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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/04/2022

A tentar trazer algo diferente para a mesa.

moisés: “O Valsa até ao Fim é um diário complexo da minha vida em 2021/2022″

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/04/2022

Corria Fevereiro de 2020. A vida era relativamente normal (o que quer que seja que isso signifique) e a COVID-19 ainda parecia apenas uma pequena miragem para as nossas vidas. Foi nesse passado já longínquo (quantas vidas já se passaram desde então?) que Moisés Feliciano – que é como quem diz moisés — se estreou com o curta-duração sobre viver

Pouco mais de dois anos e dois meses depois, e após lançar mais uns singles – uns de forma mais oficial, “luz do sol” e “SUMO”, e outras de forma mais ou menos oficiosa no seu SoundCloud – e o seu segundo EP, 100 sonhos, moisés traz-nos agora o seu primeiro longa-duração, intitulado Valsa até ao Fim, que podem ouvir em primeira mão no Rimas e Batidas. Contando com colaborações de gonsalocomc, Phaser e Vert Gum, este é um trabalho que vai beber ao universo sonoro abstracto e eclético que o artista já tinha explorado nos seus projetos anteriores, mas refinando-o com novas influências, beats mais intensos e uma confiança extra para conseguir contar as suas estórias e os sentimentos que viveu ao longo do último ano – à sua maneira, é claro.

E é neste momento que podemos deixar que seja o próprio moisés, no comunicado partilhado com a imprensa, a apresentar-nos a este Valsa até ao Fim, “uma dança com a vida e, assim como a mesma, em constante mutação. Este álbum conta com uma sinergia de diversas abordagens e subgéneros que se complementam entre si para recriar o caos que habita o artista. ‘até ao Fim’, a música que encerra esta valsa, ao contrário do que o nome indica, procura deixar uma réstia de esperança de que ainda há mais, de que esta valsa – a que apelidamos de vida – está apenas a começar”, conta o jovem oriundo das Caldas da Rainha.

Para percebermos melhor como é que funcionou o processo criativo que nos trouxe até aqui, as motivações que o levaram a criar este disco e quais as suas ambições para o futuro, o Rimas e Batidas sentou-se à conversa, remotamente, com o produtor e MC para que ele nos indicasse o caminho para entendermos – ou tentarmos entender – um pouco do universo de Valsa até ao Fim.



Queria começar esta entrevista a puxar a tua cassete artística ligeiramente para trás no tempo. Como é que se iniciou a tua relação com a cultura do hip hop?

Ok, é assim, no final do meu secundário, eu comecei a ouvir Kanye West, Kendrick Lamar e, finalmente, Tyler The Creator. Tyler, Kendrick e Kanye foram a minha introdução. Eu já ouvia hip hop antes só que era uma merda. E desde aí foi só descobrir mais pessoal, mais cenas, e comecei a entender que este estilo é incrível e que não pára de evoluir.

Desde do teu primeiro EP, sobre viver, que tenho notado uma evolução tua enquanto produtor e MC. Como é que tem sido para ti ver o fruto desse processo a acontecer, enquanto artista?

Das melhores coisas, honestamente, de eu fazer música é voltar a ouvir os meus projectos antigos e ficar: “Oh meu deus, eu odeio isto [risos], não sei porque é que alguma vez fiz isto”. Eu adoro ver essa evolução constante na minha música e cada vez vem mais cedo. Imagina, eu fiz o 100 sonhos e veio-me muito mais cedo essa cena de, “ok, já consigo fazer muito melhor que isto”. E isso é mesmo fantástico e faz-me crescer bué como artista, porque quero só que a próxima cena seja diferente. Não necessariamente melhor, mas tem de ser algo [diferente]. Não posso manter-me a fazer sempre a mesma cena. Eu gosto muito disso. 

De certa forma, este Valsa até ao Fim é uma espécie de metamorfose para ti?

Certo. Mas eu sinto que em todos os meus projectos, e principalmente no sobre viver, eu era um bocado — bué — tímido. E eu sou um bocado assim como pessoa, no geral, mas neste projecto tentei puxar-me a mim mesmo para ser mais confiante. E isso tem a ver também com o que a vida me tem feito. Sinto que estou a crescer também como pessoa e a tornar-me mais confiante – ou pelo menos estou a tentar. E foi bué essa cena: eu neste álbum tinha de ser mais confiante em mim e mais confiante naquilo que consigo fazer.

