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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/05/2025

Em tons de vermelho — de alerta, de sangue e de vida.

Nayr Faquirá: “Este álbum é um manifesto que vem de um lugar muito pessoal”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/05/2025

Tudo começa com uma espécie de aviso — uma introdução onde se sobrepõem mensagens de voz que se tornam crescentemente inquietantes, à medida que mais e mais pessoas tentam, sem sucesso, contactar Nayr Faquirá. Está dado o primeiro sinal de alerta: esta não vai ser uma viagem marcada pela leveza e pela celebração. Será, antes, um gesto íntimo de dar corpo ao que o silêncio manteve suspenso nas entrelinhas durante demasiado tempo.

Pensado como uma viagem emocional em três atos, Entrelinhas é um álbum de uma mulher a tentar falar de amor, mas que é constantemente interrompida pela dor, pelo trauma, por demónios que levam tempo a exorcizar. E se nos dois primeiros atos esses demónios são expostos com crueza, coragem e desassombro, a caminho do fim eles vão-se diluindo num vermelho que se vai esverdeando em direção ao mar. Afinal, Nayr sempre nos disse que queria ganhar asas.

Nesse voo que se projeta no futuro, este é um álbum que segue o rumo traçado pelo R&B das suas raízes, mas que se vai desviando com liberdade em direção à soul, ao afrobeat, e também a um hip hop melódico, onde se nota uma crescente atenção à escrita, aos jogos de palavras, à diversidade de flows. Uma viagem onde a palavra — íntima, confessional, por vezes quase diarística — encontra nas batidas e nos timbres o espaço necessário para acompanhar os diferentes estados emocionais que guiam a narrativa. 

Nesta entrevista, Nayr fala-nos de tudo isto — do processo criativo, das contradições da indústria musical, da sua trajetória, feita de múltiplas pertenças e de muita superação. De toda essa matéria se faz um álbum pintado a vermelho e que é um manifesto de alerta, de sangue e de vida. Um gesto de vulnerabilidade redentora, marcado pela coragem radical de não deixar que o silêncio prevaleça. Um momento onde se escuta, quase intacta, a magia que não lhe conseguiram roubar — e que se sente em cada palavra que partilhou connosco, nesta generosa entrevista com vista para o mar.



Depois de quase uma década de criações musicais, chega finalmente o teu álbum de estreia. No primeiro EP, Misturas, refletias sobre a ideia de mistura — um espaço onde trabalhaste a tua sonoridade a partir das tuas origens e das referências que foste reunindo ao longo da vida. No segundo EP, Quente, trouxeste uma abordagem centrada na terra e no empoderamento das mulheres, com um projeto feito exclusivamente com convidadas. Depois desses dois trabalhos, quando é que sentiste que este era o momento certo para lançares o teu álbum de estreia? O que é que ele representa na viagem que tens feito ao longo dos últimos anos?

Senti que já era altura de lançar um álbum, de fazer um projeto maior e mais consistente. Já tinha dois EPs e algum percurso feito, e sentia-me mais preparada para me apresentar de forma mais clara, sabendo melhor quem sou neste momento da minha vida. Acredito que estarei sempre em mutação, mas fazia sentido que o álbum saísse agora, depois de tudo o que fui construindo nos últimos anos em Portugal. Eu estive a estudar em Londres, voltei na altura da pandemia. Desde essa altura, tudo aquilo que vivi na indústria, tudo o que aprendi e tudo o que fui sentindo fez com que tivesse muito por dizer. É por isso que o álbum se chama Entrelinhas — é um álbum sobre aquilo que ainda não foi totalmente dito, sobre o que ficou por contar. Sinto que finalmente ganhei coragem para ir mais fundo, para ser mais vulnerável e para criar um projeto que mostrasse todas essas minhas facetas.

E quando é que começaste a trabalhar neste álbum? Como começou o processo?

Lancei o Quente em 2023 e pouco tempo depois já estava a pensar no próximo passo. Sou um bocadinho ansiosa e workaholic. Isto não é só o meu trabalho, é a minha vida, e às vezes é complicado separar as duas coisas. Levo muito da música para casa, vivo-a intensamente, porque vem de um lugar muito autobiográfico, o que torna essa distinção ainda mais difícil. Comecei o álbum em novembro de 2023 e fiz cerca de 50 músicas, algumas com beats de outras pessoas, outras que produzi eu mesma ou compus ao piano. Não me preocupei em pensar se fazia ou não sentido lançar um álbum naquele momento, simplesmente senti que era o que tinha de fazer. Comecei em novembro de 2023 e terminei por volta de junho de 2024.

