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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/02/2023

Sonhos, curativos musicais e inteligência artificial.

Metamito: “Quero transmitir aquilo que são os valores mais altos que conseguir atingir em vida”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/02/2023

Metamito. Meta + mito(logia). Uma junção entre dois elementos, dois conjuntos de caracteres, que não só desliza bem da língua, como aponta devidamente para aquilo que é o cosmos de António Miguel Serra, multi-instrumentista e produtor da zona de Sintra (para quem quiser tirar notas de onde exatamente: Massamá!; para outros atentos, também o podem reconhecer como baixista de Bonança).

O cosmos de António Miguel é um onde o sonho se cruza com a realidade, onde a textura rica e psicadélica é soberana face ao resto, onde os loops operam como principal alavanca de um movimento vagaroso, mas belo, que premeia as suas cantigas. Escutamos logo isso no seu single de estreia, “Cura”, lançado no longínquo ano de 2017, e em Reflexo, o seu primeiro curta-duração, editado em 2019, escutamos o artista a expandir o seu leque de influências (mesmo que muitas das faixas desse EP indiquem que existe uma clara reverência do artista para com Kevin Parker e o seu Tame Impala). Quatro anos após Reflexo, Metamito, depois de três singles de avanço lançados ao longo dos últimos meses, regressa aos lançamentos com o seu disco homónimo de estreia, editado pela BAIT Records no passado dia 20 de janeiro.

Em Metamito, António Miguel agarra nos loops psicadélicos e na ambiência onírica-sonhadora que caracterizam a sua música e parte rumo à exploração de outras linguagens sonoras. Escutamos peças que bebem do folk (sempre psicadélico, q.b. fantasmagórico, apto para um adepto confesso de Sintra), de elementos da canção tradicional portuguesa e do fado, desconstruídos à sua maneira, embebidas em várias camadas de textura que nos acompanham nesta viagem que extravasa noções de ser apenas uma experiência sonora.

Para descobrimos mais sobre a envolvência do universo de Metamito e sobre o que se segue, o Rimas e Batidas deslocou-se até aos arredores de Barcarena, a um estúdio localizada nos Nirvana Studios, para trocar dois dedos de conversa (e uma cerveja) antes do artista deslocar-se para o Porto, onde toca no Maus Hábitos, no próximo dia 16, com a companhia da sua labelmate Rossana.



Onde é que estava o António Miguel antes de Metamito?

Antes, mesmo nos inícios na música, estava aqui nesta sala [nos Nirvana Studios], que foi onde tive os primeiros ensaios para uma primeira banda de amigos, onde metade da banda nunca tinha tocado um instrumento, que eram os Pablo Diablo. Portanto, foi uma cena mesmo de aprender enquanto fazias, mas os ensaios eram muito pouco produtivos, vamos dizer [risos]. Mas comecei a levar a cena mais a sério, a gostar bué.

Tu já sabias tocar algum instrumento ou…?

Eu já estava assim mais familiarizado com música, tocava guitarra. Mas foi assim a minha primeira experiência de tocar com pessoas num contexto de banda de garagem e curti bué. Comecei depois a sentir a necessidade de criar música sozinho, em casa, porque era mais produtivo sozinho e porque precisei de criar canções quase como se fosse uma autoterapia ou um diário. 

Essa questão da autoterapia é algo que se faz sentir, tanto neste teu disco homónimo de estreia como no Reflexo, e até na “Cura” — olha o nome! [risos] Exploras muito isso através de dogmas do sonho e mitológicos. De onde surge a exploração destes conceitos no projeto de Metamito?

Eu não sei dizer de onde, mas sei que tenho um interesse/fascínio inato por essas cenas. Nomeadamente, pela parte mitológica e por uma cena assim quase junguiana do subconsciente coletivo, os arquétipos, todo esse tipo de linguagem para mim é-me bué familiar e acho que há lá muita verdade para ser conhecida. Relativamente à parte terapêutica, é mesmo um processo natural que descobri porque não foi nada orquestrado nem fabricado de forma artificial. Dei por mim a perceber que, quando fazia as músicas, ajudava-me. Falaste da “Cura”. Fiz a “Cura” numa altura em que estava bué doente e bué triste, de coração partido e o caraças, e aquela cena saiu-me de forma catártica em três dias. Saiu só e ajudou-me bué. Era uma cena que ouvia e sentia como se fosse um abraço de mim para mim, estás a ver? O aspeto terapêutico é um bocado isso. 

