[TEXTO] Vasco Completo [FOTO] Direitos Reservados
Antes de uma pesquisa exaustiva pela história da música, é possível, sem ajuda da enciclopédia, lembrarmo-nos de grupos ou artistas que foram, algures na sua carreira, confrontados com o uso de elementos de música erudita. Seja a produção do álbum mais orquestrada, como The Wall dos Pink Floyd, ou o sublinhar de uma performance simplesmente com um conjunto de cordas (Olá, Frank Ocean) ou uma secção de sopros (SZA, como vais?) para acrescentar frequências e densidade sonora ao som. Kendrick Lamar, na sua fase pós-TPAB, chegou a tocar com a National Symphony Orchestra — a performance de “Mortal Man” é memorável. Kanye West tem um dos maiores exemplos desta experiência no mundo do hip hop com Late Orchestration. Até Beyoncé teve a sua actuação épica no Coachella acompanhada pelo que parece uma banda de marcha.
A questão da junção dos dois mundos faz — ou devia fazer-nos — pensar se existem realmente estes dois mundos em separado. Hão-de existir, claro, como mundos musicais separados, com as suas audiências, os seus músicos, os seus promotores e editoras. Perguntamos, no entanto, onde estão as divisões nas culturas erudita e popular.
Já não tem a ver com a classe social da audiência, à partida, porque o consumo musical se democratizou: é tão acessível ouvir o Lago dos Cisnes como o The Life Of Pablo. Check.
Não pode ser a instrumentação: podemos ir buscar inúmeros casos de uso de instrumentos musicais “pertencentes” aos diferentes géneros. Vamos assistindo a uma cada vez maior liberalização de quaisquer timbres em quaisquer estilos. Os Portishead não são música clássica. Nem J Dilla o era…
A “Eleanor Rigby” não é como uma canção de Schubert… ou é?
Check.
Põe-se, então, outra questão. Cultura popular será, logo a olhar o seu nome, a que é consumida pelas pessoas, que cativa a atenção dum público vasto e, logo, variado. Onde é que colocamos o Pavarotti? O André Rieu ou os Três Tenores? A música será “clássica”, sim. Mas poderemos sentar-nos nestas categorizações?
O mundo não é, claramente, a preto e branco, e entre estes universos musicais, as constelações fundem-se umas nas outras e os contornos esbatem-se. É, no entanto, quando os mundos colidem, que voltamos entender que as suas estruturas têm pontos de contacto, mas também divergências.
Migos, o grupo de trap mais famoso do mundo, juntou-se à Audiomack Live, em 2015, para Trap Symphony, EP composto pelas faixas “Hannah Montana”, “Handsome & Wealthy” e “One Time”. Os samples e sintetizadores são substituídos por violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, clarinetes, sinos e uma bateria (de tipo rock) que se ocupa da tradução da batida para um modelo acústico. O metrónomo é substituído por um maestro. As cordas tanto se ocupam de fazer a melodia como de reforçar a harmonia e o ritmo, tocando repetidamente os acordes.
Admite-se: a monotonia tímbrica é notada rapidamente entre os exemplos das três faixas que compõem Trap Symphony. Mesmo com uma maior quantidade de instrumentos, é difícil reproduzir a variedade de sons que compõem uma faixa com a produção típica de trap nestes moldes — em “Handsome & Wealthy” porque não colocar um coro? No entanto, continua a ser um grande exercício realizado pelos Migos e por quem fez o arranjo para pequena orquestra.
É particularmente fascinante pensar estas versões com um grupo como os Migos. Isto porque os diferentes géneros e culturas musicais apresentam as suas características – maleáveis, até certo ponto – e, dentro do que é discograficamente conhecido destes rappers, é que a sua produção encaixa que nem uma luva no que é o trap. Mas tendo um estilo não tão flexível ou variado como o de outros grupos, torna-se mais interessante colocar este exemplo face a desafios como o de Trap Symphony.
https://www.youtube.com/watch?v=CQku_I3fecQ
[RITMO/ MELODIA]
E.T.A. Hoffmann é uma das principais figuras para a música duma época denominada na história pelo Romantismo, à qual pertencem algumas das obras mais importantes da “música erudita” – inclusive é o período de Tchaikovsky, Brahms, Chopin e Wagner. O escritor alemão reforça uma linha – inicialmente defendida por Rousseau – que teoriza a composição dessa época: o mais importante para a música é a melodia, e é ela quem dita a música e o que deve nela suceder. O tema do Lago dos Cisnes não pode acontecer por acaso, não é? E em muitos géneros, mesmo na nossa música popular, regemo-nos pela mesma “regra” da melodia como central para a música.
Em Migos não. A construção temática rege-se, em grande medida, à volta da apropriação rítmica do beat e de como o mesmo pode ser desconstruído. Se analisarmos, talvez mais em Quavo – membro mais melódico do grupo, normalmente acompanhado pelo auto-tune – os seus versos compõem temas melódicos muito à base de 3 ou 4 notas imediatamente sucessivas na escala. As atenções são todas para o ritmo. E é aí que os trappers de Atlanta são marcantes. Muito do rap actual se rege perante o uso das tercinas. Tal como o vídeo de Snoop Dogg sugere, muitos rappers apropriaram-se das tercinas no desenvolvimento do flow nos seus versos, uma moda muito popularizada pelos Migos.
