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Fotografia: Garras / Outros Ângulos
Publicado a: 21/03/2024

Sukundi na Undi é o novo álbum do rapper da Cova da Moura.

MJ SoulJah: “Sempre quis ser independente”

Fotografia: Garras / Outros Ângulos
Publicado a: 21/03/2024

No princípio era a dança. Estávamos no início da década de 1990 e MJ SoulJah, ainda adolescente, aventurava-se com os primeiros toques em rodas, seguindo os passos de Michael Jackson e aprendendo com os mais velhos que, na Cova da Moura, tal como em muitos outros bairros, criavam novas formas de dança, movimento e expressão corporal. Com o rap ainda a dar os primeiros passos no país, só alguns anos mais tarde descobriu, com o seu primo Stef, que podia comunicar não só através do corpo, mas também da voz, da palavra e da poesia. 

Começa assim, na segunda metade dos anos 90, a sua caminhada na música, inspirado não só pelo reggae e pela música cabo-verdiana da sua infância, como também pelos pioneiros do rap em Portugal, a começar por Djoek, percursor do rap crioulo, cuja história também contámos por aqui. MJ SoulJah faz parte dessas primeiras gerações que abriram as portas do movimento, embora nunca se tenham conseguido profissionalizar na música. Tarefa difícil, é importante dizê-lo, para qualquer jovem músico negro, ainda mais nessa altura, e em particular para quem teve de se meter ao trabalho desde muito cedo, construindo, tijolo a tijolo, e dia após dia, muitas das casas e edifícios que habitamos ou onde trabalhamos. 

Firme aos seus valores, as dificuldades nunca abalaram MJ, que no início dos anos 2000 foi uma das vozes dos Souljah, grupo fundamental no rap crioulo em Portugal e particularmente acarinhado nas ruas. Com os Souljah descobriu que o crioulo era a forma de expressão natural da sua música e os seus versos foram sempre ecoando nos bairros, geração após geração. É deles, por exemplo, “Pa Nha Rapaz“, um dos mais importantes hinos do rap que circula nas ruas, reivindicando que as vidas negras importam, muito anos antes da expressão de tornar um hashtag.

Toda essa jornada se espelha agora em Sukundi na Undi, o novo álbum do músico, desta vez a solo, de onde extraiu os singlesKu Nada Bu Ka Ta Importa” e “Sukundi na Undi“, e cuja edição física pode ser adquirida na Bazofo ou na Black City. Esta é a história de mais um dos protagonistas do hip hop em Portugal, género que hoje faz circular muito dinheiro por uma indústria apostada em lucrar com estas linguagens culturais e artísticas, mas cujos pioneiros são muitas vezes esquecidos e invisibilizados. Não aqui, não agora. Eis a história MJ SoulJah, aqui contada pela voz do próprio, nesta longa e generosa entrevista.



Começaste o teu percurso na música ainda na década 1990, nesses primeiros anos do rap em Portugal. Como é que se inicia esse caminho? 

Eu no início dos anos 90 ainda só dançava. Comecei a cantar por volta de 1996 por influência do primo Stef, que foi quem começou primeiro a fazer rap. 

Dançavas o quê, breakdance? 

Eu fundia várias artes e danças, o breakdance, o estilo do Michael Jackson, o funaná, a kizomba, o samba, o reggae, misturava todas essas influências. Estamos a falar de 1990 até por volta de 1996. Havia torneios nas escolas, festas das listas, faziam-se rodas e eu ia dar os meus toques. Naquela época havia muita malta ligada ao breakdance que te ensinava porque era muito raro conseguirmos ver filmes. Havia um filme que chamava Breakdance, de que muita gente falava, mas só em adulto é que o consegui comprar. Naquele tempo era difícil ter esse acesso e a Internet era muito escassa. Quando comprei esse filme já tinha aprendido a dançar com a malta. Normalmente o que um gajo conseguia ver eram os toques do Michael Jackson ou de Kris Kross, que foi um grupo que me inspirou bastante. 

Tinhas nome de b-boy?

