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Fotografia: Jorge Nicolau & João Octávio
Publicado a: 08/11/2023

A despedida de mais uma edição do festival que celebra o vanguardismo musical.

Mucho Flow’23 — Dia 3: diferentes fórmulas de alquimia sonora

Fotografia: Jorge Nicolau & João Octávio
Publicado a: 08/11/2023

De palavras na mão, poema na boca e mensagem no olhar, foi assim que Contour foi recebido pelo público do Mucho Flow no terceiro e último dia do festival. Aquando de uma entrevista feita ao Rimas e Batidas dias antes do concerto, as palavras do artista inglês viram-se ser defendidas numa performance que demonstrou uma das suas primordiais vontades que, como nos tinha mencionado antes, se referiam à vontade de querer “deixar para trás coisas que ajudem as pessoas. As mensagens individuais são menos importantes do que a esperança de que alguém encontre uma forma de dar sentido a algo através delas.”

O concerto de Contour foi isto: foi esperança, foi a atenção excecional num mundo em que vivemos sobrecarregados de inquietações. Sempre dentro da sua esfera familiar, desprovida de culpa ou ressentimentos, a música que Contour canta abraça a opressão e da-lhe uma voz — além de agradecer ao seu público e afirmar que nunca “toma por garantido” a presença e energia dele, Khari Lucas cantou e dedicou  “Teach Prayer” ao Povo da Palestina, cuja letra descreve uma guerra e a necessidade de “Say a prayer for the young sailing away, sailing away”.



E ao começar em torno de uma atmosfera ritualística o início da noite do último dia do festival, tinha chegado a vez de trazer um dos nomes mais mencionados na programação do Mucho Flow. Vindos da Irlanda, com toda a bagagem e presença que acaricia as sonoridades celtas de que são feitos, Lankum encheram as garagens do Teatro Jordão para dar um dos concertos mais entusiasmantes da noite. Os gritos, as palmas, os corpos, tudo foi movimento e alegria. Com a certeza de que o grupo irá crescer a um ritmo acelerado nos próximos anos, a nostalgia que deixaram ecoará eternamente como um dos concertos mais memoráveis desta décima edição. Mas o ritual pagão não ficou por aqui.

Aberto o auditório do CCVF, aguardámos Abyss X. Se o trocadilho do seu nome pode fazer parecer um abismo erótico, a sua presença em palco assim o representa. No entanto, muitos “se” foram erguidos depois de todo o concerto. Se o troféu da insatisfação artística tivesse um nome, seria o de Evangelia VS. Apesar de ser uma figura importante do eco-feminismo e do futurismo que encontramos albergado em Nova Iorque, e se da Grécia até aos Estados Unidos carregou consigo uma militância politizada e indispensável para propagar todas as palavras de emancipação feminina e empatia pelas vítimas da hipersexualidade capitalista a que estamos entregues, de nenhuma maneira este lado tão importante no papel artístico de Abyss X se fez notar durante o seu concerto. Além de ter revelado nenhum tipo de empatia pelo seu público, que não tardou até abandonar a plateia, a forma como se dirigiu à equipa com quem estava a trabalhar refletiu-se num empobrecimento e numa quebra de energia para quem efetivamente queria estar ali.

O único momento que se deve registar da brevidade com que a artista se dirigiu ao público foi aquele em que, tal como Contour, ergueu a sua voz para falar sobre o que está a acontecer na Palestina. “This is a time to show resilience. When it comes to resistance this is not the time to feel fear. It’s not the time to hold back, it’s the time to speak up and show presence because this is coming back to you. Go march and use every platform you have to talk in the name of everyone that stays in silence and murder. “Libertem a Palestina”, foi uma das últimas frases da artista que, num último grito, deixou um vibrato em suspenso e um público aturdido.



Mas o melhor estava para vir. A desviar-se de toda a atmosfera que tinha ficado em suspenso no grande auditório, subia ao palco Aïsha Devi, recuperada e pronta para oferecer um dos momentos mais marcantes e vanguardistas que se fizeram ouvir durante sábado.

Podemos pensar num processo desde o passado até ao futuro, como se o futuro estivesse a ser celebrado num outro lugar temporal que não aquele em que estávamos, mas num tempo ainda mais distante, mais à frente. Até esse lugar onde queríamos chegar para celebrar, Aïsha guiava-nos dentro de um veículo conduzido a alta velocidade em que, no seu trajeto, todos os embates e quebras que se faziam ouvir participavam de forma organizada nesta viagem. Não era um apocalipse, não eram ruínas, era o futuro a ser contado pelas mãos e pela voz angelical da artista suíça que nos irá trazer, no próximo dia 10 de Novembro, o seu novo trabalho Death Is Home. Numa alquimia final, a dança não cessou e a catarse deu-se no encerramento de um dos palcos mais importantes do Mucho Flow. A contribuir para toda a idealização de um dos festivais mais vanguardistas que temos em Portugal, Aïsha Devi deixou um portal aberto, do qual dificilmente conseguiremos retornar um dia. 

Depois de chegado o público ao Teatro São Mamede, a vontade para ouvir Evian Christ já fervilhava. O que será que estava por detrás da escolha do artista mais esperado da noite quando estreou a pista com o tema da Champions League? Se a rampa de lançamento da qual o público do Mucho Flow vinha lançado se tinha erguido sobre o futurismo feminino e caótico de Aïsha Devi, essa mesma rampa acabava de repousar no epíteto da energia oposta de Evian Christ. O live act anunciado do artista, exclusivo e promissor por ser alusivo ao lançamento do seu mais recente trabalho Revanchist, lançado pela Warp neste ano, contou com uma performance exploratória pelos sons mais divinatórios que este álbum carrega. Com algumas visitas excepcionais a temas produzidos por si para Yung Sherman e Malibu, o produtor inglês também passou por tracks como “Iridescence” de Kevin Kendle — o epíteto da atmosfera que todo o seu live proporcionou.

Se as expectativas estavam todas depositadas no trabalho de Evian Christ, que para alguns terá certamente ficado aquém por se manifestar mais como um DJ set e não como um live, o oposto se esperava de DJ Lynce. Não que lhe fosse desconhecida a técnica e a arte da mutabilidade — uma vez que Pedro Santos se tornou ao longo da última década uma figura proeminente na club scene do Porto — mas de facto ninguém estava à espera do que viria a acontecer. Com um live surpresa preparado, próprio para um público entusiasta de acid e breakbeat, DJ Lynce elevou toda a ambição do seu mais recente trabalho a produzir para o transformar numa performance única e inesquecível que marcará para sempre o fim do décimo aniversário do Mucho Flow.


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