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Fotografia: Madalena Rodrigues
Publicado a: 20/03/2022

Do domínio dos que tratam o ofício com um afecto fora do comum.

Navy Blue ao vivo na ZDB: a dignificar o código de honra de uma nobre arte

Fotografia: Madalena Rodrigues
Publicado a: 20/03/2022

Há dias que, ainda antes de acontecerem, ganham uma dimensão imensa na nossa cabeça, quando sabemos que a história vai acontecer mesmo diante dos nossos olhos. Ontem foi um desses: Navy Blue, um das mais dotadas novas vozes do rap americano, tinha encontro marcado com o público português pela primeira vez, em Lisboa, numa esgotada Galeria Zé dos Bois. E esta é uma história que, muito provavelmente, não se voltará a repetir. Mas já lá iremos.

O timing na chegada ao recinto podia ter sido melhor. Foi por volta das 22h30 que conseguimos picar o bilhete, exactamente no momento em que Sage Elsesser se dirigia pela primeira vez — e com um à-vontade enorme, diga-se — aos presentes, depois de um concerto de abertura protagonizado pelo californiano demahjiae. Retirados do seu último Navy’s Reprise, “Ritual” e “Code of Honor” foram dois dos temas com que o rapper nos decidiu brindar no início da sua actuação, antes de uma curta pausa para se certificar de que estávamos todos alinhados no mesmo plano. A calorosa recepção à boa moda tuga pode tê-lo apanhado desprevenido, mas não evitou a frontalidade por parte de alguém que está a fazer os possíveis para elevar e orgulhar ao mesmo tempo que educa as massas: “Eu já estou a adorar estar aqui com vocês, mas o vosso país tem uma história muito fodida… Alguém daqui compactua com isso?” As manifestações sonoras que surgiram como resposta eram claras e o rapper aproveitou para fazer a ponte para “1491”, do seu disco anterior Songs of Sage: Post Panic!, dando-nos a oportunidade de gritarmos todos juntos “fuck Christopher Columbus”.

É também nestas alturas que se vê a grandeza de quem está por detrás da música. Provavelmente, a data portuguesa nem é das mais lucrativas para quem vem de tão longe e, ainda assim, Navy Blue não só fez questão de marcar presença na nossa “casa” como o fez a envergar as nossas quinas no peito, por intermédio de uma jersey da selecção nacional de futebol personalizada com o seu nome, enfrentando as feridas do colonialismo olhos nos olhos.

Varrido para debaixo do tapete o embaraço pelos feitos dos nossos antepassados, até porque “essa é uma conversa para outra altura”, o clima que se estava a formar naquela sala prometia. Do lado do público o entusiasmo era imenso e choviam palmas e assobios a um ritmo constante. Já o rapper emanava empatia, mandava piadas entre temas, brincava com os colegas e sorria como se fossem os seus melhores amigos quem ele estava a ver na frontline. O à-vontade tornava-se num “à vontadinha” e havia até quem já arriscasse em estabelecer diálogo com o artista, nem que fosse para os habituais “discos pedidos” — e aqui só a falta do instrumental na pen USB utilizada pelo seu DJ, Ahwlee (parceiro de Pink Siifu na dupla B. Cool Aid), é que esbarrava numa abertura praticamente total de Navy Blue em satisfazer as vontades dos presentes.

O que ninguém se lembrou de lhe pedir foram os inéditos que poderia, eventualmente, ter trazido consigo na bagagem. Mas tivemos direito a uns quantos: um deles fazia recordar quando Earl Sweatshirt decidiu reinventar o trap à sua maneira em “Nowhere2go” e obrigou Sage Elsesser a dosear os seus versos com recurso a um flow que foge por completo daquela que tem sido a sua zona de conforto até aqui; um outro, mais orelhudo, chegaria no final do set, no qual se prestava uma homenagem a Nipsey Hussle e ainda se interpolava partes do refrão do clássico dos clássicos dos Mobb Deep — e se nunca viram uma casa pegar fogo quando “Shook Ones, Part II” é trazido para cima da mesa, então andam a frequentar as festas de hip hop erradas.

O cenário fez lembrar quando, há quatro anos, JPEGMAFIA nos lançava o isco com um par de concertos em salas que já nos soavam demasiado pequenas para o seu calibre na altura, tendo ambas sido rapidamente canceladas e dando lugar a uma merecida entrada de Peggy no circuito dos grandes festivais. O momentum de Navy Blue não é muito diferente do do autor de Veteran em 2018 e, por isso, dificilmente o voltaremos a conseguir apanhar numa casa de espectáculos com o tamanho da ZDB — e o que esta perde para as outras em dimensão, ganha em qualidade sonora e em proximidade entre artista e público.

demahjiae, que tinha protagonizado o concerto de abertura ao qual não chegámos a tempo de assistir, foi chamado para regressar ao palco para ajudar o cabeça-de-cartaz da noite na interpretação do tema que escreveram juntos para Navy’s Reprise, “Petty Cash”. Mais do que um auxílio, Sage Elsesser vê no colega uma fonte de inspiração e um elemento fulcral na difícil tarefa de manter as tropas animadas na dura vida de estrada, conforme fez questão de nos confessar.

O final foi também diferente daquilo a que estamos habituados. “Querem que o Ahwlee fique a passar uns beats?” A unanimidade entre o público levou o DJ e produtor a meter mãos à obra enquanto Navy Blue desaparecia sorrateiramente de cena. A festa acabaria por se prolongar ao ponto de, a dada altura, estarem já os três artistas de volta da mesa de mistura a disparar faixas à vez em ambiente super-informal.


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