MJ tem vários significados e naquela época era uma referência a Michael Jackson, porque quando entrava na roda a maioria dos toques eram inspirados nele. 

Começaste a dançar na Cova da Moura, no início dos anos 90. Nessa altura já se ouvia e fazia rap no bairro?

Acho que o rap terá aparecido ali por volta de 1995. Tinham aparecido os Black Company, antes deles o General D, e nessa altura apareceu o primeiro estúdio na Cova da Moura e um dos primeiros MCs, que é o Djoek

O álbum dele de 1996, Nada Mí N’Caten, terá sido o primeiro álbum de rap crioulo em Portugal. 

Sim. A primeira referência de que me lembro é o Djoek. Naquela altura eu já tinha começado a cantar, fomos ao ringue da Buraca ver um concerto e foi a primeira vez que vi o Djoek cantar. Depois outros amigos levaram-me a casa dele porque, no sótão, ele já tinha um estúdio. Foi a primeira vez que entrei num estúdio cheio de aparelhos. 

Estamos em 1996? É nessa altura que começas a cantar? 

Sim, 1996 ou 1997. Nessa época eu não saia muito, mas uma vez fomos a uma festa e de repente o meu primo Stef começou a rappar. Eu disse: “Txé, o que é que é isso mano?!” A partir daí comecei a cantar também, mas ainda não rimávamos em crioulo de Cabo Verde, cantávamos só em português. Tivemos um primeiro grupo que eram os Legalize, com cinco elementos, e só mais tarde é que eu e o Stef formámos os Souljah. As nossas primeiras maquetes desapareceram porque eram cassetes e a fita rebentou. Uns anos depois, quando comecei a trabalhar, juntei dinheiro para comprar um MiniDisc, e a partir daí já podíamos gravar, e quando não estava do nosso agrado podíamos apagar e gravar por cima. 

Tu nasceste na Cova da Moura? 

Não, nasci em Lisboa, em São Jorge de Arroios. Até aos 3 anos morei na Rua da Fé, onde vivia o António Variações e onde tinha o cabeleireiro dele. Mas aos 3 anos vim para a Cova da Moura.

Os teus pais são de Cabo Verde?

Sim. O meu pai veio para Portugal em 1973. Trabalhou, arranjou condições e depois veio a minha mãe. Somos três irmãos e todos nascemos cá. Em 1983 o meu tio tinha uma casa, um rés-do-chão na Cova da Moura, e deixou-nos construir em cima um primeiro andar. Nessa época praticamente toda a gente que veio de África foi para os bairros e começaram a aparecer não só a Cova da Moura, mas a Pedreira do Húngaros, o Santa Filomena, Damaia, 6 de Maio, Estrela de África e muitos outros. Antes de ir buscar a minha mãe, o meu pai morava numa caserna, como chamavam na altura, que eram os contentores das obras. Trabalhavam nas obras, dormiam e viviam lá. Neste álbum novo, Sukunki na Undi, tenho uma música, a “Imigranti”, que fala dessa história e do facto de muita gente dizer que está farta de imigrantes, quando foram os imigrantes que construíram o país. Se não fossem eles, muitos sítios ainda estavam inabitados, ainda eram mato. 

Chegaste ao bairro em 1983. Que memórias tens da tua infância e adolescência?  

Quando fui para lá, lembro-me que o meu pai, quando saia do trabalho, começava a trabalhar na nossa casa. Era até à noite, às vezes até ia com uma direta para o trabalho, para construir e preparar a nossa casa. Ele foi trabalhar nas obras, depois nos caminhos de ferro, como contínuo. Saía, por exemplo, às seis horas da manhã de casa e muitas vezes combinava com os vizinhos para depois do trabalho começarem a fazer a massa, a fazer paredes, a rebocar, etc. Estávamos na casa do meu tio, que tinha a família dele também. Tinha só um quarto para nós e ele já tinha uma filha, estavam a dormir os três. Queríamos construir o mais rápido possível a casa para o deixar à vontade.

Nessa altura quais são as primeiras memórias musicais de que te lembras? 

