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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/02/2019

Irreversible Entanglements na ZDB: a revolução é real

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/02/2019

Camae Ayewa parece ser cada vez um daqueles nomes omnipresentes, essenciais quando se pensa no que de mais vital poderá estar a acontecer – neste aqui e agora. A sua relação com Lisboa, e em especial com a Galeria Zé dos Bois, tem sido um exemplo de dedicação mútua, demonstrando as múltiplas facetas de Camae. Tudo começou em 2017, apresentando-se a solo enquanto Moor Mother: aí deixou memória de uma estreia intensa e suada, abençoada pela melhor punk e industrial. Um ano depois, regressou com 700 Bliss, lado a lado com DJ Haram, onde semeou um campo magnético de electrónica distópica e poesia urbana. Já neste 2019, trouxe consigo um grupo de quatro experientes músicos de jazz, numa encarnação esteticamente diferente, mas percebendo-se de que se trata, afinal, da genética da artista norte-americana em constante movimento.

A larga afluência ao concerto de terça-feira passada revelou a curiosidade que o grupo suscitava junto da audiência, após um álbum homónimo que fez furor em diversas publicações. Os Irreversible Entanglements criam música longe dos parâmetros lúdicos, existindo e exigindo um sentimento de compromisso. Reflectem no final uma quase condição de luta social perante uma época de puro colapso: financeiro, político ou até intelectual. Um grito de luta de um colectivo em jeito de guerrilha jazz que deixou na ZDB um fogo lento, e a crepitar, por quase duas horas de concerto.

Bateria, contrabaixo, trompete, saxofone e voz foram os elementos para um ritual de elevação, dividido em dois actos. “Unlearn…start over” ecoou na sala como primeiras palavras de ordem, a abrir caminho a uma luxuosa performance de protesto. Ressaltou desde logo a qualidade de cada interveniente na partilha de uma esfera comum. Entendimento, espaço e criatividade no modo de interacção entre as cordas e os sopros, alimentaram um flow rítmico do início ao fim — sem atropelos ou qualquer tipo de urgência gratuita. Pautou-se, acima de tudo, por uma consciência na mensagem, transportada pelos rolamentos dos sons (neste aspecto, não poderiam estar mais próximos de uma versão actual dos The Last Poets).

A noite era deles, e havia tempo suficiente. Após uma breve pausa, a banda regressou ao palco para um segundo acto — e ainda mais musculado que o anterior. Na verdade, foi neste momento que a força possível (e máxima) do grupo se fez iluminar perante todos. Da percussão primitiva em chapa e lata, enquanto o contrabaixo tomava contornos de uma guitarra eléctrica, até ao duo de sopros de Aquiles Navarro e Keir Neuringer, uma perfeita simbiose, por vezes num uníssono inimaginável. Já de livro na mão, Camae recita excertos de realidade crua e dura da sua escrita em Fetish Bones. Retratos de violência e abusos, mas também de uma clareza de ideias e direcção, simultaneamente incómodo e genuíno, como um murro no estômago.

Se na década de 60, entre o surgimentos dos direitos civis e tumultos de rua, a fenda aberta pelo free jazz foi uma inevitabilidade, então os Irreversible Entanglements transportam esse mesmo sentido de reivindicação para os tempos igualmente tumultosos e estranhos em que vivemos. Porque a música, no papel de arte, também serve para isso: inspirar e transcender.


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