E como foi feita a seleção das músicas?

Foi um desafio [risos]. Já tinha umas 50 músicas e fui para o estúdio com o Tayob para trabalhar na pós-produção. Inicialmente, selecionámos 15 músicas, mas dessas acabaram por ficar apenas 10, porque surgiram algumas novas feitas de raiz durante esse processo.

Escutando o álbum, senti que é uma espécie de viagem emocional em três atos. Um primeiro, com músicas como “Atende”, “Querias”, “Lado certo” ou “Tua”, em que procuras falar de amor, mas onde vais tornando evidente de que não é possível fazê-lo sem também falar de trauma, medos, memórias e nostalgia. Num segundo ato, em músicas como “Brinde” ou “On & On”, expões de forma muito crua como o amor pode assumir formas de violência e toxicidade muito impactantes. Por fim, um terceiro ato, em músicas como “Vista para o mar”, “Perto” ou “Verde, onde escreves sobre a possibilidade de superação, de uma nova entrega, um salto de fé para um futuro potencialmente mais luminoso. Esta leitura faz sentido? Como pensaste essa narrativa do álbum?

Foi exatamente essa a intenção. Quis dividir o álbum em três atos e que não queria que ele terminasse com as experiências mais pesadas e negativas que marcam os meus últimos anos. Tal como a minha vida tem vindo a transformar-se, fazia sentido que o álbum também terminasse de forma mais leve. Curiosamente, no início, nem tinha noção de que o álbum teria tantas músicas sobre amor. As últimas canções, como “Perto” e “Vista para o Mar”, surgiram mesmo perto do fim. Comecei com temas muito pesados, mas percebi que a narrativa não podia ficar apenas nesse lugar de dor. Queria trazer alguma leveza e esperança.

Quando escreveste essas músicas já estavas num lugar mais leve ou foi uma aposta para chegares lá?

O álbum começa por refletir o momento em que estava quando o comecei a escrever. No final do processo do álbum, já estava num lugar muito mais leve e numa fase pessoal muito mais segura. 

Então aqueles voices de introdução do álbum, e a primeira música, a “Atende”, refletem esse ponto de partida? 

Sim, exatamente. A “Atende” é uma música sobre estar em situações complicadas, mas de alguma forma sentir-me confortável nesse lugar e não conseguir sair. Depois vem o heartbreak, que me confronta com os meus medos e inseguranças. Sempre procurei olhar para essas experiências a partir de um lugar de autoavaliação, mais do que me focar apenas no que o outro me fez.

É por isso que escreves na primeira pessoa?

Sim. É uma escrita sobre como eu sinto culpa, como sinto nostalgia, ou como saudade. Mesmo nas tracks mais leves, a escrita é sempre pessoal muito centrada naquilo que procuro. É por isso que este é um álbum muito autobiográfico. Começo o álbum com um heartbreak, falo das questões da indústria e de abuso, e termino com uma fase de superação, em que reencontro o amor-próprio e o amor pelos outros.

Sendo um álbum tão pessoal, porque é que o consideras também um manifesto?

Sendo um álbum de R&B, inevitavelmente fala de amor. Mas quis fugir da romantização do amor. Este álbum é um manifesto que vem de um lugar muito pessoal, em que conto situações sobre as quais, há uns anos, não teria coragem de falar. Neste álbum estou a manifestar tudo aquilo por que passei nos últimos anos da forma mais crua possível, sem grandes máscaras. 

Como transformaste histórias tão íntimas em matéria artística? Que desafios enfrentaste ao expor essa vulnerabilidade no álbum, sem que esse gesto se tornasse demasiado pesado para ti?