Isso de tentares soar mais confiante é algo que se nota em Valsa até ao Fim, especialmente uma a nível de vocais e de flow. Soa muito mais arrojado do que aquilo que apresentaste antes. O que te inspirou para a tua abordagem a essas componentes – vocais e flow — neste teu longa-duração de estreia?

Uma cena foi mesmo isso que estava a falar – tentar ser mais confiante. Eu tenho um problema em que divido casa — e sempre dividi casa desde que estou a fazer música –, e tinha sempre um bocado de medo de estar no meu quarto e as pessoas estarem só a ouvir o que é que estou a gritar. E não é divertido [risos]. E veio um bocado dessa cena de, “olha, tens que parar isso. Caga só, ninguém se vai lembrar do que é que tu estás para aí a cantar durante o dia”. E experimentei essa cena de tentar estar mais confortável só a experimentar. E, para além disso, foi um bocado do que tenho ouvido. Mas isso é sempre, claro. Uma das minhas maiores inspirações de sempre como artista são os Injury Reserve, e eles são fantásticos no que toca a experimentar com a voz. Tentei muito pensar neles enquanto estava a fazer este álbum. porque o que eles conseguem fazer com a voz e a forma – não é a forma como eles estão a dizer –, mas a forma como eles estão a dizer te faz sentir… Acho isso incrível e  queria explorar esse meu lado também neste projecto, de como a sonoridade da voz te pode fazer sentir.

Falaste dos Injury Reserve, e acho que é uma influência que, de facto, se nota muito neste projeto. Logo a primeira faixa, “Valsa”, puxa muito do estilo deles – a “FRIO/CONFIO” também. Mas noto outras influências neste projeto: “part-time” e “vinteedois” lembram JPEGMAFIA, enquanto “anjoANJO” leva-nos às experimentações de electrónica de Vince Staples em Big Fish Theory. Como é que foi gerir todo o universo sonoro deste longa-duração?

Foi muito complicado, honestamente. É assim, este projecto nasceu um bocado do nada. Eu quando acabei o 100 sonhos estava: “Ok, agora não quero fazer um projeto, quero só estar a experimentar fazer sons e ir lançando uns singles”. Mas eu fui fazendo vários sons e fiquei do estilo: “Isto está a tornar-se outra coisa”. E por isso é que estive um ano parado [risos]. Foi muito complicado porque eu faço música não há muito tempo e eu estou constantemente a experimentar e é uma cena que eu adoro fazer, misturar todo os estilos com a minha cena. Não gosto nada de ser referenciado como hip hop, principalmente. Apesar de eu saber que sou, estás a ver? Eu entendo perfeitamente porque é muito notório, mas a cena que eu me orgulho mais do meu hip hop, vá, é o facto de não ser boom bap, não é trap. É sempre qualquer coisa diferente disso, apesar de ser isso ao mesmo tempo. E foi isso um bocado o que eu tentei fazer. Todos os sons têm hip hop, mas com um twist diferente. Talvez não a “inseto frágil”. Acho que essa foi a que eu saí mais da minha zona de conforto em termos de produção. Mas foi um bocado complicado decidir. Lutei muito dentro de mim para saber se o álbum estava demasiado confuso ou não, em termos de estilos. E, no final, até foi o Miguel — o Phaser — que me disse: “Deixa estar, faz só. Está fixe assim, pára de duvidar tanto nessa cena e vai só”. E eu fiquei: “Ya, também às vezes sou um bocado parvo”. [risos]

Sobre essa questão da tua música ser categorizada como hip hop, nota-se a influência de outros estilos nas faixas deste projeto. Por exemplo, a a bateria do single de antecipação, “Quarto com 1 vista”, é muito orgânica, a puxar para uma influência mais rock.

Exacto. Foi a cena que mais me influenciou, o outro estilo “maior” neste álbum, foi o rock, sem dúvida. Nunca fui muito do rock e sinto que devia de ter sido, porque faz parte da minha geração, estás a ver? Toda a malta da minha idade, com 23 anos, cresceu a ouvir rock. Eu não cresci muito a ouvir rock e tenho entrado muito neste último ano, e acho que é por isso que se nota tanto na música que eu fiz agora. Cenas como IDLES, e Black Country, New Road, ver a malta… Rock é dos estilos mais antigos e ver a malta ainda a dar twists completamente fantásticos a esse estilo só me inspirou para caralho para fazer isso mesmo.

Engraçado, que falas nos BC,NR e o último álbum de Injury Reserve [By the Time I Get To Phoenix] tem um sample de Black Country, New Road [na “Superman That”].