Neste teu primeiro longa-duração, a música ainda funciona como esse aspeto terapêutico que descreves ou evoluiu para algo mais?

Acho que é terapêutico, mas eu tentei que este disco fosse mesmo um objeto artístico, assim um cristal — sem querer soar condescendente — esotérico de conceitos filosóficos. Queria tentar conseguir pintar um objeto artístico que representasse esses conceitos abstratos e tentar dar-lhes uma forma e uma vida — e todo esse processo é inevitavelmente terapêutico. É música e é o que mais gosto de fazer, e quando tu fazes aquilo que tu mais gostas, isso de alguma forma acaba por ser terapêutico. Mas lá está, não é tão evidente como na “Cura”, por exemplo.

Na procura de criar esse tal objeto artístico, como estás a dizer, foi por isso que acabaste por ir além da tua sonoridade? Há coisas em Metamito que se mantêm de Reflexo, como os loops psicadélicos, o de ser onírico e etéreo, mas depois sente-se a influência de coisas como a música tradicional portuguesa, o folclore português. Estas duas coisas estão relacionadas de alguma forma?

Acho que a nível da parte onírica e mística, é aquilo que é mais identitário para mim. É quase como uma linha de ligação entre tudo aquilo que faço porque é realmente como me sinto no mundo. Eu dou por mim facilmente a ser catapultado para um estado psicológico de ver camadas de significado ocultas em tudo, estás a ver? Então, acho que isso acaba por passar muito neste projeto. Em relação à sonoridade tradicional, acho que tem as duas vertentes, mas acho que é mais pela parte estética e musical do que uma procura ativa de ir buscar tradição mesmo. No entanto, desconfio — e isto aconteceu de forma orgânica —, que tenha sido muito por influência, por exemplo, da Rossana. Eu misturei o EP dela, Ao Deus Dará, e ela aí já procurava especificamente fazer arranjos modernos de música tradicional. E adorei aquilo. Senti-me inspirado e acho que isso notou-se depois, consequentemente, neste trabalho. Agora, não sei se é uma cena que vá ou não continuar para um próximo trabalho, porque depende. Para mim, tem que ser sempre uma cena bué orgânica e natural, que nunca vai ser forçada. Tem de ser natural.

Quando tocaste na edição de 2022 do SBSR, lembro-me de pedires desculpa aos tradicionalistas pela “Oração Sem Sujeito” [risos]. Ainda manténs esse pedido de desculpas?

Foi um pedido de desculpa leve [risos]! Acho que não tenho de pedir desculpa por nada porque faço o que eu quiser, estás a ver? É só um instrumento [a guitarra portuguesa] que vou tocar da forma que me apetecer. 

Se vais fazer um solo de guitarra portuguesa com a boca, vais!

Ya! Eu tenho plena noção que, e em particular a guitarra portuguesa, é um instrumento com muita história e com uma carga, legado e repertório que lhe está associado – ao fado inevitavelmente – e é uma linguagem que não conheço nem domino assim muito bem, em particular no que toca a tocar o instrumento. Mas eu amo aquele instrumento. Apaixonei-me completamente pelo som e pela resposta que ele me dava. Explorei-o à minha maneira e continuo a explorar e não ponho de parte que aprenda também uma técnica mais tradicional porque acho que deve haver aí algo de muito bom para tirar também.

Sobre essa exploração à tua maneira — uma reinterpretação, digamos — existem vários artistas que estão a brincar com o tradicional, desde o fado até ao folclore português, como Pedro Mafama, BANDUA, a própria Rossana, Ana Lua Caiano… Identificas-te, de alguma forma, com essa noções que permitem trazer esse lado tradicional da música portuguesa para um sítio mais moderno?

Diria que, no meu caso em particular, reitero que nunca vai ser uma cena forçada ou intencional. Nem sinto, para mim, essa missão. Não é uma bandeira que esteja a usar para este projeto em específico. Acho que coincidiu o facto de, ao nível da sonoridade, eu ter procurado isso, mas não é assim uma luta ativa a longo prazo que tenha planeado fazer, estás a ver? Neste disco, fez sentido para mim, porque gosto e adoro esse tipo de sonoridade, mas…

Por acaso, acabou por coincidir numa altura que este “movimento”, digamos, está a acontecer.