Foi com muita terapia — de vários tipos, porque não acredito que haja um só um tipo de terapia. A música, por exemplo, para mim é muito terapêutica. Mas não desvalorizo também a importância de procurarmos ajuda profissional para lidar com questões de saúde mental que não conseguimos resolver sozinhas. Acredito muito nisso, em falarmos mais sobre o que sentimos, connosco próprias e com os outros. Por ser uma pessoa tímida, desde pequena que exponho muito daquilo que sinto em histórias e em letras. Desde pequena, sempre escrevi muitas histórias, que acabavam com “moral da história”. Era uma forma de eu me entender a mim própria. Na música é tudo muito autobiográfico, mas ao mesmo consigo distanciar-me da história, como se fosse outra Nayr a contá-la. Esse lado de contadora de histórias que me acompanha desde sempre. Partilhar ajuda-me a aceitar o que aconteceu. Depois levo isso para o estúdio ou para o palco, que são lugares onde me sinto livre para comunicar.

A vulnerabilidade das histórias que falas nas músicas não te prendem no momento da exposição?

Não, pelo contrário. A música ajuda-me a aceitar as coisas que me acontecem. Além disso, transforma algo que poderia ser apenas dor num lugar de partilha, que pode ajudar outras pessoas. Isso dá sentido ao que vivi e torna a dor menos pesada. Não sei se é saudável, mas ajuda-me a racionalizar o que sinto. 

Em relação à sonoridade, disseste numa entrevista há uns anos que não querias ser apenas uma cantora de R&B, e ambicionavas explorar outras sonoridades. Embora este álbum tenha muito de R&B, também tens aqui momentos soul, registos de hip hop com uma natureza mais soulful, afrobeat. Que descobertas fizeste neste disco em termos sonoros?

Descobri que, apesar de não me considerar uma rapper — porque acho que não tenho todo o knowledge, e ainda não explorei o suficiente para me assumir como tal —, sinto que sou uma cantautora de R&B que também gosta de rimar. Neste álbum, explorei mais o meu lado ligado ao hip hop, com flows mais rápidos e jogos de palavras. Sempre me fascinou escrever, é o que mais gosto de fazer. Quis aproximar-me desse lado mais ligado ao hip hop, sem deixar de ser eu. Até falei sobre isso com o Valete, que é uma espécie de padrinho musical para mim.

Em que sentido? 

Ele apoiou-me desde o início e tem sido um amigo e conselheiro incrível, uma das melhores pessoas que eu já conheci na indústria. É super humilde, atento a pessoas novas, o que é raro ver em homens da indústria. Disse-lhe que não me via como rapper e perguntei se soava estranho. Ele respondeu: “Não, soa mesmo a ti”. Isso deu-me confiança para explorar um hip hop mais melódico. O afrobeat já fazia parte do meu trabalho há algum tempo, sempre esteve presente. A soul é o meu lugar mais confortável, é algo muito natural em mim. O desafio maior foi aproximar-me do hip hop de uma forma muito minha, muito autêntica e sem querer overstep lugares. Em termos líricos, para quem escreve, meterem-nos numa caixa de R&B singer, é muito limitativo. Não gosto de estar presa a essas construções. E a verdade é que me dá muito mais gozo rimar entre frases, ser criativa na forma da escrita. Às vezes metem-nos numa caixinha do R&B, mas eu quero tentar explorar essas relações com o hip hop. Há poucas mulheres a fazer isso e é algo que gostava de explorar mais, nunca fugindo ao registo R&B e a refrões cantados, que é algo que gosto muito de fazer. 



Pensando nesses diferentes registos, em que medida é que cada sonoridade serviu as diferentes abordagens da própria narrativa emocional do álbum? 

Eu tentei que fizessem essa conjugação, que fosse intencional e fizesse sentido. Músicas como “On & On” ou “Bag Lady” têm essa mistura entre hip hop, afrobeat e neo-soul, um registo sonoro que tem a ver com a intenção dos temas. Cada beat levou-me a um universo diferente. A “Diabo”, por exemplo, tem um registo mais funny, mas nasceu de uma conversa em residência sobre relações tóxicas. Queria falar disso de forma verdadeira, mas ao mesmo tempo de forma engraçada, dai o afrobeat, que tem um registo mais dançante. A “Bag Lady” tem um registo mais forte, mais afirmativo e precisava de um beat mais nesse registo. A “Lado Certo”, que comecei ao piano, acabou por ser transformada numa balada. Senti que precisava desses universos diferentes para dar espaço a todas as histórias que queria contar.