Certo. E de black midi, também. 

E o baterista dos black midi, o Morgan Simpson, gravou e fez co-produção numa faixa, [a “Outside”].

Exactamente.

Portanto, com todo este universo sonoro eclético que se ouve em Valsa até ao Fim, o teu processo criativo funcionou como para este álbum? Foi algo diferente do que fizeste no passado? Indicaste que demoraste um ano a preparar o projeto.

A questão de ter demorado um ano foi só porque acabei a universidade e tive na parte de entrar no mundo do emprego e isso tirou-me um bocado de tempo e vontade para conseguir fazer música. Foi um bocado complicado lidar com isso e ainda está a ser. Mas quanto ao processo, foi um bocado… Eu costumo fazer sempre isto. Eu venho para o PC, faço um som e vejo o que é que sai. E costuma ser sempre assim, estás a ver? Neste álbum, às vezes ia com uma ideia mais fixa do que queria em termos de estilo. Certos artistas que acabei de ouvir e fiquei do género, “curtia de ver se consigo utilizar esta inspiração para fazer algo em específico”. Foi uma cena em que experimentei um bocado. E o que mudou mais foi o facto de ter features neste álbum. Eu tenho um projecto com um amigo, mas é do género: ele vem cá a casa, fazemos cenas e nunca lançamos [risos]. Aqui não foi assim. Para o som com o Gonçalo [gonsalocomc] e para o som com a Nina [Vert Gum], já tinha alguns vocais lá – o Phaser foi o único que não tinha vocais nenhuns – e eu mandei os ficheiros para eles e fiquei à espera. E das minhas cenas favoritas, honestamente, de fazer este álbum foi ver as pessoas a trabalharem com o que eu fiz, porque nunca tinha sido assim de uma forma tão séria. “Tens aqui isto, tenta manter mais ou menos esta vibe”. Tentei sempre tirá-los um bocadinho da zona de conforto também, porque acho que isso é importante e eu estive constantemente a fazer isso neste álbum e, portanto, queria que as pessoas que participassem também fizessem um bocado isso. E então, ya, isso foi a coisa que mudou mais. De resto, foi um bocado mais de estar a fazer, ver o que é que soa bem, e ir juntando sons. Eu fiz muito mais sons do que o que está aqui e fiquei no final com um “ok, isto tem aqui uma história e estes funcionam”.

Bem, já conseguiste a proeza de antecipar uma pergunta que ia fazer [risos], sobre as colaborações. Falaste também da componente da história e acho que é isso que torna este teu longa-duração coeso, por muito eclético que soe. Há um fio condutor entre as faixas. Houve um trabalho da tua parte para conseguires atingir isso com este alinhamento de canções?

Sem dúvida. Eu acho que [isso é] uma das partes mais difíceis de fazer um projecto, um álbum, um EP, tanto faz. Conseguir juntar tudo para contar realmente uma história. E acho que isso foi das coisas que consegui fazer melhor com este trabalho. É uma história que nem eu sei bem o que é que está a contar, entendes? Eu tentei utilizar muito mais as sonoridades que construí para contar uma história. Ir pelo abstracto e o surrealismo do que uma história pode ser, muito influenciada por filmes do David Lynch e todo esse universo surreal do cinema. Queria mesmo só experimentar com isso. Muita da história acho que não vem do que estou a dizer, mas da forma que o estou a dizer por cima dos instrumentais que lá estão.

Falaste de cinema e eu sei que foste estudante de cinema na Universidade da Beira Interior (UBI). Até que ponto é que a sétima arte e o teu curso influenciaram a tua identidade artística?

