois percussionistas encarregados de uma bateria tradicional e um kit de percussão focado em bongos e tarolas, que lhe conferem grande parte da sonoridade afro que apregoam.
Igualmente fascinante é a voz poderosa de Eno Williams, a vocalista de origem Nigeriana que cresceu justamente na região que dá nome ao coletivo. Praticamente sem filtros, a alto-mezzo-soprano consegue destacar o seu instrumento entre a natural algazarra que compõe uma banda com 7 instrumentistas, mesmo no ambiente sonoro hostil que muitas vezes compõe os festivais de verão, e dar-nos a escutar as letras que compõe em inglês e ibibio com surpreendente clareza.
Contentes terão ficado os que tiraram parte do seu tempo para ouvir Ibibio Soudn Machine, mesmo que isso significasse sacrificar o melhor lugar possível para assistir a Red Hot Chili Peppers, cujo início do concerto se sobrepunha com a reta final deste. Quem optou por não fazer o sacrifício, fica com a recomendação para ouvir nas plataformas de streaming e a dica de que o último álbum da banda, Electricity, tem produção de Hot Chip.