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Publicado a: 15/11/2018

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[TEXTO] Miguel Alexandre 

O retorno de Saturno é um ponto de viragem, que, segundo a astrologia, é feito pelo ajustamento dos astros na mesma posição à do nosso nascimento quando completamos os 29/30 anos de idade. É uma altura de amadurecimento e de superação das dores e dos arrependimentos do passado. Saturn, o segundo álbum da cantora e compositora NAO, é uma compilação de aprendizagens, memórias e conquistas combinado num espaço de 13 músicas. “It’s about letting go of what doesn’t serve you. You know, letting go of relationships, jobs, any past regrest”, ouve-se em “When Saturn Returns”, a volátil transmissão que assenta perfeitamente o tom deste novo disco. Este é um trabalho que, à superfície, aparenta ser sério, deambulando entre temas como crescimento emocional e a prisão de relações passadas, mas que tem também espaço e tempo para celebrar as lições aprendidas de uma forma construtiva e saudável. Aos 30, a cantora é o reflexo das escolhas profissionais e pessoais que fez ao longo dos anos e que agora está pronta para partilha com o mundo o espectro da sua tristeza e felicidade, dos seus rancores e contentamentos, da sua anedonia e de um hedonismo que, durante muito tempo, lhe foi negado.

O álbum constitui-se por uma serena e cristalina produção, comandada principalmente por NAO, mas que recruta a mão de Joel Little, King Henry, Grades e Mura Masa. As tenuidades sónicas são meticulosamente apresentadas como o ponto central deste trabalho, passando sempre por um r&b alternativo bastante evasivo, um psicadelismo ritmado e um funk cada vez mais frequente; no entanto, é a voz da artista que concretiza tudo isto numa mistura quase perfeita de emoção e jubilação: os vocais são bifurcados e balançam-se entre momentos suaves, suspirantes de baixo registo e um falsete melodioso e penetrante. Em “Orbit”, uma peça fundamental deste corpo, a cantora consegue traçar facilmente o rompimento de uma relação e a instabilidade mental que esta trouxe – “you remind me of a love who outgrew me too”, canta enquanto guitarras eléctricas e batidas programadamente espaçosas acompanham a sua tristeza. A voz cai em puro cansaço, mas permanece igualmente doce e ténue. As mesmas temáticas circundam músicas como “Make It Out Alive”, dos primeiros singles lançados, onde o luto por uma longa relação amorosa é constante, mas NAO não se deixa chafurdar durante muito tempo: a imagem e o discurso mais arrojado permitem-na difamar a pessoa que azedou o amor, e ela tem muito que praguejar: “House burnt down, burnt down to the fucking ground/ I don’t even care if I make it out”.

 

 



Todas estas combinações, todos estes arranjos e pormenores, podiam ser perfeitos — como disse — mas não são. Muitos outros antes dela seguiram as mesmas pisadas a partir de cacos emocionais; especialmente se tivermos em conta a emergência do género que é o r&b alternativo: a sua mestria, por vezes, perde-se na linha de pensamento que os seus contemporâneos também utilizam, e nela tentam criar corpos de trabalho rodeados de reverberações, precisamente no centro da acção. “Curiosity”, um dos momentos mais nocivos deste disco pelos seus sintetizadores pesados e trevosos, soa a algo do M3LL155X, de FKA twigs; “Love Supreme”, uma comemoração do amor entre duas pessoas, parece ser retirado das letras honestas e idiossincráticas do CTRL, de SZA; “A Life Like This”, a balada que fecha este alinhamento, alia-se perfeitamente aos tons sentimentais de Jorja Smith.

Este aspecto não é necessariamente negativo. NAO tem as suas particularidades e a artista usa a voz versátil, a cinemática composição e a devoção à sua arte como pontos fortes, tornando Saturn um disco luminoso e emotivo, que nos aproxima cada vez mais de uma cantora que sempre foi honesta com a sua audiência. Talvez seja esse um dos seus segredos: fazer-nos acreditar que esta música, que parece tocar muitos, possui uma vulnerabilidade desconcertante que só faz sentido neste preciso instante, como um todo.

Nem tudo é sério aqui. NAO derrama as lágrimas que precisa de derramar e exorciza os demónios que a atormentaram nos últimos anos. Quando termina, mostra-nos um lado mais ensolarado e igualmente despreocupado, como em “Gabriel”, uma ode proto-funk ao amor à primeira vista, ou “Yellow Of The Sun”, uma caleidoscópica e cálida visão de uma festa entre amigos: são nestas ocasiões que não é só a dor que NAO escolhe partilhar, mas também a maturidade e felicidade que atingiu com esta nova idade. Os sentimentos são ao mesmo tempo intocáveis e pessoais, mas chegam ao íntimo dos de pessoas com vidas e experiências diferentes. E desta forma simples e solene, a cantora guia-se de mão dada connosco, às vezes por situações completamente infernais; outras vezes, por viagens pelo espaço. Com álbuns como Saturn, não queremos descer à Terra tão rapidamente.

 


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