[risos] Opá, cinema, portanto… Eu adoro cinema. Cinema é das melhores artforms que existe. Para mim, está mesmo colado com a música e, ainda por cima, juntam-se super bem. Eu adoro isso. E gosto muito de fazer cinema também. A questão é: nós vivemos num país que tem um orçamento de estado para a cultura muito pequenino, não sei se conheces, mas creio que sim [risos], e fazer cinema é das coisas mais complicadas de se fazer em Portugal. Senti que o curso mostrou bué isso e abriu-me os olhos para isso. Também o tipo de cinema que estava a fazer no curso, ou que kinda era – não era bem obrigado, mas kinda era “normal”, incentivado – não era de todo o que eu queria fazer. E foi assim que comecei a fazer música. E fiquei “ok, eu tava a dar tudo nesta cena do cinema, era isto que queria, mas vai ser complicado. Está na hora de ir experimentar qualquer cena nova”. E ya, eu já tinha experimentado fazer música uns anos antes e tinha sido horrível [risos]. Tinha corrido mesmo mal e desisti na primeira semana. E desta vez disse só: “Ok, vai”. E começou muito por ver os BROCKHAMPTON e como eles começaram. Isso deu-me muito força, por eles serem um grupo que começou completamente do nada, e foi só da sheer will que tinham para começar. Foi um bocado isso. Fiquei: “Se eles conseguem, tu também consegues”. E começou [risos] assim. Cinema abriu-me um bocado os olhos e deixou-me que a música agora fosse o processo para contar as minhas histórias. E também é muito mais fácil para mim. Eu posso fazer sozinho, não tenho de gastar balúrdio. É uma forma mais fácil de eu contar a minha história.

Alguma vez consideraste juntar as duas componentes num projecto grande, como um video-álbum?

Imagina, um vídeo-álbum é uma cena bué complexa. Estive a ver o Phaser – porque conheço-o pessoalmente -, e ele teve meses e meses a trabalhar naquilo e é mesmo um processo muito complicado. Ainda por cima o álbum dele tem quase 40 minutos – se não me engano, qualquer cena assim – e eu estive quatro dias para gravar este último vídeo [da “Quarto Com 1 Vista”] e já foi bastante complicado. E este vídeo tinha 3 minutos. Se eu quisesse fazer isso para a escala de um longa-duração, não tenho tempo suficiente na minha vida para isso [risos]. Infelizmente, claro. Mas pode ser algo que vá explorar no futuro, porque eu gosto muito de unir o visual com o sonoro e é o que tento fazer com os meus videoclipes – mas numa escala um bocadinho mais pequenina.

Já falaste um pouco nesta entrevista das tuas colaborações neste trabalho, e queria-te perguntar: fazer música e colaborar com outros artistas é algo que te estimula criativamente?

Sem dúvida, e era uma cena que eu queria tanto experimentar de outra forma, porque infelizmente nenhuma destas features conseguiu ser no local. Trabalhar fisicamente com os artistas. E eu quero muito, mas muito, fazer isso. Novamente, tenho outro projecto com um amigo meu que já estamos a fazer há algum tempo, e é fantástico nós estarmos os dois a mandar ideias um para o outro e isso faz com que tu consigas explorar coisas que nunca exploraste. E uma vez eu estive a fazer sons com o Adler Jack. Ele veio cá a casa e estivemos só uns dias a malhar e foi fantástico. Eu aprendi tanto com ele, em dois ou três dias. É mesmo muito muito bom, e é uma cena que quero bué explorar no futuro.



Este ponto que levantaste sobre a questão de colaborar presencialmente fez-me pensar na tua relação com o mundo da música portuguesa. Para alguém que vive na Covilhã, no interior e longe dos polos artísticos habituais do Porto e Lisboa, como é que é tentar navegar nesse universo? 

Horrível [risos]. É muito, muito complicado, e eu agora, por acaso, vou sair da Covilhã. Vou voltar para a minha cidade, que é as Caldas da Rainha, e acho que isso já me vai ajudar um bocadinho porque já tem um núcleo de artistas um bocado maior e é mais perto de Lisboa, o que pode ser bué bom para eu conseguir, talvez, pensar em concerto e colaborar com artistas que sejam de Lisboa. Esse tipo de coisas. Acho que isso era mesmo fixe. Mas trabalhar na Covilhã é um bocado complicado, mas não há nada que eu possa fazer quanto a isso porque Lisboa e Porto é muito impossível para mim conseguir viver lá. Se tivesse de ir para Lisboa ou para o Porto, não conseguiria trabalhar um part-time como trabalho agora e fazer música e trabalhar. E já com um part-time, é complicado, porque suga muita da minha energia. Para além do tempo, suga mesmo muita da minha energia. Se estivesse num full-time, eu sei que iria ser mesmo impossível para mim. 

Aqui, portanto, o mundo da Internet é muito preponderante para ti, para conseguires que a tua música chegue a mais pessoas?

