Num relatório publicado em 2017, a empresa americana Nielsen anunciava que, pela primeira vez na história, o hip hop ultrapassara o rock como género musical mais ouvido e influente. A verdade é que há uma plenitude quase universal no que diz respeito ao estilo de música: é descritivo por natureza, mas combativo e provocante por obrigação. Há um lugar para toda a gente, e a noção deste safe space criado é uma porta de entrada cada vez mais incremente para que certas fracções da sociedade — que se sentem principalmente injustiçadas pela mesma — se vejam, se contemplem e se orgulhem da sua longa e tecida tradição.
Fatimah Nyeema Warner é vista como um rosto refrescante desta nova geração do hip hop: talvez pela sua timidez pouco usual e pelas suas letras introspectivas e nada regurgitantes da sua ostentação; ou precisamente por não corresponder aos mais estereotipados clichés do estilo que se destaca como uma voz colossal. Na noite de sábado, em Lisboa, o reputado Lux Frágil foi palco para que conhecêssemos melhor as histórias que durante anos ficaram contidas nas paredes de pequenos estúdios de Chicago.
O mote para este encontro foi o tão aclamado álbum de estreia, Room 25, que se posicionou bem alto nas escolhas dos críticos – tendo sido também considerado o melhor álbum internacional pelos membros do Rimas e Batidas em 2018. Ao ouvirmos o disco, percebemos rapidamente que as canções diarísticas dão espaço para um momento introspetivo, verdadeiro e único. E assim se viveu a tão aguardada primeira passagem de Noname por terras lusófonas. O relógio quase chegava às 23h30 quando subiu ao palco: de copo vermelho na mão, cabelo esticado e All-Stars, nas primeiras palavras viu-se uma inibição que sem esperar muito desvaneceu-se consoante as músicas: “Hey, everyone”, disse a uma plateia perante uma sala esgotada. Em poucos segundos, o instrumental de “Self” foi disparado e o ambiente assentiu-se: “Y’all really thought a bitch couldn’t rap, huh?”, cantou minutos antes de provar devidamente os seu dotes em “Blaxpoitation”. Noname tem este visceral talento de saltar entre o político e o pessoal num piscar de olhos: afinal de contas, todas as experiências dela são vividas à flor da pele, trazendo as memórias de uma jovem afro-americana para a boca do mundo. O pessoal torna-se universal e na noite de sábado, numa plateia maioritariamente frequentada por jovens brancos e do género masculino, todos compreenderam a visão de Fatimah – e todos dançaram ao seu ritmo.
Há temas inimputáveis na sua discografia, mas tal facto não impede a personalidade soalheira de certas músicas a virem à superfície. Rapidamente, Noname recorreu às faixas de Telefone, a primeira mixtape lançada em 2015, e temas como “Diddy Bop”, “Sunny Duet” e “Reality Check” tiveram um grande apoio por parte da audiência, que cantava freneticamente. É compreensível que as músicas deste primeiro trabalho sejam recebidas com mais entusiasmo – até porque tiveram mais tempo a levedar –, mas músicas mais recentes como “Prayer Song” ou “Part of Me”, lá mais para o fim, foram igualmente recebidas com calor e aconchego.
Noname é uma nata contadora de histórias e várias foram as interrupções entre canções com o objectivo de ter dois dedos de conversa com o público. A maneira energética e próxima com que interage é o quebra-gelo perfeito, quer para quem a assiste como para ela também. “Ficámos 10 minutos presos num elevador enquanto descíamos para o palco. É assim que vocês tratam as pessoas aqui?”, disse num tom cómico. Quem a ouve sabe que Noname é brutalmente honesta consigo mesma, por isso só se esperava o mesmo na maneira como trata a sua audiência: há momentos de auto-análise, que facilmente são transcritos como uma celebração da sua autenticidade, e em “Don’t Forget About Me”, a gema neo-soul de Room 25, caiu-nos uma nostalgia taciturna. No entanto, há também momentos que mostram o outro lado da honestidade: desacerbada, sem filtros, uma confusão autêntica que nos faz olhar para a confusão das nossas próprias vidas. “Forever” foi assim: “Quero que saibam que me esqueci de pôr o meu sutiã hoje, por isso se não querem ver mamas a balançarem de um lado para o outro, então é bom que façam barulho”.
Noname não tem reportório suficiente para que se chegue ao fim de um concerto e afirmar que faltou aquela ou a outra música, o que por um lado é bom, uma vez que dá espaço para cada canção respirar e ganhar assim uma relação individual com cada um. E “Ace”, originalmente com a participação de Saba e Smino, foi recebida como um “California Love”: um clássico do rap independente que facilmente superará o teste do tempo. Já em “Montego Bae”, momento seguinte, Noname pediu à audiência: “keep the energy fucking coming”. Houve aqui um pequeno percalço e ela esqueceu-se de parte da letra, recomeçando sem grandes problemas. Mas – como disse –, a atitude genuína e despreocupada fez com que parecesse um momento planeado e que funcionasse como uma parta orgânica do concerto.
E tudo isto faz sentido quando chegamos a “Window”, ainda do novo disco: a música soa muito vaudeville, muito r&b dos anos 90, muito Andre 3000, muito D’Angelo – Noname está a percorrer o cânone da canção clássica urbana que lhe permite, ao mesmo tempo, a liberdade de criar algo novo a partir do zero. Está a unir as pontas, e a aperfeiçoar o seu show”woman”ship à medida que cresce enquanto artista e aprende enquanto ser humano: “Empathy was empathy only when you was into me/ Kiss me back to save your happy, happy”.
O que no instante pareceu pura magia de controlo pode ser compreendido por um equilíbrio entre um conhecimento extremo da típica e tradicional composição americana e intensidade na sua entrega – sem nunca perder aquela qualidade de indagação ao mundo exterior, que, na sua génese, é feita puramente de amor ainda ingénuo, tal como a mesma cantou delicadamente em “Regal”: “All I am is love”. Os mais velhos olham para Noname e vêem uma jovem Erykah Badu de boca cheia, ou uma Lauryn Hill nos tempos de “Everything Is Everything”. Mas ela é a genialidade de ser ela própria nos bons e nos maus momentos: cheia de imperfeições, inseguranças e ansiedades. Todos estes factores somam para que cada pessoa se reveja em cada letra, cada spit, cada verso. Em “Shadow Man”, um encore feito essencialmente em acapella, o público cantou com ela em uníssono, como se a canção fosse escrita por cada um de nós naquela sala.