Dentro disto podemos também pensar no uso da voz em ambos os contextos. Sim, nos dois casos a voz, se não em coro, é um instrumento solista ou principal. Sendo que na música erudita poderá variar a função e importância da voz — numa ópera as diferentes personagens e suas personalidades ditavam, por vezes, a forma como a interpretação deve ser realizada (maior intensidade, diferenças de expressividade ou projecção de voz, o que for), por exemplo – no trap a mesma funciona para ditar a melodia, ritmo e tema da faixa num só.
Por partes: na música clássica, a melodia pode dar-se pela voz ou naipes dos instrumentos da orquestra; no trap será a voz e algum sample/teclado que a acompanhe. O tema pode-se expressar na harmonia criada, nas dinâmicas e arranjos dos instrumentos dum lado; em Migos o tema expressar-se-á pela letra, maioritariamente – os instrumentais carregam a vibe da música, não a fazem desenvolver-se como a letra – mesmo que o tema seja mais estático. O ritmo, deixado para o fim, propositadamente, é dado numa orquestra por instrumentos de percussão e possivelmente cordas e metais em stacatto; O trap dá esta função, claro, à batida, parcialmente ao baixo, mas entrega grandemente à voz. Claro, o rap terá o ritmo como algo muito central. Mas aí juntamos ao espectro da voz os ad-libs, que dinamizam espaços sem voz, trazem-lhes força, marcam tempos fortes ou até criam síncopas (deslocamento dos tempos fortes, que criam em grande parte o groove).
[HARMONIA]
Talvez seja complicado reter tudo num parágrafo, porém, a harmonia teve um percurso conturbado na longa história da música. De momentos em que a mesma se construiria a partir da consonância na construção de várias melodias conjuntas (Barroco), passando pela construção hiper-padronizada do Classicismo (pela sucessão de acordes se reger em grande parte por determinadas progressões ideais para a criação do belo e de emoção), chegando ainda ao experimentalismo, dodecafonismo e abolição da tonalidade no século XX por figuras como Stravinsky, Schoenberg e Debussy. Mas, enfim, são regras. Como todas as regras, são feitas para serem quebradas, por génios como Beethoven, Mozart e, claro, os acima referidos.
O beatmaking não é, assumidamente, um poço de experimentalismo tonal e harmónico (centrando no trap, e salvando as possíveis excepções). Post Malone disse recentemente que se queremos ouvir música introspectiva, não devemos ouvir o hip hop dos nossos dias. Não reflecte a nossa visão, de todo, mas pode ser, talvez, que estejamos perante uma expressão do sentimento que alguns dos trappers desta geração passa. Não queremos pôr palavras onde elas não existem. Adiante: Por muito interessante que seja analisar a estrutura harmónica e as bases para o desenvolvimento duma batida ao nível das notas usadas, e da sua importância, não é em Migos que encontramos uma variação forte. A faixa ronda normalmente um acorde, quase como se fosse um bordão (nota que se mantém como cama duma música); é possível sentir/notar isso neste EP, particularmente. A harmonia da produção de Murda Beatz, Pharrell Williams ou Metro Boomin baseia-se em grande parte no baixo/ sub-bass que suportam a música neste contexto.
[INSTRUMENTAÇÃO]
A instrumentação não pode ser vista como estática ao longo da história da música. Precisamos de nos lembrar que o piano — um dos instrumentos mais importantes na música, e fundamental para a criação dos sintetizadores (e muitos outros!) já no século XX – é apenas criado no século XVIII. A quantidade de séculos para trás é vasta o bastante para nos fazer lembrar que os instrumentos e os timbres evoluem, transformam-se, são esquecidos e depois reutilizados (sampling). No entanto, a evolução tecnológica aqui é a chave para a diferença entre o trap e os grandes cânones da música erudita. Ligam-se, ainda assim, com a música do século XX e XXI, com a composição electroacústica de Pierre Schaeffer, que a brincar com a fita magnética, colocava gravações em loop e manipulava-as. Não podia ser uma melhor definição de sampling. Não é possível quantificar o timbre, mas uma orquestra tem uma variedade de sons extensa. As possibilidades com o uso da tecnologia que temos ao nosso dispor nos nossos dias há-de ser maior. O uso dos graves fortes excessivos, de samples variados e sintetizadores traz umas quantas possibilidades a um produtor. Parece-nos que é comparar maçãs e laranjas, ainda assim.
[DURAÇÃO]
Parece-nos importante lembrar este ponto, apesar de alguma constatação de óbvios. Mas a duração na música erudita poderia ser bastante mais variada, duma maneira geral, existindo canções curtas de três ou quatro minutos, mas também óperas de 2h30, divididas pelas suas árias e recitais, e sinfonias de uma hora, etc.
No princípio do século XX, a canção desenvolve-se como a conhecemos: 4 minutos de música. Estrofes e refrão, possível ponte a empurrar o fim duma música, pois teria de ser despachada numa gravação porque a duração das mesmas era limitada ao hardware e tecnologia do início da indústria da fonografia. Esta limitação influenciou toda a produção musical que sucede esse período. O trap não é excepção e a estrutura organizacional da música não varia muito.
Concluindo, e regressando à performance dos Migos com a orquestra, existe um grande problema com a afirmação de Quavo no descortinar dos vídeos de Trap Symphony: “Isto é música verdadeira, entendes? Uma beat machine não é real. Voltar às raízes da música, de onde ela veio. Não podes comparar isso com batidas computarizadas e m****s assim, percebes o que digo?”. Parece-nos claro o porquê; é que a música não é nem mais nem menos pela qualidade tecnológica dos instrumentos usados; analógicos ou digitais, estes existem na dimensão ou universo musical. O que torna a música “real”? Bem, essa será outra discussão…