Certo. A Internet está mesmo a fazer nascer todo um movimento de artistas. Principalmente na música, [a Internet] fez com que fosse possível fazer tantas mais coisas, e é mesmo estranho pensar que, para aí há 10 anos, era impossível um miúdo fazer o que eu estou a fazer. Estar só no seu quarto, conseguir fazer e lançar um álbum sem apoios nenhuns. Nada, estás a ver? Eu tenho zero dinheiro investido neste álbum. É só trabalho meu. E é mesmo estranho pensar que isso era impossível, completamente impossível, há uns anos. É mesmo uma parte incrível da Internet, conseguires aprender coisas tão facilmente e colaborar e conhecer pessoas que estão a querer fazer o que tu fazes. Isso é lindo, mesmo.

Estamos a regressar ao campo dos BROCKHAMPTON e de como eles se conheceram num fórum de fãs do Ye.

É mesmo. Como é que 20 gajos falam e tornam-se um dos maiores grupos de hip hop de sempre, estás a ver? Eles vão deixar uma marca para sempre. Meia dúzia de gajos a falar num fórum. Isso é incrível.

Tu dizes, no comunicado partilhado com a imprensa, que este “projeto marca uma emancipação de moisés e da forma como se apresenta ao mundo”. Artisticamente falando – ou talvez até pessoalmente –, que emancipação é esta que falas?

É um bocado o que já tinha tocado há pouco, sobre a forma como me estou a mostrar ao mundo. Antes, mostrava-me como uma pessoa mais frágil, e ainda tenho isso neste projecto, mas sinto que mesmo quando eu entro na parte mais frágil… Tento explorar uma forma mais de “olhem para mim, eu estou completamente bem e sou mesmo fixe”. Mas quando vou para a parte mais frágil, é mesmo assim, eu estou mais convicto do que estou a partilhar. É só que estou mais aware de mim mesmo e isso deixa-me ser mais frágil à vontade. Acho que também é preciso ter bué força para ser frágil, assim dessa forma. Eu estou a tentar deixar os meus medos para trás e a vir como eu sou, ou como eu quero ser, com este álbum.

Acho que isso toca num ponto que referenciaste na entrevista que deste ao jornal da UBI, em que dizias: “escrever sobre o que me atormenta é uma espécie de terapia”. Isto foi algo então que se manteve em Valsa até ao Fim?

Sim, sem dúvida alguma. E não só escrever, mas fazer música, no geral, é muito terapia. Foram muitos os momentos em que isso era o que me ajudava a passar o dia e sinto-me muito bem quando consigo transparecer algo que eu estou a sentir através da minha música. É mesmo bom. Este álbum é basicamente um diário do que me aconteceu no último ano. Não está aí tudo o que aconteceu, mas dá para entender o que é que se anda a passar. É um bocado isso: um diário complexo da minha vida em 2021/2022.

Estamos aqui a falar, portanto, de questões de saúde mental, certo?

Certo.

De que forma é que esse tema acaba por se reflectir na tua música, de forma mais concreta?  É um tema que, em Portugal, só agora começamos a sair do estigma que tem associado.

Essa é uma pergunta que… [risos]. Saúde mental é, claramente, o foco maior da minha música. E sinto que estamos a entrar outra vez na cena da terapia. Eu nunca fui a um psicólogo até agora, e sei que provavelmente devia ir, mas ainda não deu [risos]. Eu utilizo a música para isso. É como se eu estivesse sentado com alguém a falar sobre os meus problemas. Eu gosto de ser vulnerável porque sinto que alguém pode ouvir e pode ser vulnerável também. Pode não estar a sofrer o que eu estou a sofrer, mas daí entende que estou a sofrer também, e que não está sozinho quando está a sofrer e isso é muito importante para mim. Saúde mental é uma cena complicada que ainda é recente [na esfera pública], parecendo que não. Eu entendo isso porque os meus pais são mais velhos e é complicado falar com eles sobre essas cenas. Eu acho muito bom usar a música, e principalmente o rap, para fazer isso. O rap consegue ser um espaço cheio de masculinidade tóxica e eu acho que é bom — e já está a acontecer um bocado — o que está a acontecer agora, que é uma espécie de movimento em que os homens estão-se a tornar um bocado mais vulneráveis. Acho que isso é bom. Eu estou a gostar de ver essas mudanças no mundo do hip hop. Acho que é muito bom, mesmo.

Falaste da masculinidade tóxica no hip hop e isto trouxe-me à mente o artigo publicado na revista multimédia Interruptor, em Novembro de 2020, sobre a misoginia no rap português. Lembras-te disso?

Certo, lembro-me sim senhora [risos].