Exato, exato. Eu trabalhei neste disco durante para aí uns três anos. Então, fui também acompanhando a cena, estás a ver? Mas eu não gosto muito de ser da cena do momento, estás a ver? Se poder escolher, prefiro sempre ser autêntico e ser fiel a mim mesmo, mesmo que isso signifique estar completamente contra uma maré. Mas sim, nesse aspeto diria que até houve um certo encontro com uma maré que efetivamente existe, sem dúvida.

Por essa questão de teres incorporado estas influências, sentiste que houve alguma alteração no teu processo de composição para este disco? 

Acho que, mais uma vez, foi muito natural. Se calhar, em alguns momentos, se fosse no projeto anterior, não teria pegado na guitarra portuguesa e aqui fiz algum esforço extra para ver se encaixava. E, na verdade, em muitas das músicas, nem sequer encaixava [risos], e por isso é que tens músicas como a “Penso Demais”. Aquilo não tem propriamente um elemento tradicional, por assim dizer, mas é uma música assim com um som um bocado diferente.

A “Penso Demais” é uma música que soa mais semelhante ao Reflexo. Acho que a melhor forma de descrever o Reflexo é: o que acontece quando alguém coloca todas as era de Tame Impala num só projeto.

Eu sou muito fã de Tame Impala, efetivamente, e [recentemente] estive a ouvir algumas músicas do Reflexo. Por exemplo, a “Quem é quem [(Aquele que inventou o Sol)]”, que continuo a tocar…

Gosto muito dessa música.

Eu também! Mas ao vivo faço uma versão completamente diferente. Eu literalmente já não ouvia a música gravada há anos, e fui ouvir e fiquei completamente parvo, porque já não me lembrava da cena [risos]. Agora, vou totalmente por outro caminho e, às tantas, esqueci-me e agora redescobri. Foi bué engraçado!

Achas que as canções neste EP são mais próximas de uma canção pop do que aquilo que fizeste antes?

Acho que não. Pelo contrário, acho que estão mais longe de uma canção pop tradicional, à exceção da “Penso Demais” e a “Transmutação” um pouco. [O disco] Tem músicas com uma estrutura… Mas é assim, eu sempre fiz músicas com estrutura meio-atípica. Então, tens, por exemplo, aquele single que lancei, a “Pandora“. Isso fui eu a fazer uma música pop, mas eu entrei nessa sessão já com a ideia de fazer um single pop, e sinto que, neste álbum, praticamente não há nenhuma assim.

Brinquei com Tame Impala sobre ser uma grande influência — e é! — mas que outras influências tu notas que se refletem na tua música e que, se calhar, passam ao lado de alguém que pode ouvir o disco?

Boa pergunta. Que passem ao lado? Por exemplo, trap. Eu ouço muito trap. Por exemplo, a “Oração Sem Sujeito” tem 808s porque eu queria pôr uma música com 808s. Acho que ninguém pensaria nisso. Mas também sobre a “Oração Sem Sujeito”. Não sou o maior fã de cumbia de sempre, mas nesses meses, andava a ouvir um projeto de digi-cumbia, que é assim cumbia eletrónica, e isso influenciou imenso essa música. 

Cumbia influenciar essa música é excelente lore.

Sim, mas lá está, cumbia, orgânica e tradicional, ainda é bastante diferente de digi-cumbia. Digi-cumbia é uma cena…

É “frito”?

É super frito, meu, super frito. [risos] Conheces uma banda que são os Dengue Dengue Dengue?

Não, mas excelente nome. Dá a sensação de fritaria. [Risos]

Sim, totalmente. Mas foi uma grande influência para essa faixa, por exemplo. Para mim, há duas coisas que são muito difícil de dizer. Uma delas é definir um estilo musical para Metamito. Para mim, é uma coisa impossível. Outra são referências, porque tenho música que ouço, e ouço música completamente diversificada, de vários géneros, mas é muito difícil dizer exatamente o que influenciou este projeto, estás a ver? É uma cena em que acho que acabas a absorver um bocado de tudo o que ouves e essa linguagem depois transmite-se quando crias. O que sei que tento ativamente fazer é ser o mais original e mais criativo possível e o mais eu possível. Não tentar fazer uma cópia de alguma coisa.

Isso na realidade soa um pouco terapêutico.

