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Navy Blue

Navy's Reprise

Freedom Sounds / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 28/12/2021

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Pode falar-se de Navy Blue, para começar, apresentando factos que sustentam o classificativo “original” com que tantas vezes é descrito: o artista que actualmente vive em Bedford-Stuyvesant, Brooklyn, Nova Iorque, está em vésperas de completar 25 anos, é fã de futebol (adepto do Arsenal!), foi skater profissional com ligações à marca/loja Fucking Awesome (e isso é fucking awesome, claro), modelo escolhido para representar marcas como a Supreme e, por exemplo, é amigo de infância de Earl Sweatshirt, artista com quem já colaborou em diferentes instâncias – como rapper, produtor ou designer. Navy Blue, já perceberam, é muitas coisas. E em todas consegue ser (lá está…) profundamente original.

Só este ano, Navy Blue inscreveu o seu nome em projectos de longa-duração ao lado ANKHLEJOHN (As Above, So Below) e Akai Solo (True Sky) além de ainda ter largado nas plataformas digitais este Navy’s Reprise sem ajudas algumas, assumindo todos os lados do projecto. E isto sucedeu a dois registos longos (Àdá Irin e Song of Sage: Post Panic!) em 2020. Se é assim em tempos pandémicos, imaginem com o mundo aberto!

Sage Elesser de seu verdadeiro nome é de facto um sábio (tradução de sage…) nascido para deixar marca no hip hop. Nem de propósito, tem Ka, o elusivo e místico rapper que ganha a vida como capitão num quartel de bombeiros em Nova Iorque, como uma referência maior, um herói que conheceu em Brooklyn por intermédio de Earl Sweatshirt. Educado em Los Angeles, Elesser é filho de uma cantora afro-americana e de um baterista/percussionista chileno. Foi o seu pai que lhe ofereceu o seu primeiro sampler e o resto, poderia dizer-se, é a história que tem vindo a ser escrita a letras douradas nos últimos anos, traduzindo-se numa série de trabalhos que são clássicos de culto modernos.



Dotado de uma singular capacidade para a introspecção, Navy Blue cria música fundada na identidade musical afro-americana (soul e jazz parecem correr abundantemente nas suas veias e nos circuitos do seu sampler) que adorna com uma entrega tranquila, cruzando palavras fundas com ideias sobre si mesmo, os abismos do ego, a vida e as questões eternas a que os sábios sempre se dedicaram. E é essa aura que explica que vá sendo chamado a produzir e a colaborar com gente como Mach-Hommy, Tha God Fahim, Moor Mother e billy woods, Armand Hammer ou os já citados Ka e Earl Sweatshirt: uma lista de verdadeiros iluminados que têm garantido que não se apague a chama mais genuína desta arte de dispor ideias sob a forma de palavras cadenciadas em cima de batidas carregadas de drama e paisagens. Escutar Navy Blue é, enfim, ver na primeira fila esses filmes interiores, escutar histórias que são alegorias agudas da vida com que todos nos cruzamos.

Seguindo o exemplo de Ka, e dessa forma deixando muito clara a sua relação com o lado comercial da arte, o seu mais recente trabalho não está (para já, pelo menos) disponível em formato físico, sendo passível de ser adquirido digitalmente no seu próprio site. É por isso que rima em “Code of Honor” (nem de propósito…), com total verdade captada pelo microfone, “I’m in it for the long stretch until my time’s up”. A família é parte importante do universo de Navy Blue. Não há como não acreditar quando garante ter comprado um par de sapatilhas ao seu sobrinho “só para o ver crescer até elas já não lhe servirem”: “Give thanks, I grew up with some beautiful women”, explica ele em “My Whole Life” ao passo que em “Peach Cobbler” ele confessa “N**** like me made amends with my father”. É essa capacidade, a de transformar vida real e palpável em barras, que nos enreda nas suas criações, levando-nos a fechar os olhos e ainda assim ver claramente os seus filmes. E mesmo que esses retratos sejam mais sépia do que HD, mais reservados do que expansivos, mais feitos de silêncio do que de fogo de artifício, a verdade é que ainda assim permanecem profundamente cativantes.

É essa a riqueza que se repete de cada vez que se escuta Navy’s Reprise, um disco que parece bem mais apropriado para escutar numa mesa iluminada por uma vela num fumarento clube de jazz, com um copo de tinto do bom por perto, do que num daqueles clubes em que os pés de colam ao chão por causa de tanta cerveja vertida à custa de todos os saltos. Rap de toada tranquila para gente crescida, com vidas reais e famílias que não cabem em postais ilustrados com fantasias de Natal. Também faz falta.


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