Acho que a tua resposta toca nesse artigo. No ano passado também, o Conjunto Corona, quando lançaram o G de Gandim, na entrevista que deram ao jornal i, foram interpolados e conversaram sobre esse artigo, já que na classificação geral de misoginia por número de palavras surgiam perto do primeiro lugar.

Esta questão é um assunto muito complicado, porque eu gosto de sons em que sei que pode estar ali algo que é errado, e é complicado meter uma linha aí. Temos o exemplo do Chico da Tina que, de facto, se fores ouvir as músicas sem nenhum contexto, sem nada, tu ficas: “Este gajo é uma merda”. O contexto é, sem dúvida, importante. Tens esse exemplo do Chico da Tina, e o [Conjunto] Corona, sem dúvida, outro exemplo. O trabalho mais antigo dos Corona é um bocado tenso às vezes [risos]. Mas eu achei mesmo muito fixe da parte do David Bruno de dizer algo do estilo: “Ya, nós estamos a tentar mudar isso e entendemos que erramos. Não há nada que podemos fazer para além de melhorar daqui para a frente”. E eu gostei muito disso da parte dos Corona.

Vi um tweet teu em que dizias que sentias que este teu projecto, Valsa até ao Fim, se difere de tudo o que está a ser feito actualmente no hip hop tuga. Em que sentido é que achas isso?

Opá, honestamente… Eu não sei se posso dizer isto, mas eu tenho um problema com o hip hop tuga, no geral. Eu sinto que Portugal ficou um bocado parado, honestamente, no que toca ao hip hop. E tu olhas para o trabalho que está a ser feito lá fora, e Portugal ainda continua nas mesmas coisas dos anos 90 e 2000. Agora, há muito mais artistas e finalmente, também no hip hop, há um novo twist. Mesmo continuando um bocado com as sonoridades mais antigas, conseguem dar um novo twist. Mas eu sinto que nós ainda temos muito por crescer. Eu consigo pensar em 10 nomes e tu tentas olhar para Portugal e não vês quase ninguém a fazer algo assim. Por exemplo, JPEGMAFIA não existe. Nada perto, estás a ver? Eu acho que – pessoalmente — sou o artista que mais se aproxima de JPEGMAFIA e, mesmo assim, nem perto do estilo que ele está a fazer. Tens Kanye West, que foi uma influência gigante lá fora, e cá em Portugal não se nota assim tanto. Eu acho que honestamente quem se aproxima mais é o ProfJam. A Think Music foi uma cena que, apesar de eu não ter sido o maior fã de todos os artistas, fiquei do tipo: “Nice. Ainda bem que estão a fazer qualquer coisa de diferente cá”. Eu fico muito feliz quando consigo encontrar artistas a fazer algo de diferente. Acho que isso é mesmo importante. O crescimento da música, o crescimento do estilo, é só isso que nós podemos fazer como artistas. É continuar a trabalhar para evoluir isto tudo. Eu acho que o hip hop tuga parou um bocado e eu sinto que estou a trazer influências de Tyler, Childish Gambino, JPEGMAFIA, Injury Reserve, de IDLES, de Paris, Texas… estou a misturar bué cenas que não existem em Portugal e a tentar trazer algo de diferente.

Última pergunta então: com o disco lançado oficialmente amanhã, o que se segue no futuro para o moisés?

Essa é sempre a pergunta mais complicada, não é? [risos] Opá, não gosto muito de responder a essa pergunta porque sinto que me estou a fechar numa caixa a fazê-lo, e não quero estar a dizer aqui “Ya, vou agora fazer um álbum com 3 horas, vai ser a cena mais incrível, fantástica, de sempre”. Não, legit os meus próximos 10 sons podem ser trapalhadas de merda. É só isso, estás a ver? Pode ser só literalmente isso.

Aí ias-te contrariar, porque há uma música tua, a “SUMO”, em que dizes mesmo que “tudo menos trapstar”[risos].

Certo [risos], mas eu faço [risos]. Eu gosto muito de trap, e eu gosto muito de misturar trap com o meu estilo, por acaso, apesar de odiar trap genérico. Porque trap é dos estilos em que consegues ser tão criativo, tão criativo, e depois é tudo tão formulaico e isso estraga um bocado o estilo, infelizmente. Mas o que eu quero fazer mais agora é colaborar. Eu quero entrar em sons de outras pessoas, quero produzir para outras pessoas, quero fazer um bocado isso. Também adorava que alguém produzisse para mim, tipo especificamente. Gostava bué de me juntar a um produtor em Portugal e de ter um projecto feito com essa pessoa.


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