Eu lembro-me bastante do reggae. Eu gosto muito daquela sonoridade do vinil, mas o meu pai não me deixava mexer no gira-discos [risos]. Lembro-me dos grupos de Cabo Verde que o meu pai tinha, em que em quase todos os discos havia uma ou duas músicas com uma sonoridade reggae. Lembro-me, por exemplo, dos Black Power ou do Norberto Tavares, que também já tinham um estilo de intervenção. 

Então as tuas primeiras memórias vêm da música cabo-verdiana e do reggae? 

O reggae mexia muito comigo. Claro que a música tradicional também esteve lá, mas quando vinha aquele reggae… Sabes que a batida do reggae é a pulsação do coração, aquilo mexia comigo. Quando fui para o quinto ou sexto ano, comecei a ouvir música estrangeira e só vim lembrar-me do reggae em 1997 quando um amigo me mostrou o Bob Marley. Eu ouvi aquilo e percebi que já conhecia esse batimento desde puto. Eu gosto muito de reggae e depois vim a saber que é uma música espiritual. Mas comecei a ter também muita ligação com o batuku de Cabo Verde, que é também um estilo muito espiritual, e que comecei a cantar também.

É também nessa altura, por volta de 1997, que começas a cantar rap. 

Sim. Na dança, quando a gente entra na roda, está-se num desafio, e é através de gestos que comunico contigo. Mas quando me apresentaram o rap percebi que podia comunicar de outra forma e não apenas com gestos. Mas não quer dizer que nessa época cantasse intervenção. Infelizmente, comecei com essas referências que hoje chamam de beef, mas percebi rapidamente que aquilo era uma fantochada.

Percebeste logo que tinhas queda para escrita e para o flow?

Isso vem de antes. Eu lembro-me que, quando andava na primeira classe, descobri que tinha um dom para decorar. Um dia ia haver uma visita a um circo e a professora disse: “Quem não tiver esse texto na ponta da língua, não vai ao circo!” Eu não costumava estudar em casa, mas como tinha vontade de ir pus-me a ler e a decorar aquilo. No dia seguinte, a professora mandou-nos para uma fila e disse: “Tu, quero a leitura”. Eu comecei a transpirar, peguei o livro e comecei a ler. Quando acabei, ela disse: “Muito bem, já viste que quando queres consegues ler bem?” Só quando fechei o livro é que percebi que nem estava na página, tinha tudo decorado. Eu não ligava muito à escola, mas percebi aí que se era mau aluno era porque queria. E percebi também que tinha facilidade quando a professora mandava fazer composições porque conseguia fazer uma história com início, meio e fim. Em 1995, quando ainda andava na escola, a malta dizia: “Tens jeito para a poesia, faz aí umas poesias”. Eu fazia, mas era só no gozo, a gozar com este e com aquele. Percebi rapidamente que isso não tinha futuro, que era melhor começar a usar palavras mais sérias, com o objetivo também de educar. 

Começas a cantar com esse primeiro grupo, os Legalize. 

Sim. Cantávamos rap em português. Naquela altura, em 1997, ensaiávamos no espaço jovem do Moinho da Juventude. Na época havia também outros grupos que ensaiavam lá e que tenho como referência, como os Dream Factory e Menance to Society. Não ensaiávamos propriamente num estúdio. O que a gente fazia era levar a caixa de ritmos, ligávamos uma aparelhagem, cantávamos, mas não tínhamos possibilidade gravar. Só quando comecei a trabalhar, depois de 1998, é que começámos a gravar e a fazer maquetes. Fazíamos instrumentais numa caixa de ritmos da Boss que ainda tenho. Comprei-a na altura a 90 e tal contos, 450 euros hoje… 

Era um investimento caro na altura.

Sim, era caro. Mas naquele tempo já tinha começado a trabalhar e deu para juntar o dinheiro. É triste dizer isto, mas em 1997 eu ganhava mais do que ganho hoje. Nas obras fazíamos algum dinheiro, até com as horas que fazíamos a mais. 



E depois desse primeiro grupo, quando e como é que surgem os Souljah?

