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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 18/11/2019

Tão desconfortável quanto necessário.

Moor Mother + Menino da Mãe na Galeria Zé dos Bois: abriguem-se, vem aí a verdade

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 18/11/2019

A chuva intensa em Lisboa não impediu que a sala de espectáculos da Galeria Zé dos Bois enchesse para se assistir aos concertos de Menino da Mãe e Moor Mother. A artista, originária de Filadélfia, voltou a um sítio onde já foi feliz (a solo ou com 700 Bliss e Irreversible Entanglements) para nos apresentar o seu mais recente álbum Analog Fluids of Solid Black Holes, lançado no passado dia 8 de Novembro.

As luzes da sala apagaram-se completamente para o primeiro concerto, ficando apenas strobes intensos apontados ao público. Menino da Mãe entrou com o seu fato de macaco e uma lâmpada de mineiro e rapidamente imergiu-nos numa experiência de experimentalismo e agressividade sónica, recorrendo a sons electrónicos fundidos com a sua voz, um pequeno tambor, objectos metálicos, um telefone fixo que era utilizado como um microfone distorcido e um aspirador com o qual criou um muro sonoro coberto de noise. Começando numa onda mais experimental e desconstruída, o performer passou depois a tocar algumas músicas do seu disco Felácios. Falésias. Falácias e ainda algumas faixas não-lançadas nas quais se consegue testemunhar a purga dos seus demónios e o seu ódio à cidade disfuncional que o rodeia. Tudo isto num ambiente grotesco e agressivo que não nos deu descanso. Após muitos gritos, batidas pesadas imbuídas em sintetizadores cobertos de noise, copos partidos e descidas à plateia, Menino da Mãe chamou ao palco Violeta Azevedo, que convidou para tocar a cover de “Bloco na Rua”, de Sérgio Sampaio. Acompanhado pela flauta modulada por pedais de efeitos, que transformaram o som do instrumento em algo que mais parecia uma guitarra, o músico criou uma ambiência que, ao mesmo tempo, vai ao épico e ao destrutivo, criando uma simbiose perfeita entre a linguagem dos dois artistas em palco e a de Sampaio, tendo ainda direito a um coro por parte dos membros do público. Marcada pelo contraste sonoro entre intensas camadas ruidosas e momentos nos quais vozes sampladas (que vinham da América do Norte, da América do Sul e de África) reinavam, a mensagem da poetisa foi bem clara: a pintura sónica, em conjunto com as palavras que escreve, cria um quadro que revela os podres da sociedade e os pilares nos quais esta se edificou, como diz em “Passing Time”, última faixa do álbum, acompanhada por batidas e cânticos africanos, “It’s so soft to the skin when you land in the cottonfileds of democracy”. São várias as referências que nos obrigam a viajar pela história dos pilares da construção dos EUA, desde os campos de algodão até aos motins que ocorreram em 1992 em Los Angeles devido ao abuso policial da LAPD, criando-se assim uma base para uma narrativa que deambula entre passado, presente e futuro — e a ideia será sempre dar a entender que, apesar das mudanças e aparentes melhorias, ainda existe muito para ser corrigido. O carinho do público foi recebido por Camae Ayewa, que trocou palavras e risos com os presentes, rimando no meio do público, e pedindo inclusive para as pessoas se aproximarem. A energia sombria que consumiu a ZDB na noite de ontem teve o poder para deixar marcas profundas em quem lá foi, e Moor Mother cumpriu o seu objectivo de espalhar as verdades inconvenientes que regem a sociedade em que vivemos, não esquecendo aqueles (os “bons” e os “maus”) que a construíram.

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