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Fotografia: Guilherme Cabral & Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 03/09/2023

Entre a pluralidade lusófona, o rock e o perreo.

MEO Kalorama’23 — Dia 3: da catarse de Dino D’Santiago à vertiginosidade de The Hives ou Young Fathers

Fotografia: Guilherme Cabral & Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 03/09/2023

O que não nos mata torna-nos mais fortes. É assim, de “rijura” redobrada, que acordamos após o último dia da segunda edição do MEO Kalorama, depois de três tardes e noites a subir e descer colinas e a enfrentar ventos poeirentos. O resultado? Bolhas nos pés, gargantas e narizes irritados, mas de ouvidos satisfeitos pelos concertos que pudemos assistir no Parque da Bela Vista, em Lisboa.

E com o festival a chegar ao fim, foi também a oportunidade certa para passar pelo mural que esteve a ser pintado pelos Unidigrazz (colectivo de Tristany, Diogo “Gazella” Carvalho, Nuno “Onun” Trigueiros e Bruno “Sepher AWK” Teixeira) como forma de dar mais cor ao recinto. Com o Kalorama a despedir-se de 2023, os três painéis de que compõem a grande obra de arte urbana vão ser doados a três instituições distintas, conforme nos informou o autor de MEIA RIBA KALXA, que dentro de dias, a 8 de Setembro, passa pelo ciclo Manta para dar um concerto no jardim do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.



“Digam que foi sobre amor”, referiu várias vezes Selma Uamusse durante o concerto. E tanto amor foi dado durante o concerto da cantora luso-moçambicana nas primeiras horas deste sábado no MEO Kalorama.

Acompanhada por uma proficiente banda, Selma não desperdiçou a oportunidade de tocar no palco principal do MEO Kalorama para falar do que interessa e tocar o que interessa. Relembrou a guerra em Moçambique, falou de como os imigrantes continuam a ter a sua vida dificultada para obterem a nacionalidade portuguesa (Selma só recentemente a obteve), da luta das mulheres a serem ouvidas, meteu-nos a dançar com canções como “MAPUTO”, veio ao público celebrar a união e amor, e no final ainda nos brindou com uma versão eletrizante de “Funkier Than a Mosquito’s Tweeter”, de Nina Simone

Foi, dizemos nós, uma bela forma de arrancar este último dia de MEO Kalorama.

— Miguel Rocha



Se vos dissermos que um dos produtores de reggaeton mais quentes do momento está sediado na Suécia, provavelmente achariam que é mentira. Mas experimentem ouvir Cristian Dinamarca (mais conhecido pelo seu apelido apenas), que está no activo há cerca de uma década e tem tido uma carreira bastante movimentada, a somar edições em várias editoras internacionais (mas também na sua própria STAYCORE) e a protagonizar digressões um pouco por todo o mundo. Deste lado, acusou no radar em 2019, quando a Moonshine nos enviou a terceira SMS for Location, envenenando-nos de imediato com a picada da sua “Culebra” — e, curiosamente, contracenou com Pedro da Linha no alinhamento da compilação da editora canadiana.

Num fim de tarde solarengo, nada melhor do que escutar as suas batidas no meio do bosque transformado em palco Panorama, onde umas poucas dezenas de pessoas se reuniram para dançar. Chegámos quando Saint Caboclo se encontrava a terminar o seu set e desde logo pareceu o artista ideal para anteceder ao calor do homem que nasceu no Chile, mas que viveu praticamente toda a vida na Suécia. Quando assumiu o controle dos decks, Dinamarca deu uma verdadeira aula de ritmos quebrados, começando por percorrer muita da sua obra (dos instrumentais a solo a “mwah :3”, a sua faixa mais popular e em parceria com rusowsky, ou ao recomendável EP que lançou ao lado de La Favi, Is It Real) e intercalando com material de outros artistas que admira.

Vem-nos rapidamente a ideia de que Dinamarca faz com o raggaeton o mesmo que a Príncipe Discos faz por cá com o kuduro, embora se desdobre também por sonoridades um pouco mais talhadas em termos de cosmética sonora, o que o leva a colaborar bastantes vezes com vocalistas e a conseguir alcançar alguns resultados mais refinados. Depois de quase 40 minutos neste registo, passou para o funk brasileiro e, a seguir, para um tipo de som que mais se aproxima da house, mas sempre com muitos elementos latinos à mistura.

— Gonçalo Oliveira



Dino D’Santiago veio ao MEO Kalorama com uma intenção: tornar o palco San Miguel numa enorme pista de dança, onde todos pudessem entrar. Feito conseguido e alcançado. Afinal, estamos em Lisboa – na sua Lisboa – e veio mesmo muita gente para ver Dino neste final de tarde de sábado.

Não existem dúvidas que a música de Dino d’Santiago tem um potencial único em servir como, de um lado, catarse. É para bater o pé, bailar até cair. E é também agregadora, capaz de juntar comunidades inteiras, oriundas de vários locais, de várias Lisboas que, juntas, formam uma só. É a música e o amor a fazer das suas. Sorte a nossa que vivemos ao mesmo tempo que Dino, sorte a nossa que continuamos a ter várias oportunidades por este país fora de o vermos ao vivo.

