De volta aos dias de concertos únicos de jazz nos jardins da Gulbenkian. O festival entra no território cada vez mais fértil da cena jazz local, que vai tendo o seu merecido protagonismo entre os palcos maiores. Na edição anterior tiveram lugar no Jazz em Agosto, também à segunda(-feira) — que é também feito de jazz de primeira — João Lencastre’s Safe In Your Own World. Este ano, um dos dias “jazz tuga” é programado com a formação de João Valinho na bateria, Yedo Gibson nos saxofones (tenor e soprano) e Felipe Zenícola no baixo — MOVE.
Este trio apresentou-se com o registo The City, com chancela Clean Feed, lançado nas invariáveis plataformas digitais, mas também nas lojas físicas (nas que resistem) em 2023. Parte de uma ideia que agora parece confirmar-se, a de que a música de MOVE é uma música de palco. The City foi gravado da sua prestação no Desterro, um dos clubes de Lisboa onde se pode disfrutar de música autêntica. Agora, e em dia de lançamento do novíssimo disco — Free Baile – Live in Shenzhen —, que faz com que a Clean Feed continue a avançar nos números de catálogo que estão por vir, que é feito de um novo registo ao vivo, desta feita vindo da distante China. Free Baile – Live in Shenzhen, na precisão do nome que vem da cidade estuarina chinesa, em detalhe do concerto dado por MOVE nos finais de Outubro passado no clube B10. Na capa está a música espelhada nos rostos dos que a viveram, que resulta na inteligente forma da imagem falar do que se ouve.
De volta ao que o palco do Anfiteatro ao Ar Livre tem para dar convidando MOVE ao lugar. Começo auspicioso já que a entrada em palco é dialogante nas palavras com a pronta confissão da “enorme felicidade de estar ali para tocar”. Além disso há um aplauso para o outro significante elemento às mãos de Gibson — o lenço keffiyeh, na versão preta. Ontem foi Ava Mendoza & Gabby Fluke-Mogu, hoje MOVE, amanhã serão outros mais e a música insiste na urgência maior dos dias — a Palestina libertar-se-á dos injustificados opressores.
A música de MOVE é feita de muito nervo, como também da libertação da tensão. É tocada numa ferocidade e felicidade conjugada. Há uma bateria de Valinho virada à musica que vem de Gibson no par de saxofones, e interligada pelo baixo “lira” de Zenícola. O trio luso-brasileiro desprende uma descarga, intensa que traz acumulada e se dispõem a deixar em palco. Musicalmente anda perto dos caldeirões sonoros que John Zorn e/ou Bill Laswell puseram ao lume, pela conjugação visceral identitária que o duo de saxofones e baixo eléctrico nos transmite. Gibson desprende do seu interior uma voz que remete também para Albert Ayler, contudo Zenícola estará ainda assim mais apartado de um baixo totalmente laswelliano. Contudo há a energética fonte de ritmos criativos e cintilantes que é a bateria de Valinho, sempre a alimentar e a dar resposta estimulante. Esta fornalha de música, rica em intensidade, faz ferver depressa, e quem vier a este baile vai invariavelmente dançar com força, vai sair com marcas. Há tumultos interiores ouvindo-se MOVE, que percorrem as memórias adquiridas, que vão das influências mais notórias e as que nem se imaginam no instante que se ouvem a tocar. Enérgicos e assentes num mote de “fazer isto ou nada”, irradiam felicidade e emanam destrezas técnicas que estão comprometidas com a música e fazem-no sem heroísmo musical individual algum — sendo MOVE quem ordena. Por momentos parece-nos que do tenor se escutam frases de uma “Grândola”, pode ser até apenas a vontade de assim entender esta música que intervêm na vertente visceral do jazz que mais ordena. Música: crua — ainda que servida ao lume aceso; coesa — ainda que de aparência caótica; dialogante e reivindicativa — ainda que sem palavras explícitas; brutal — ainda vinda de três músicos plenos de bondade.
Valinho, Gibson e Zenícola percorrem os seus caminhos, caminhando depressa e bem, como que a desafiar a impossibilidade do adágio popular. Do saxofone soprano, do tenor ou, como por vezes acontece, dos dois em simultâneo: Gibson toca nos limites da expressão vibrantes das palhetas onde com imediata urgência se coloca em campos vociferantes, com palhetas ou sem elas, mas sempre a plenos pulmões. Magníficas intervenções mais exploratórias do som obtidas de imersão campanular do microfone no saxofone, conduzindo trauteados da articulação das chaves do instrumento. Outras ocasiões foi o trabalho da palheta e boca, fazendo esquecer que o saxofone tem outras partes que mais aparentam ser momentaneamente irrelevantes. Há muito de atitude punk, de jazz, de samba e funk que se torna mais notório pela abordagem de Zenícola no baixo, de fusão entre os elementos. A bateria de Valinho, é um processador de rimas rítmicas, frases curtas e múltiplas, com a adição de mais e mais elementos à construção, capaz de definir melodicamente a composição da música enquanto não prescinde da função primordial do ritmo. Pese embora as incisivas linhas tocadas ofegantes na mesma nota tenham feito condessar a música num sentido preciso, ainda mais entusiasmantes foram os momentos exploratórios do baixo, que cativaram mais ainda, pelo detalhe da surpresa dos sons, fundamentais no aproximar da música ao absoluto improviso livre.
Voltam para um derradeiro tema em palco, que foi aliás a perfeita forma de partilhar e celebrar a felicidade que tiveram ao tocar em dia de festa — dia de lançamento de novo disco, sempre ao vivo.