Os Souljah começam com uma música que eu e o Stef fizemos em 2003 sobre mães solteiras e violência doméstica. Os Legalize terminaram, ainda tivemos outro grupo, mas acabámos por ficar só eu o Stef. Nessa época ainda nem tínhamos nome, quem nos batizou foi o LBC Soldjah. Ele viu o nosso tipo de mensagem e sugeriu que o nosso nome fosse Souljah. 

Porque é que só com os Souljah é que começaste a cantar em crioulo?

Eu não sabia falar crioulo até aos meus 14 anos de idade. Nessa altura veio um amigo de Cabo Verde e como ele não sabia falar português, só falava em crioulo. A minha mãe dizia para não falarmos em crioulo porque ele, no ano letivo seguinte, tinha de aprender português e eu, se começasse a falar crioulo, ia-me baralhar. Mas foi a partir dessa altura que comecei a aprender e a tentar escrever. Apesar de não ter o dicionário de rimas que tinha em português, tinha mais facilidade e sentia-me mais à vontade a cantar em crioulo. 

E como é que aprendeste a escrever crioulo?

A pesquisar. O Moinho da Juventude sempre teve uma biblioteca bué rica em crioulo. Pesquisava, escrevia e as pessoas corrigiam-me. Mas era engaçado, porque quando os meus amigos vinham de Cabo Verde, eu mandava mensagem em crioulo e eles diziam: “Manda em português que a gente não percebe” [risos]. 

Como é que circulavam as músicas que iam fazendo com os Souljah? Gravam maquetes, cassetes, CDs, ou nessa altura as músicas já eram partilhadas na net

A nossa primeira música nunca foi editada. Foi gravada, mas perdemo-la. Depois fizemos um EP que tinha cinco músicas que gravámos num estúdio em Alfragide. Esse estúdio ajudou-nos bastante, era malta muito porreira, gostavam do nosso trabalho e gravavam-nos a custo zero. Um deles era o Bruno Cruxxx, do projeto Lisabon by Bus. Esse primeiro EP chamava-se O Princípio. Depois dessas primeiras músicas, fizemos uma música sobre as crianças no orfanato e a esperança de ter uma família e mandámos para um concurso do Programa Escolhas. Fomos selecionados, construímos um instrumental original para o tema, regravámos, e entrámos num álbum patrocinado pela Gulbenkian que se chamava 9 bairros, novos sons

E depois desse primeiro EP de 2003?  

Depois desse EP gravámos o álbum Vida di gueto, vida real que saiu em 2009. Foi gravado com o mano Rahiz, também conhecido como Celso OPP, que é da Portela e tinha este selo que era o Black on Black Production. 

Além dessas edições, foste sempre dando concertos, editando singles e já fazes música há 25 anos. A profissionalização era um objetivo que tinhas quando começaste?

Claro que qualquer músico sonha com isso, mas eu sempre quis ser independente. Houve quem quisesse ser nosso manager, mas eu sei que há pessoas que iriam querer mudar a minha escrita. Acho que aquilo que eu faço e que escrevo é importante e não penso mudar. Nem vou alimentar a ideia de que um dia alguém vai aparecer e me vai patrocinar. 

Hoje temos vários artistas de rap crioulo que se conseguiram profissionalizar na música, mas há uma primeira geração de pioneiros que nunca o conseguiu. Porque é que achas que isso aconteceu? 