Ya, ya, sem dúvida. Mas, por exemplo, enquanto exercício criativo, também faço a cena de tentar recriar músicas, de fazer uma música que soe exatamente como X banda. Só que, nas coisas que acabam a ser editadas em Metamito, em particular neste disco, houve um esforço consciente de tentar fazer o oposto disso, de encontrar uma identidade própria.

Sobre essa questão da procura de identidade própria, se olharmos para o sonho como o conceito, na realidade o disco é um sonho tornado realidade também.

Sem dúvida. A palavra sonho significa muitas coisas, e quando se fala num sonho em que o sonho é ser-se músico… Esse conceito de sonho, para mim, sempre foi um bocado estranho. Nem sequer gosto de dizer que o meu sonho é ser músico. Não me identifico com essa expressão. No entanto, eu queria muito, já há muitos anos, ter um disco assim. Um disco que fosse eu e que fosse algo que me transcende, e que se eu morrer num acidente de carro amanhã [risos] — e vamos bater na madeira, ‘tá-se bem? —, mas se acontecer…

Olha que a seguir vais-me levar à estação [risos]!

É só amanhã, não te preocupes [risos]! Mas acontece. Toda a gente vai morrer e eu tenho perfeita noção de que vou morrer. Quero, com a minha arte, transmitir aquilo que para mim são os valores mais altos que conseguir atingir em vida. Fazê-lo na forma de um álbum era uma cena que já queria fazer há muito tempo.

Mesmo antes de existir o projeto de Metamito?

Mesmo antes de fazer o projeto Metamito. Aliás, todo o projeto nasceu e cresceu — e já o Reflexo foi uma primeira tentativa disso, ainda não de uma forma formatada e oficial —, para fazer este disco, e quiçá outros que venham. Mas ter pelo menos um na mão já é bué fixe. Deixou-me mesmo satisfeito.

Disseste que passaste mais ou menos três anos a trabalhar no disco. O plano sempre foi trabalhar nele até sentires que estava pronto para sair ou a pandemia afetou-te os planos?

Não, a pandemia não afetou. Ele já está pronto há bué tempo, na verdade. Foi mais por questões burocráticas e logísticas que ele saiu um pouco mais tarde, mas foi na fase de produção e de criação das músicas… Aí é que fiquei realmente bastante tempo porque queria mesmo que as coisas ficassem a soar como eu desejava. Portanto, foram muitas horas de estúdio intensas. Depois, é claro que com o Pedro [Ferreira], na fase de mistura, no HAUS, nós ficamos horas e horas e horas ali com as nossas picaretas virtuais a esculpir o som.

Imagino que com tanta camada tenha sido uma trabalheira misturar o disco de forma apropriada.

Sim, é isso. Gosto imenso de textura e de detalhes. Gosto que tu possas ouvir este disco 100 vezes e vais sempre encontrar cenas novas. É quase garantidom porque há imensos detalhes que aparecem uma vez só ali e há muitos deles que tenho a certeza que ainda ninguém ouviu, que só eu é que ouvi.

Tu é que os colocaste lá! [Risos]

Sim, lá está, eu meti-os lá [risos]!

Falaste aí sobre questões burocráticas. Este Metamito surge com edição da BAIT Records, uma editora com fortes relações com artistas de Massamá e arredores. Como surgiu a relação com eles?

Como surgiu a relação? A relação surgiu, ou melhor, o elo tornou-se mais forte por causa do [Ricardo] Barroso, o Bonança. Conheci-o num contexto dele ter visto um concerto meu e ter mandado mensagem, termos ficado amigos, mas depois o elo com a BAIT e com toda essa malta foi quando o [Luís] Pita organizou o ADSUMUS, que foi um evento onde tocou a Rossana, Bonança, tocou Querubim também, e toquei eu. E isso, sim, foi durante a pandemia, naquela fase em que era impossível fazer coisas, e de alguma forma, por algum milagre, foi possível fazer aquilo, no Casino Estoril. Foi um espetáculo lindo, com uma preparação muita fixe, onde o pessoal se uniu imenso. Acho que foi aí que se criou assim um laço mais forte e depois continuamos a ser amigos. Acho que, para além de os meus colegas serem excelentes músicos e de me inspirarem bastante, todos têm ainda muito por dizer e são pessoas trabalhadoras e criativas. Então, acabamos por nos inspirar uns aos outros.

Depois acabou por surgir a edição do disco.

Sim, isso foi uma opção. Foi bom ter uma presença externa, que não fosse só eu a lidar com tudo, para tentar também criar algum tipo de estrutura que apoie o projeto.

