Milhares de milhões de anos depois
Uma manhã acordou de céu magenta e mar lilás
O magenta era tão intenso que cheirava quente
E o lilás sabia a rebuçados cintilantes
De súbito, os peixes que nunca respiraram, cheiraram
De súbito, as aves que nunca comeram lilás cintilante, saborearam
E, em comunhão
Na estranheza libertaram-se
Porque, afinal, tudo era possível
Se a manhã era de céu magenta
Se a manhã era de mar lilás
Se os peixes cheiravam
Se as aves comiam cintilante
O céu magenta, mar lilás, peixes que respiram, aves que comem cintilante — a ecologia de ambientes desfocados do suposto e equivocado normal que se encontram, se aceitam e se descobrem. Portas que se abrem e atiçam a curiosidade e a vontade de rumar ao desconhecido, mesmo que o caminho tenha algo de estranho, surrealidade e abismo — assim aconteceu a 15 de dezembro o inédito encontro do trio MOVE com o Coletivo Gira, no Musicbox em Lisboa, com produção de Afárá. Foi poético e só com poesia é possível descrevê-lo. O trio MOVE, vencedor do Prémio RTP / Festa do Jazz na categoria de Grupo do Ano (2024), apresentou neste dia o seu novo álbum, Free Baile, editado pela Clean Feed Records, gravado ao vivo em Shenzhen, China, e convidou o Coletivo Gira para o acompanhar. Um encontro improvável e corajoso, quer da parte de quem convidou, quer da parte que quem foi convidado e aceitou. MOVE é composto por Yedo Gibson (saxofones tenor e soprano), Felipe Zenícola (baixo elétrico) e João Valinho (bateria). O trio já havia lançado um álbum em 2023, The City e veio confirmar com Free Baile o som que o caracteriza: vibrante, enérgico, aparentemente caótico, mas muito sensível ao detalhe, com pormenores no fraseado de cada músico a reverberar as suas diferentes influências — jazz, samba, rap, MPB, punk rock, música exploratória e criativa, improvisação — que, combinadas, constroem uma teia intrincada, complexa, mas sempre democrática e livre.
As convidadas especiais para este encontro, Coletivo Gira, criaram a roda de samba de mulheres que anima de forma incrível as sexta-feiras lisboetas no Clube Oriental de Lisboa onde, durante algumas horas tocam conhecidos sambas dos populares Leci Brandão, Jorge Aragão, Beth Carvalho, entre outros, e fazem fervilhar os corpos dos seus ouvintes que se deparam com a inevitabilidade de dançar. Com a mesma coragem que tocam e cantam todas as sextas, o Coletivo Gira aceitou juntar-se ao MOVE no dia 15 de dezembro e contou com a participação de Kali Peres (cavaco e voz), Tida Pinheiro (conga e repique), Lika Matos (tantan e caxixi), Bibi Nobre (baixo) e Emile Pereira (surdo, pandeiro e agôgô), às quais se juntou em participação especial Pri Azevedo (acordeão).
Numa perspetiva conservadora, seria improvável que os mundos destes dois grupos se cruzassem. Mas o inusitado aconteceu, quebrando alguns dos fatores que a priori poderiam condicionar esta união como, por exemplo, as linguagens musicais e estéticas distintas, quer numa perspetiva rítmica, melódica ou harmónica. Se MOVE flui através da ausência de ritmos muito vincados que perduram na música de forma mais geométrica e contínua, o Coletivo Gira segue por uma corrente que marca tempos fortes e fracos, sincopados, ritmos característicos da musicalidade que se constrói dentro de uma métrica marcada por compassos. Algo de semelhante se passa também com a melodia e harmonia: se no primeiro perdura a atonalidade, as dissonâncias e a ausência de estruturas harmónicas bem definidas, no segundo tudo isso muda, porque há tonalidade, há dissonâncias e consonâncias, há um desenho harmónico que segue o tempo e acompanha a melodia da letra das canções. Contudo, apesar de todas estas diferenças estéticas, há algo de muito forte e comum entre estes dois grupos: a humildade artística de cada uma das pessoas que os compõem e que entrou na disposição em meia lua no Musicbox para apresentar o álbum Free Baile e a sua entrega à música, ainda que isso tenha implicado a capacidade de se colocarem em situações de vulnerabilidade, a empatia de cada um e de cada uma delas, a capacidade de escutar o outro, respeitar, aceitar e de intervir sempre que necessário, sem sobreposição de egos criativos ou imposição de linguagens pré-existentes. A versatilidade, a vulnerabilidade, o desconforto, junto com a curiosidade, a capacidade criativa e inventiva, foi o que lhes permitiu dar a mão e juntos caminharem pelo som coletivo livre. Uma certeza quase absoluta pode afirmar-se: sem todas estas especiais características, o encontro não teria sido possível.
Perante um público expectante, a encher o Musicbox, a apresentação de Free Baile iniciou-se com uma bonita performance de Mariana Lemos, cujo movimento de dança materializou no seu corpo a vibração das ondas sonoras que provinham do baixo de Felipe Zenícola. Seguiu um solo de Yedo Gibson no saxofone soprano, onde o músico demonstrou toda a sua inovação e criatividade, capacidade técnica fora do comum, com uma abordagem desconstruída com pequenas variações do histórico chorinho de Pixinguinha, “1×0 (Um a Zero)”. A abertura estava feita e Felípe Zenícola e João Valinho juntaram-se a Yedo Gibson para, numa primeira parte, apresentarem o som de MOVE, através de Free Baile, numa combinação muito intrincada e profunda entre os diferentes instrumentos, com momentos de elétrica intensidade sonora, a transportar o público para um ambiente punk, e outros de minimalismo minucioso, sempre a transparecer uma grande intimidade artística entre os três que se traduziu na fluidez da música que se escutou. Uma das características de MOVE, que em certa medida define também este trio, é a incrível capacidade de quando um dos integrantes lança as suas influências para o centro (acima já referidas), todos em conjunto a desconstruirem-nas de imediato, desmontando-as em pequenas peças para as reconstruirem e darem novos significados. E foi também com essa abordagem que decorreu a segunda parte do concerto, ai já com a presença do Coletivo Gira, perante a aura de um público curioso e animado. As duas formações desenvolveram escuta atenta com respeito mútuo e, de uma forma democrática, percorreram as suas diferentes linguagens. Várias de conhecidas frases musicais foram colocadas no centro da meia lua e, a dada altura, os grupos quiseram inverter linguagens — o Coletivo Gira desconstruía as suas melodias e ritmos e os MOVE procuravam dar desenhos geométricos e voz instrumental às melodias e ritmos de alguns sambas. Não poderia faltar Cartola, Baden Powell ou o famoso samba “Zé do Caroço”, entre muito outros. Houve público que estranhou, houve público que adorou, mas ninguém saiu indiferente. Afinal, o público de um e de outro também se permitiu experimentar algo novo.
A energia da liberdade permaneceu em altas durante mais de 2 horas de música. Foi bonita a festa e ficou demonstrado que mundos diferentes se podem cruzar, mesmo que aparentemente o seu encontro possa conter alguma surrealidade. Afinal, só a poesia para o ilustrar. E porque não imaginar um peixe a cheirar ou uma ave a comer cintilante? Tudo é possível, haja liberdade.