No meu caso, o último álbum que nós fizemos com os Souljah foi em 2009 e só agora é que consegui fazer o meu álbum a solo. É difícil por causa das prioridades. Quando fizemos o primeiro EP, O Princípio, eu tinha um filho e não foi grande preocupação porque ele andava com o grupo para cima e para baixo. Depois vieram os outros e uma pessoa tem de dar propriedade aos filhos, à família e às contas.  Eu comecei a trabalhar em trabalhos esforçados, em obras, na construção civil. Em 1995 ou 1996, tinha 15 ou 16 anos, comecei a trabalhar nas férias para ter alguma coisa. E depois, ao longo dos anos, uma pessoa quando saia da obra vinha todo rebentado, mano. Não vou depois para estúdio para dormir lá, não é? Depois da obra uma pessoa não consegue ter aquela concentração para fazer letras. Antigamente, na construção civil, se estavas a fazer um piso no quarto andar, tinhas de levar tudo à mão, pelas escadas. E os nossos pais ainda foram mais mal tratados… Claro que já apanhei gruas, mas eram raras as que punham o material no piso. Contratavam o servente para carregar o balde de massa lá para cima, os tijolos, e quando te viam parado, mandavam-te logo varrer para não descansares. Pagavam bem, mas quando chegavas a casa… Muitas vezes uma pessoa nem tinha paciência e energia para os miúdos, quanto mais para a música. 

Mas foste sempre fazendo música enquanto tiveste outros trabalhos.

Sim, sempre. Trabalhei como servente, pedreiro, pedreiro ladrilhador. Mas depois veio aquela época em que a construção civil foi abaixo, na altura da crise, e muitos manos ficaram desempregados. Eu fui tirar a carta de pesados e um curso de cozinha e pastelaria. Ainda trabalhei 11 meses no Moinho da Juventude, fui o primeiro homem que trabalhou na cozinha. Entretanto chamaram-me para motorista de pesados na Câmara da Amadora. Neste momento conduzo apenas carrinhas porque tive uma lesão na coluna. Mas quando estava a conduzir pesados, no concelho da Amadora, o camião tinha de entrar em becos estreitos quase impossíveis, eram horas e horas a fazer manobras. É duro. 

Esta tua história biográfica reflete-se também nas tuas músicas e letras? Estou a pensar, por exemplo, na “Ka importa” em que fazes uma crítica ao trabalho excessivo durante a vida, à exploração e às desigualdades. 

Exato. As minhas músicas têm um cheirinho da minha vida, claro, mas também um cheirinho da vida do meu vizinho, da tua vida… Apanho as histórias de cada um e amplio-as para tentar tocar a todos. 

Acabaste de lançar Sukundi na Undi, o teu primeiro álbum a solo, que ainda só existe em formato físico. No entanto, as últimas músicas que foste lançando, como a “Di Nos não… Pamodi”, “Herói”, “Ka importa”, não aparecem neste álbum.

Sim. Este álbum foi lançado primeiro em formato físico, está à venda nos bairros, entre o people, na Bazofo ou na Black City. Em breve estará também no digital. Essas músicas que lancei não estão neste álbum porque farão parte de um álbum de reggae que vou lançar em breve e que foi feito com o Bruno Cruxxx e o Misty Faya. Neste álbum atual tenho apenas um reggae, que é a “Imigranti”, o resto é sobretudo rap e trap. 

Sendo um artista tanto de reggae como de rap preferiste editar esses dois registos em álbuns e formados diferentes?

Sim. E sou um artista de batuku também. O álbum de reggae está pronto, mas ainda estou a trabalhar na edição física. E estou a trabalhar também noutro álbum só de batuku mas em que não vai só entrar a tchabeta, vou ter também instrumentos, como bateria, baixo, etc. Todas as quintas vou a estúdio trabalhar. 

Sentes que esses três estilos te permitem falar de forma diferente sobre diferentes aspetos da tua vida? Quanto cantas a partir do reggae, do rap ou do batuku há diferentes partes de ti e da tua história que se expressam através dessas linguagens musicais? 

Eu acho que tenho o mesmo estilo de escrita, o que muda é o flow. Eu tive imensa dificuldade em entrar no flow do batuku, porque aquilo para entrares no tempo… As batukadeiras dizem que tens de estar no tom. A música não tem propriamente melodia, mas tem um tom e tens de apanhar o tempo. Tenho várias filmagens dos primeiros ensaios e concertos de batuku e vejo que não estava no tom. Nas mais recentes já percebo na cara delas, que já tocam com mais vontade porque eu estou mesmo no tom e no tempo.



Este novo álbum, Sukundi na Undi, vai ter concertos de apresentação? 