No processo criativo do álbum, o que vem primeiro: o instrumental, a letra ou o tema?

Depende. Em sessões com outras pessoas, como na “Diabo”, começamos pelo tema. Mas quando estou sozinha, normalmente começo com o beat, que me leva para um certo lugar. Na procura do tema da música, faço o exercício de imaginar imagens, capas de filmes, palavras soltas. Mas quase sempre começa pelo beat

Falando sobre essa questão da imagem, sempre foi algo que valorizaste muito. No Quente, por exemplo, deste muita importância à cor que define o tom do álbum e dos vídeos. Neste álbum, lançaste três singles com três vídeos muito diferentes. Como pensaste essa componente visual?

Pensei no álbum como se fosse um filme. Para mim, tinha de haver uma coerência entre o som e a imagem. Eu sou muito de visualizar e associar cores a situações, a pessoas, a meses, a emoções. Queria que o álbum refletisse isso também. Se reparares, todas as capas dos singles têm o vermelho. 

O que representa para ti o vermelho? 

Representa alerta. Este álbum é um alerta, um manifesto. E também é uma cor que associo a paixão, a força, a sangue… O álbum é muito emocional e tinha de ter esse lado apaixonante. O Quente era mais leve, com tons castanhos que representavam a terra, a ligação africana. Este álbum tem algumas das coisas mais pesadas que vivi, mas também muita afirmação. É um álbum de vida entre o sangue, a felicidade, a luta, tudo aquilo que significa estar viva. 

Na “Lado Certo” cantas: “Uma música bem melhor/ Daquelas que falam do quanto é bom o amor/ E até hoje eu só cantei dor/ Até quando/ Para quando uma música bem melhor”. Porque é que este verso foi importante ser colocado naquele momento do álbum e porque é que para ti fez sentido teres a Yeri e a Yeni como convidadas neste tema? 

Eu gosto mesmo muito dessa música e quase não entrava no álbum. Foi mesmo à última da hora que percebi que ela criava uma pausa necessária entre “Querias” e “Tua. Já tinha feito essa música há algum tempo e sempre imaginei ter as gémeas comigo no álbum porque em termos sonoros acho as vozes delas mesmo muito ricas. Falei com elas e ficou lindo. A parte delas é a minha preferida, sem dúvida alguma. Em relação à frase que destacaste, quando escrevi essa música, como todas as outras, estava a falar de situações concretas, muito reais. Essa frase é uma transição, um sinal de que estou farta de cantar sobre dor e que quero, finalmente, tropeçar em coisas boas. Toda a ordem das músicas foi pensada para que isso ficasse claro. 

Sem querer que entres em muitos detalhes, a “Brinde” é umas músicas mais fortes do álbum e decidiste lançá-la no dia 25 de Abril acompanhada de um o vídeo muito duro. Sendo este um álbum um manifesto tão íntimo, era inevitável que esta história fosse contada? 

Para mim, é a música mais importante do álbum. Era inevitável e foi um ato extra de coragem. Estive muito tempo a refletir sobre se estava pronta para falar sobre isso. Passaram-se três anos e senti que, ainda que não fosse capaz de dar muitos detalhes, estava pronta para falar disto através de um storytelling. É mesmo muito difícil falarmos sobre situações destas, mas ao mesmo tempo, eu tenho este lado de contadora de histórias que me ajuda a processar o que me acontece. Sinto que não podia deixar que aquela situação fosse apenas algo mau que aconteceu na minha vida. Eu sinto sempre a necessidade transformar em algo positivo tudo aquilo que me acontece. Neste assunto em específico é algo mais difícil, não dá para falar de forma leve, mas senti que fazia sentido. O facto de ser um storytelling protege-me, mas ao mesmo tempo, quem estiver atento vai perceber. Para mim fazia sentido purgar essa situação e se calhar um dia vou ter mais coragem para falar sobre ela. Eu acho que as pessoas não percebem as nuances que este tipo de situações têm e que falar sobre isto, seja em que plano for, obriga-te a reviver a situação várias vezes. É muito pesado. Talvez um dia já vá estar mais distante para falar mais sobre isto. Nesta altura, a única forma que tinha para fazer justiça era expor a situação enquanto contadora de histórias no contexto do álbum. Temos de combater os nossos demónios com paciência, respeito por nós próprias e no nosso tempo. Mas ao mesmo tempo, não fazia sentido fazer um álbum tão real e não falar de uma das situações que mais marcou e que acontece mais do que se imagina. Senti que o álbum era um lugar seguro e queria muito falar do quão desgastante é estares sempre à procura da tua própria “culpa”. É muito importante as pessoas perceberem que uma das razões por que não se fala tanto destas situações é porque há uma enorme rapidez em culpabilizar a vítima. 

