Como é que vamos olhar para 2024 daqui a 20 anos? Será 2024 lembrado como o ano de BRAT? Como o ano de “Not Like Us” e de Kendrick Lamar vs. Drake? Como o ano em que Lamine Yamal se afirmou como um dos melhores do mundo no EURO? O ano em que os nossos governantes permitiram um genocídio acontecer? Em que Donald Trump regressou à Casa Branca? Em que finalmente entendemos que é necessária uma mudança de sistema e que o neoliberalismo e a tecnocracia são simplesmente passos para o fascismo? Será que sequer vai haver mundo daqui a 20 anos para pensarmos nestas coisas?
Há 20 anos, quando os Micro Audio Waves lançavam o seu segundo álbum, o aclamado No Waves, o mundo era um sítio diferente. Talvez estivéssemos coletivamente a sermos ingénuos e a ignorar a Guerra ao Terror, mas havia algum positivismo no ar. A tecnologia parecia libertadora. A Internet, ainda em fase de pré-adolescência inocente, parecia democratizar o acesso à informação. Mesmo num ano marcado pela derrota de Portugal na final do EURO (ainda somos todos assombrados pela aquela saída em falso do Ricardo), o futuro parecia, de alguma forma, excitante. Não podemos dizer o mesmo hoje. O amanhã parece assombrado. Assustador. Talvez tenha sido por isso que, quinze anos depois de Zoetrope, Cláudia Efe, Carlos Morgado, Flak e Francisco Rebelo se tenham voltado a juntar. É preciso mudar a narrativa. A visão do futuro não pode ser uma distopia niilista, mas sim uma utopia coletiva.
É essa a mensagem por detrás de Glimmer, excelente disco que marcou o regresso dos Micro Audio Waves às edições e aos espetáculos. Por estes dias, a digressão de apresentação do álbum veio até a Lisboa para três datas no Teatro São Luiz (o ReB marcou presença na segunda data) após quase um ano de estrada numa verdadeira odisseia descentralizadora. Se há algo necessário no acesso à cultura em Portugal, é a de que a programação dos municípios seja mais arrojada. E Glimmer é arrojado. Quem viu o espetáculo, sabe disso. É uma odisseia existencialista que tenta delinear a linha entre o real e a simulação, entre a tecnologia e a vida. Se a tecnologia ainda tem alguma capacidade de nos libertar, como podemos lá chegar?
Tal como em Zoetrope, em Glimmer os Micro Audio Waves reencontram-se com o coreógrafo Rui Horta, que desta vez não veio sozinho ao encontro da banda. Com ele, trouxe para a equação deste espetáculo a bailarina e coreógrafa Gaya de Medeiros, espécie de talismã deste Glimmer ao vivo que serve de contraponto à mecânica oleada dos Micro Audio Waves. Se a banda serve os alicerces que erguem o edifício de Glimmer, Gaya de Medeiros é o coração humano que lhe dá força para continuar. Em palco, joga-se esse jogo. Se os Micro Audio Waves encavalitam sons e vozes, a dança de Gaya serve para relembrar que não importa a performance e os sons inorgânicos escutados, será sempre o lado humano capaz de pautar o futuro. Como lá chegamos, depende de nós todos. Não de apenas um só.
E caso não tenha sido percetível até agora, Glimmer não é uma mera apresentação de disco. É um universo próprio, onde o álbum ganha a sua verdadeira forma. Um espetáculo onde os Micro Audio Waves tentam entender os tempos conturbados que vivemos e oferecer algum alívio para que, em conjunto, possamos criar um futuro melhor.
Em Glimmer, o disco, os Micro Audio Waves começam por relembrar o destino da Terra se continuarmos a este ritmo — a destruição. Em Glimmer, o espetáculo, começaram por relembrar onde estamos — “Fully Connected”, odisseia eletrónica cronenbergiana resgatada de No Waves. Se assim continuarmos, é provável que cheguemos ao destino errado: a ruína. A informação tornou-se moeda de câmbio, sempre presente a todos os momentos na nossa vida. Estamos constantemente ligados a tudo e a todos, mas nunca estivemos tão sozinhos e vulneráveis em simultâneo. Estamos fechados em bolhas. Somos meros mortais, insignificantes no contexto de um universo gigante, quiçá infinito, mas alguns querem-nos fazer querer que é suposto sermos imortais.
Com Glimmer, o espetáculo, os Micro Audio Waves tentam-nos afastar progressivamente desses pensamentos e ideias. Aqui, reza a ideia de que humanos não são maiores que a Natureza que os rodeia e não há tecnologia que possa alterar isso. Neste universo, há batalhas, uniões, canções de embalar, jams ruidosas com keytar à mistura (a lembrar as primeiras experimentações de Flak e C. Morg em Micro Audio Waves), jams brincalhonas para que Cláudia Efe possa trocar de outfit a tempo ou para que a banda possa ir mudando o cenário do palco. Para um concerto com alto nível de produção, não deixa de ser curioso ver que os Micro Audio Waves não deixam de ter uma ética quase DIY por detrás disto tudo — afinal, a sua música teve sempre algo de punk presente. Momentos como a explosiva “Liquid Luck”, magnífica em como soou transposta para palco, servem de lembrete para isso.
Há momentos do espetáculo de Glimmer que são difíceis de descrever e cuja melhor recomendação que podemos deixar é simples: se tiverem a oportunidade de irem assistir, vão. Se não for pela curiosidade, então que seja pela música. “Pacific Airways” soou deliciosa ao vivo, “Trojan Rabbit” deu para bater o pé, e “Song For Mortals” a fechar o espetáculo ofereceu algum alento para tudo aquilo que acontece lá fora. O mundo, por uns momentos, deixou de ser assustador. A esperança, por meros segundos, voltou a fazer parte do nosso léxico. Se é possível acreditar num mundo melhor, então espetáculos como Glimmer são cruciais para que assim seja. A luta, hoje, continua. Amanhã, é bom que também.