Ainda não tenho nada planeado. Em 2016 fui ao programa Bem-vindos e anunciei que tinha uma mixtape prestes a sair. Entretanto, por conselho de um mano meu, que conhecia o Vida di Gueto, vida real, decidi não fazer uma mixtape, mas um álbum. Deixei de usar instrumentais da net, para poder registar tudo. Fiquei seis anos a refazer tudo com músicos que me ajudaram e o esforço principal foi lançar o álbum. Vamos pensar em concertos agora que o álbum finalmente saiu. 

Quem participa contigo neste trabalho?

Neste álbum a produção é sobretudo o Ras M, mas também tem o Thadon e o Stef. O Ras M é o baterista do Rubera Roots Band. É um grande músico e uma pessoa muito ocupada, sempre em concertos. Quando lançaram o álbum deles não deram muito valor cá em Portugal. Foi preciso terem vários concertos lá fora para começaram a olhar para eles cá. 

Muita gente que começou ainda dos anos 90, ou no início dos anos 2000, não conseguia ter vídeos associados à música, mas tu, quer com os Souljah, quer no teu trabalho mais recente em nome próprio, foste sempre tendo videoclipes. Como é que se deram essas conexões?

O nosso primeiro videoclipe, com o “Pa Nha Rapaz”, aconteceu porque a TVI pediu para irem gravar uma cena no Moinho da Juventude, com figurantes, para a novela Floribela. O nosso manager na altura trabalhava lá no Moinho, deu-se bem com o cameraman, disse-lhe que tinha um grupo de rap, e se não dava para ele ajudar a fazer um videoclipe. Ele aceitou, trouxe a câmara e fizemos o storyboard. No “Pa Nha Rapaz” queríamos que as pessoas tivessem um embate com a realidade e dessem mais valor à vida. Queríamos mostrar isso porque naquela época quase todos os fins de semana estávamos em funerais de amigos que eram mortos em rixas, ou pela polícia. Quando lançámos o clipe, fizemos questão de convidar o subintendente Pereira, que esteve com outros dois polícias na apresentação do álbum na biblioteca da Cova da Moura. Para nós fazermos esse clipe tivemos algum trabalho porque decidimos filmar no cemitério e para ter uma autorização da Câmara custou — demorámos para aí uns seis meses. 

Mas teve um grande impacto.

Teve um impacto que a gente não estava à espera. Naquela época não sabíamos como meter um vídeo no Youtube, mas houve pessoal que meteu lá o vídeo. Na altura o vídeo foi gravado num CD e fizemos várias cópias em que de um lado tinhas o EP O Princípio e do outro lado tinhas o CD com o videoclipe. Alguém comprou o disco, acabou por meter o vídeo na net e é visto até hoje. 

Estavas a falar dessa geração da Cova da Moura, e até de outros bairros, que a vossa música retratou e interpelou. Passados vinte anos daPa Nha Rapaz, sentes que a situação social nos bairros tem mudado? 

Naquela época senti algumas mudanças. Muitos grupos mudaram o contexto e o foco das músicas, começaram a falar de outra maneira e a meter mensagem nos temas. Na altura houve algumas coisas que mudaram. Esse subintendente de que te falei, era uma pessoa que parava no Santa Filomena e nos vários bairros, estava com o pessoal. Era uma pessoa que quando chegava na Cova da Moura dizia sempre que se alguma patrulha atuasse mal, mesmo que não estivessem identificados, nós devíamos tirar a matrícula e o horário para ele saber quem é que tinha agido mal. Só que ele durou lá pouco tempo, estava a fazer bem o trabalho. Tanto que quando o tiraram de lá a versão da polícia já era diferente. Quando nos abordavam metiam-nos no chão para nos humilhar e diziam: “Então, não chamas agora o teu padrinho?” Naquela época havia uma tentativa de aproximação, até fazíamos torneios de futebol com a polícia. Quando te abordavam, primeiro pediam documentação, e só se não estivesses legal é que te levavam para esquadra. Agora primeiro dão-te porrada e depois é que te identificam. Mais recentemente a situação abrandou também um bocadinho por causa do caso de Alfragide, mesmo depois disso já houve situações de violência policial, algumas até que as pessoas filmaram.

