Um aviso na bilheteira da Culturgest alertava para o facto do espectáculo Dimensional People dos Mouse On Mars conter luzes estroboscópicas. E foi realmente assim que ontem a viagem começou, com um grande auditório bem composto para ver e ouvir Jan St. Werner, Andi Toma e companhia a viajarem através das arrojadas propostas do mais recente álbum desta histórica e sempre inventiva dupla alemã.
Mas o concerto começou com o palco vazio de gente, embora cheio de som e luz. Estroboscópica, precisamente. Na entrevista que concedeu ao Rimas e Batidas, St. Werner ironizava sobre o futuro mais imediato dos Mouse On Mars dizendo que se calhar o seu próximo álbum se fará deixando as portas do estúdio abertas e as máquinas ligadas. O arranque do espectáculo de ontem dá-nos uma ideia do que queria, afinal de contas, dizer o homem que é metade do projecto já há muito sediado em Berlim: com pequenos dispositivos – robôs? – que accionam percussões dispostas em diferentes lugares do palco, e com a sincronia das luzes, cria-se um hipnótico ambiente que nos assalta os sentidos, mas que imediatamente nos arrasta para dentro de um universo particular em que homens e as suas criações dialogam.
Não foi por acaso que a primeira apresentação de Dimensional People decorreu em Somerville, Massachusets, Estados Unidos, num evento organizado pelo MIT, de título Dissolve Music. “Before you can solve, you have to dissolve”, propõe o programa do evento criado por aquela que é uma das mais conceituadas instituições de investigação tecnológica do planeta. E de facto, como Jan St. Werner procurou explicar-nos, os Mouse On Mars têm feito muito para dissolver: barreiras entre géneros ou entre noções de espaço e de tempo, por exemplo. Neste espectáculo a disposição espacial das fontes sonoras é importante. Se Jon Hassell — cuja música parece aliás ser evocada a dada altura da viagem em que Dimensional People embarca – criou em tempos a ideia de 4º mundo, talvez com os Mouse On Mars se possa falar em 4ª dimensão…
Além de Andi Toma e Jan St. Werner, ambos rodeados de parafernália electrónica, processadores de efeitos, etc, no palco encontravam-se Andrea Belfi na bateria, Hilary Jeffery no trombone e trompete e Dodo Nkishi na percussão, embora nenhum dos músicos se limitasse a apenas uma coisa, com cada um a divergir pontualmente para outros instrumentos ou geradores de som, de guitarras a sirenes. E à frente do palco, justamente creditado nas notas de sala, Max Weber-Kohrich, a orquestrar frequências e volumes, para nos pintar a imersiva paisagem sonora que nos envolveu a todos.
E a música gerada pelos cinco elementos em palco, pelo técnico de frente e, obviamente, pelos percussivos dispositivos estroboscópicos, soou como uma espécie de “quarto mundo” frenético, cruzando fronteiras entre géneros em busca de território exótico ainda por desbravar. A dada altura, a voz processada do percussionista Nkishi por cima da caótica amálgama rítmica e textural gerada pelos seus companheiros fez pensar que a música naquele momento soava a Post Malone numa jam session com John Cage talvez produzida por David Byrne… E esse tipo de pensamento não cessou durante o que sobrou da intensa viagem: Stockhausen baleárico num momento, Fela Kuti em animado diálogo com os Kraftwerk no outro, Material, Defunkt, Frank Zappa… Flying Lotus a conduzir Miles Davis por material de Bitches Brew, John Zorn a comandar uma sessão com Linton Kwesi Johnson ou talvez Jon Hassell a suportar as deambulações poéticas de Amiri Baraka (a declamação de Dodo ajudou à ideia…)… King Tubby aos comandos da mesa de mistura numa sessão de Arca, os Beach Boys com Steely Dan, os Clash e Sun Araw em animado confronto de recorte dub…
A verdade é que cada um dos imaginários e obviamente impossíveis encontros aconteceu ali por via do protagonismo de alguns instrumentos (o trompete remeteu para Hassell ou Miles, de facto, a voz para o poeta dub ou o declamador pós-bop, os ritmos maquinais para os robôs kraut e por aí adiante), mas não é de descurar que estas tenham de facto sido coordenadas para a aventura conduzida pelos Mouse On Mars, que são conhecedores da história exactamente porque percebem que antes de resolver o futuro, há que dissolver o passado.
Foi fantástico, pois claro.