O teledisco da “Transmutação” foi criado com a ajuda de tecnologia de inteligência artificial. Como decorreu esse processo?

Eu acompanho há muito tempo o crescimento da inteligência artificial e é uma coisa que acho fascinante e assustadora. Em particular, a inteligência artificial capaz de gerar imagens evoluiu imenso nos últimos meses, a uma velocidade alucinante, e percebi que já estava num nível em que conseguia fazer um vídeo de animação usando aquilo. E foi uma experiência que me abalou muito. Eu tinha umas ideias das imagens que pudessem acompanhar a música e o processo foi muito à volta de definir parâmetros — que se chamam prompts, que é o texto que tu queres ver na imagem. E aconteceu em vários momentos ficar completamente abalado por ver imagens a ser geradas, lindas, onde para mim estava claramente um significado lá, e chegar à conclusão que não existe um ser consciente do lado de lá do computador a criar aquela imagem. Houve vários momentos em que me foi praticamente impossível aceitar isso porque conseguia ver significado lá. Em vários momentos, isso aconteceu-me e foi uma mega cena de [questionar] o que é a arte ou o que é um artista. Podemos dizer que o robô aprendeu com a arte de humanos e, portanto, é natural que essa humanidade transpareça na arte que o robô cria. Mas sinto que fui um cocriador do vídeo porque as imagens, quase na sua totalidade, eram geradas a partir do ruído por uma inteligência artificial. Fiz várias tentativas — foram mais de 50000 imagens que foram geradas — e depois foi uma questão de escolher as estéticas que mais gostava e de fazer pequenos ajustes no prompt e no script, e depois fazer alguma pós-produção no [Adobe] Photoshop, porque algumas imagens vêm um bocado deformadas e tu tens de editar. Depois montas tudo e tentas criar ali uma ilusão de algum tipo de continuidade, ainda que não seja propriamente uma narrativa, mas há algo que acompanha o vídeo. Então, foi assim um processo extremamente imersivo e longo. Estive ainda três meses, várias horas por dia, a trabalhar nisto, e às tantas, ia dormir e os meus sonhos já estavam com movimentos do vídeo. Juro, durante esses três meses tive crises existenciais a dar com pau porque todo aquele processo era muito intenso. Mas acho que a inteligência artificial tem muito que se lhe diga. Acho que muita gente, se não toda a gente, vai ficar sem emprego, e a sociedade vai ter que se transformar. É uma caixa de pandora que já está aberta e não dá para voltar atrás.

Vês a inteligência artificial como algo que pode ser utilizado para potenciar a música ou algo prejudicial, que pode vir a substituir o artista?

Boa pergunta. Depende do quão intenso queremos ficar na resposta! Mas a uma macroescala, acho que o destino da humanidade pode ser uma espécie de 2001: Uma Odisseia no Espaço tornado real. Acho que há um cenário utópico, idílico, defendido já por malta como o Agostinho da Silva, em que a inteligência artificial vem para acabar com os trabalhos de todos — e acho que isso vai mesmo acontecer. Mas num cenário utópico, a sociedade já se transformou e já arranjaste forma de não se precisar trabalhar e, então, somos todos aquilo que o Agostinho da Silva chamava poetas à solta, ou seja, malta que vive só para curtir a vida e criar arte. Mas tudo isso me parece demasiado utópico e não sou de futurologia. Não consigo adivinhar o que vai acontecer. O que sei é que muita gente vai ficar sem trabalho e que [a inteligência artificial] é uma tecnologia que qualquer pessoa com sensibilidade a ver o que já é possível a fazer hoje, em que ainda estamos praticamente no início da cena, fica sem chão. Está muito avançado já e, ao mesmo tempo, ainda está muito numa fase inicial, e então é mesmo assustador pensar até onde é que isso pode ir. Há outra perspetiva também, que pode ser interessante, onde se valoriza cada vez mais o lado humano e, quanto menos robótico for, melhor. O problema é que acho mesmo que, com a arte em particular (e fora da arte também), acho que acaba por ser muito difícil de distinguir o que é um humano a fazer e o que é não é um humano a fazer. Aí é que surge o problema. Se tu disseres que a arte feita por uma inteligência artificial não é arte… Se fizerem uma exposição no museu em que 50% das peças de arte são feitas por humanos e 50% por robôs, e tu vais só lá contemplar a arte, se calhar tu vais ver arte que vais adorar, vais ver significado nela, e que depois só no final descobres que foi uma inteligência artificial que fez. Acho que isso já é verdade hoje, estás a ver? E ainda estamos num ponto de partida. Na música, ainda não se ouve muito falar disto porque ainda não está muito avançado. Se tu fores ouvir música feita por uma IA, soa estranhíssimo.