Além do próximo álbum de reggae que projetos tens para o futuro?

Demorei seis anos a fazer este álbum e saiu um peso de dentro de mim. O pessoal que já ouviu reconhece que o álbum tem uma mensagem positiva e quero que o disco possa agora ser ouvido porque a mensagem é o mais importante. 

Nas tuas músicas falas de vários problemas sociais, mas também tens um discurso esperançoso. De onde vem esse teu lado? És uma pessoa espiritual? 

Sigo o rastafarianismo. Fui batizado, mas não sigo, foi muita deceção… Mas ainda ontem estive no estúdio do Moinho a gravar um som e a maioria do pessoal estava a sentir muito a letra e a energia porque estavam de luto. Eles sentiram uma esperança naquela música. Há muita gente que pensa que não está aqui a fazer nada. Já perdi vários amigos e agora estou a tentar dedicar-me a ajudar a tirar as pessoas dessa depressão, a ajudar a que ganhem força no que lhes dá mais alegria. Essas mensagens podem ajudar as pessoas a aguentar. 

Às vezes um discurso pode mudar um ângulo de visão. Como na tua música do “Herói”, que lançaste no ano passado, onde uma possível história trágica é interrompida por um miúdo, que começa a jogar à bola com o protagonista da música. De repente, toda a esperança pode estar naquele miúdo a jogar à bola.

Sim. Eu já tive várias situações em que não estava fixe e algumas pessoas ainda me instigavam a fazer o mal. Isso não são amigos, são pessoas que quem te querem atrasar. A “Herói” foi inspirada nesse tipo de cenas. Na época muita gente tinha problemas com patrões que não pagavam ao fim do mês e depois as coisas não corriam bem. A música também quer passar a mensagem de que há outras portas que se irão abrir e não vale a pena desgraçares a tua a vida. Na prisão vão-te dar comida, tens estadia, mas estás preso. É importante colocar isso nas letras para o people ter a consciência de que tu muito facilmente vais para a prisão. Se és imigrante e apanhas mais de três anos, não tens direito a documentação e ninguém te dá emprego.

É um ciclo. 

Sim. A mensagem é o mais importante, mesmo que um gajo não ganhe nada com isso. Só o facto de alertar o people já é uma cena importante. Eu quando vou a qualquer bairro, o pessoal reconhece. Quando fui ao bairro do Fim do Mundo pela primeira vez não conhecia lá ninguém, mas eles já conheciam o meu trabalho e não há nada melhor do que sentires-te respeitado. O pessoal vê que estás todos estes anos na luta e nunca te vendeste, isso é importante. 

No Fim do Mundo gravaste com o Garras [Outros Ângulos] no Take It Sessions. Foi só essa música?

Nessa ocasião levei uma música já pronta e ele fez o vídeo. Mas também tenho feito trabalho lá com um mano que costuma dar apoio ao Nex Supremo, que é Sking G. Fiz três músicas com ele e uma delas é um reggae que fiz com o Nex Supremo. 

Um reggae com o Nex Supremo?

Acho que foi a primeira vez que ele fez um reggae. Uma vez fui cantar no Bairro da Torre e ele e estava lá. Ele já me conhecia, mas nunca nos tínhamos encontrado. Disse que conhecia o meu trabalho, eu também sou muito fã dele e disse-lhe que gostava que dia a gente se juntasse. Depois disso, num concerto para o qual o Garras nos convidou aos dois, eu disse-lhe que lhe ia enviar uns instrumentais de rap, mas ele disse que podiam ser mesmo de reggae porque ele ouve reggae todos os dias. Gravámos com o Sking G, ele produz bué mesmo! Eu gravei a minha parte, vim cá fora, e quando voltei o som já estava super preenchido. O gajo tem 19 anos, mas tem um talento do caraças! Além de cantar bem, tem muito talento na produção, masterização, mix e master. Fica atento!


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