Lançaste essa música do 25 de Abril. Sentes que para as mulheres as promessas da libertação e da emancipação ainda estão muito para concretizar?

Sinto a 100%. Frustra-me assinalar datas e sentir que, no dia a dia, ainda há muita gente a viver com mentalidades de há 50 anos. Lançar esta música no 25 de Abril era simbólico. Esta música era muito mais do que um single e queria que saísse num momento importante e significativo. O vídeo é pesado, mas precisava de ser direto e sem rodeios. Passaram 50 anos do 25 de Abril, mas ainda continuamos a lutar por direitos básicos, parece que estamos a andar para trás. E isso é ainda mais evidente para as mulheres negras, que muitas vezes continuam invisíveis. É um assunto que em Portugal não se fala muito e acho que é uma falha grande no feminismo. 

Sentes que o feminismo em Portugal continua muito branco, no sentido de não refletir de forma mais interseccional as diferentes camadas de opressão?

Acho que é um problema geral. Falta muito falar desse lado. Eu sinto que a mulher negra tem tudo para ser completamente desprezada em todos os lugares — seja enquanto mulher, profissional, mãe. É como se tivesse de ser uma cuidadora para sempre e fosse só para isso que ela serve. Ainda existe muito essa ideia da utilidade de mulher como dona de casa, ou como mãe, e que não pode querer ser mais nada. Em Portugal fala-se de muitas coisas, mas não de tudo o que se tem de falar. Temos de falar de feminismo lembrando que existem várias mulheres — por exemplo, as mães negras das periferias, que têm de ter vários trabalhos para sustentar os filhos, não têm uma posição de holofote para falar da posição delas. Acho que se devia descentralizar o feminismo europeu. Enquanto mulher negra, sinto que o 25 de Abril fez sentido nestes dois aspetos — enquanto mulher e enquanto pessoa negra — mas há muita coisa que não faz sentido em Portugal e parece que estamos a andar muitos anos para trás. 

Tens origens moçambicanas, nasceste e cresceste em Portugal, e já te ouvi dizer que tanto te sentes em casa em Portugal como em Moçambique, como ao mesmo tempo não te sentes completamente em casa em nenhum dos dois lugares. Como foi esse processo de crescer em Portugal numa família de origem africana e que papel teve a música na construção da tua identidade entre esses dois lugares?

Foi um processo longo. Cresci aqui em Portugal, numa casa moçambicana, e sempre me debati muito com essa crise de identidade enquanto crescia. Os meus amigos eram de várias origens — portugueses, cabo-verdianos, angolanos, brasileiros — e sempre estive rodeada de muitas culturas. Em casa ouvia música africana, afro-americana, brasileira, comia comida africana, vivia as tradições. Tudo em casa era Moçambique. Na escola também vivi essa diversidade de culturas, até porque na maioria das escolas públicas onde andei havia poucas pessoas brancas. Estive num colégio, num determinado momento, mas odiei a experiência porque era muito fora do que trazia da escola pública. Nunca me enquadrei. Muito porque eram só pessoas brancas e muito conservadoras que não tinham nada a ver comigo. Então debati-me muito com essa luta sobre quem é que eu sou. Em Moçambique, eu vista como portuguesa. Aqui, como moçambicana, indiana ou outra coisa qualquer. 

Sentes que em Portugal as pessoas não te vêem como portuguesa? 

Nunca. Toda a gente que me conhece pergunta: “De onde é que és?” Só quando comecei a crescer, no meio de amigos de várias culturas, é que percebi que eu sou quem eu sinto que sou, e não como os outros me vêem. Afirmar-me como mulher negra também foi complexo porque diziam que não era negra, era mistura. Enquanto cresces há muita coisa que não percebes. Hoje consigo afirmar-me como portuguesa e moçambicana, como uma mulher negra. Sou toda a gastronomia moçambicana. Sou toda a música dos PALOP que consumi, mas também sou fado. Não dá para dizer que não convivi com nada português porque eu cresci neste país. Mas ao tampo também sou Moçambique, que é aquilo sou tudo o que trago de casa, todos os ensinamentos. Sou uma mistura de tudo o que vivi e de todas as culturas que me atravessam. 