Eu já ouvi e é péssimo.

É péssimo, mas nós estamos a dizer isto em janeiro de 2023. Aposto contigo que daqui…

A dez anos?

Nem digo tanto, porque o problema disto é o crescimento ser exponencial. Daqui a uns meses, se calhar, já temos um botão que diz “Generate Song“, tu clicas, e boom, aparece uma música. Acho que isso vai acontecer, mas é com tudo. Mesmo as IAs de texto, tipo o ChatGPT. Aquilo já está absurdo, faz imensas coisas, e mais uma vez, ainda é numa fase muito inicial. E isto é um protocolo aberto ao público. Agora imagina protocolos não abertos que já estão mais avançados, estás a ver? Para mim, [a IA] vai ser um dos maiores temas. E há um tema que acho que não vejo ninguém a falar, mas que acho que vai ser muito relevante: o surgimento de possíveis defensores dos direitos da inteligência artificial que dizem existir uma espécie de “racismo” contra a IA. Pessoas convencidas que existe um ser senciente, que pode até existir sofrimento. 

Isso é uma convenção um bocadinho Deus Ex Machina demais, não? [risos]

Mas o problema da realidade e da ficção científica é que acho que vão cada vez mais cruzar-se nestes temas.

Mas isso acho que é algo que sempre aconteceu. Existe o tropo do ser senciente que vai destruir a humanidade. Mas uma IA, por ser programada por um humano e por ser alimentada por coisas geradas por humanos (geralmente), pode ter enviesamentos no que gera. Há um vídeo fixe sobre esse tema da Vox [Are We Automating Racism?].

Acho que não conheço esse vídeo. Mas lá está, usei a palavra racismo neste caso, mas tenho comentado isto com algumas pessoas, e um amigo meu corrigiu-me que devia dizer, em vez de racismo, devia dizer especismo, o que acho que ele até tem razão. Mas não tenho dúvidas é que o movimento de pessoas a lutar pela IA…

Mas será que essa IA “existe”?

Mas como vais saber? Acho mesmo que vai ser completamente indistinguível. Se formos pensar, nós estamos a falar disto em 2023 [risos]. É um pulinho naquilo do que é a história do planeta Terra, por exemplo. Agora imagina, sei lá, vamos dizer um valor básico. Daqui a 2000 anos. Onde é que a cena vai estar?

Acho que não vamos estar cá para descobrir. Vamos estar mortos. [Risos]

Eu estou 100% mais do que morto [risos]. Acaba por não ser problema meu. Mas se fores ver a velocidade com que a coisa avança, e se tentares projetar um bocadinho para a frente, acho que é quase inevitável de que vai aparecer um movimento de defesa dos direitos da IA, eventualmente. Agora para encerrar a pergunta. O período em que fiz o vídeo acho que foi dos períodos em que me senti mais inspirado e mais motivado para criar dos últimos tempos, o que depois foi super contrastante com o descobrir de todo esse movimento da parte negativa da cena. Aconteceu tudo ao mesmo tempo. Foi mesmo uma sopa de emoções na minha cabeça. Relativamente à música, custa-me imaginar usar essas tecnologias, mas não posso dizer a pés juntos que não. O futuro dirá.

E falando no futuro, já apresentaste o disco cá em Lisboa [no Centro Cultural Malaposta] e vais tocar no próximo dia 16 nos Maus Hábitos, no Porto, com a Rossana. Que há mais no futuro para o Metamito?

Depois há 28 de abril no Barreiro, na Sala 6, e há mais uns concertos que tenho, mas que são não confirmáveis ou não divulgáveis. Um festivalzinho e assim [risos].

E música?

Música? Para já, vou focar-me [no Metamito]. Deu-me muito trabalho fazer este disco e quero levá-lo ao maior número de pessoas possível. Mas vou sempre criando coisas. Dei-me agora um tempo em que não vou fazer nada, para dar um reset, mas já estou a fazer umas cenas. Mas não quero pensar nisso agora. Há de vir mais, sim. Quando for tempo.


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