Como é que encontraste esse lugar? 

Foi com amigos, com pessoas como a Libra, que também vive essa mistura. Foi importante começar a inserir-me mais na comunidade negra e perceber que existem imensos tipos de cor, imensas tonalidades. As pessoas ainda têm dificuldade em aceitar que existem negros mais claros, negros mais escuros… Parece que ainda estamos a explicar o básico. Para mim ajudou-me estar em grupos de pessoas que também têm essa mistura de culturas PALOP e portuguesa. Percebi que não era só eu que vivia nesta mistura. Passei a olhar mais para mim e aperceber quem sou, para lá da forma como os outros me vêem. 

Tem-se falado crescentemente sobre o lugar das mulheres na indústria da música e tu tens trabalhado muito sobre isso nos últimos anos, por exemplo em projetos com o Nayr Faquirá & Girl Talk. Como vês a evolução desse caminho? Sentes que essa presença está a crescer ou que ainda há demasiados bloqueios numa indústria que continua a ser um território muito masculino? 

Eu sinto que aquilo que temos vivido em termos políticos está muito relacionado com o desconforto de muitas pessoas que estão a perceber que há coisas que estão a mudar. Acho que de facto que estamos a mudar, embora também sinta que há sempre muitas resistências. Para quem está confortável, as mudanças causam desconforto. Há sempre alguém que quer sabotar mudança, quando sente que está a perder o controlo. Enquanto cidadã, sinto que o que nós podemos fazer é continuar a criar espaço para as mulheres, a questionar quem ocupa cada lugar e juntar mulheres em lugares predominantemente de homens, por exemplo o estúdio. Temos de perguntar que cada vez mais: E se tivéssemos uma diretora musical mulher? E se trouxéssemos mais mulheres para as bandas? E se minha manager for uma mulher? É preciso ter esse tipo de conversas para desbloquear preconceitos. As mulheres existem na indústria, só tens de te esforçar um pouco. Está a melhorar, mas por vezes quando damos cinco passos em frente, temos de dar três para trás. Há sempre alguém a tentar sabotar. Está tudo construído de uma forma muito viciada, como um jogo de poder viciado, e vai levar muito tempo a mudar. Não quero perder a esperança, mas não sei quando vai acontecer essa igualdade de que nós falamos. Sinto que o mínimo que podemos fazer é criar espaços seguros umas para as outras porque se todas nós, e todos nós, fizermos isso, começamos a desbloquear preconceitos. Acho que estamos no caminho, mas temos que ser todos responsáveis, não pode ser só a minoria a trabalhar para que esta mudança aconteça. Tem de ser toda a gente. 

Sentes que há mais dificuldades na profissionalização da música para as mulheres?

Sim, porque ainda não nos olham com o mesmo respeito. Por exemplo, não nos sentem capazes de fazer aquilo que os homens fazem num estúdio. Senti isso até neste álbum. Sou eu que estou à frente do projeto, mas há sempre quem ache que sabe mais do que eu sobre as minhas próprias histórias. Por exemplo, muitos disseram-me para não lançar a “On & On” como primeiro single, mas foi a que teve mais impacto. Temos de confiar no nosso instinto e não podemos estar sempre a auto-sabotar. 

E quanto a planos para o futuro? O que esperas do caminho que começa agora com o lançamento do álbum?

Espero que este álbum seja o início de algo duradouro. Não acredito que o sucesso seja algo que se atinge de uma vez ou com um único projeto. Para mim, o sucesso é poder viver da música, tocar, partilhar as minhas histórias, passar a minha mensagem e continuar a criar. Não é ter milhares em números e muito dinheiro. É ter uma vida estável, fazendo música, que é aquilo que amo, sem me sabotar, sem esquecer de quem sou. Quero viajar com a minha música e fazer projetos que me desafiem. Acho que este álbum é um bom presságio para tudo isso.


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