Sozinho em palco durante praticamente todo o concerto, exceto durante “Mbappé”, Dino não precisou de muito para agitar as águas. Com faixas como “Nôs Funaná” (beat versão Pedro da Linha + BRANKO) a agitarem as águas, o público foi aquecendo, conjugando-se um grande partimento de chão que mal parou até ao fim. “Esquinas” trouxe emoção ao concerto, “Sô Bô” foi dedicada às mulheres presentes – a iniciar um trio de faixas composto ainda por “Badia” e Maria” a falar sobre o mesmo tema –, “FOGO (Nu Fazi)” trouxe ferrinho à mistura.

Perto do final, “Kriolu” levou Dino D’Santiago até junto dos seus – e os seus já são muitos e muitos – para celebrar o momento, mas, também, a vida. Podemos viver com Dino, aprender com Dino – com as suas qualidades e defeitos – e observar como a sua música continua a ser protesto (contra o sistema) e unificado em igual modo. “Tudo Certo” por estes lados. E se gostamos? Oh, se sim! Enorme concerto. Mais um de Dino D’Santiago.

— Miguel Rocha



Mais de uma década depois do seu último disco, o monótono Lex Hives, os The Hives – Pelle Almqvist (voz), Nicholaus Arson (guitarra), Vigilante Carlstroem (guitarra), Chris Dangerous (bateria) e The Johan and Only (baixo) – regressaram este ano aos LPs em força com The Death of Randy Fitzsimmons, um forte candidato não só a melhor disco dos Hives (ainda precisamos de tempo para decidir se destrona Veni Vidi Vicious, clássico do rock de garagem do virar do milénio), como candidato a um dos melhores discos de riffs de 2023. 

E o seu concerto no MEO Kalorama, um regresso aos grandes festivais portugueses após 15 anos de ausência – pelo meio, tocaram em Queimas, Marés Vivas, Crato, e Monte Verde –, foi um espetáculo de riffs, um concerto Rock digno de R grande, um espetáculo de pirotecnia (que não teve pirotecnia) em palco pronto a aquecer um público que sabia ao que vinha (um enorme pedido de desculpa aos fãs de Pablo Vittar que já ocupavam a frontline).

Mosh pits, muito pó a voar, algum crowdsurf desastrado (a inclinação do palco não ajudou), um Pelle Almqvist super energético e provocador – como sempre, e alguém do público até o queria nomear presidente (não nos parece má ideia) –, pronto a pedir palmas, pedir yeahs aos fãs, saltar, rodopiar o microfone. Enfim, tudo o que se quer de um frontman.

E sim, as canções dos The Hives soam quase todas iguais. Mas será que isso importa assim tanto quando estas são das mais divertidas jardas que por aí andam? Nada. Se há gimmicks que funcionam, para quê mudar? Mas antes de irmos à diversão, uma nota. Os Hives entraram ao som da marcha fúnebre em palco. Porquê, quando tudo o que se seguiria seria diversão pura e dura? Bem, o principal escritor das canções dos Hives, (o fictício) Randy Fitzsimmons, faleceu de forma misteriosa entre discos. Mas antes de morrer, deixou à banda na sua campa as canções do seu último disco. Foi com uma delas, “Bogus Operandi” – riff demoníaco, energia no máximo – com que os Hives abriram as hostilidades.

A partir daí, foi sempre a abrir. Malhões como “Main Offender”, “Trapdoor Solution” – também do seu novo disco –, “Two-Timing Touch and Broken Bones” (tocada a pedido de um fã, que saudamos com todo o carinho) ou “Countdown to Shutdown” (hino anticapitalista que é uma enorme canção rock, possivelmente a melhor dos Hives) colocaram o público a dançar, a moshar e a cantar. E clássicos como “Walk Idiot Walk” ou “Hate To Say I Told You So” trataram de fazer levantar muita poeira no palco San Miguel (lembrete para cuidarem das gargantas nos próximos dias).

A fechar, o duplo ataque de “Come On!” e “Tick Tick Boom” – explosão final de pura goofyness – levou o público ao frenesim máximo, uma última ramboia onde certamente muitos cartuxos de energia terão sido esvaziados. Foi divertido, “foi do caralho” – ouvimos atrás de nós – foi um concerto rock com a assinatura de uma banda que continua a ter energia para dar e vender independentemente da sua idade. “Se não souberem, somos lendas do rock”, disse à boa maneira do braggadocious Pelle ao público. À sua maneira, e para os seus fãs, certamente o são. 

Um dos melhores e mais divertidos concertos da edição de 2023 do MEO Kalorama, não haja dúvidas. E dia 6 de outubro há mais no Capitólio. The Hives a nome próprio em Portugal? É a não perder.

— Miguel Rocha



Proactividade é não nos limitarmos a escolher ver apenas os nomes que nos são familiares dentro de um cartaz de um festival. Numa breve ronda a percorrer pelo Spotify os artistas que desconhecemos do alinhamento do Kalorama, a música dos Nu Genea conquistou-nos de imediato e sabíamos que, não existindo alguma sobreposição a nível de horários com um concerto mais “urgente”, iríamos marcar presença em frente ao palco Samsung para os ver. Assim foi.

Lucio Aquilina e Massimo Di Lena fundaram o projecto napolitano de italo-disco e jazz-funk há 10 anos atrás, inicialmente apelidado de Nu Guinea e reformulado para Nu Genea pouco antes de lançarem Bar Mediterraneo. E foi através do mote dado pelo álbum que editaram no ano passado que se apresentaram ao público lisboeta, com uma formação que, em palco, coloca a dupla de produtores a contracenar com mais seis músicos, muitos deles a desdobrarem-se por mais do que um instrumento. Após um primeiro tema interpretado ao vivo, dirigiram-se a nós com um “sejam bem-vindos ao Bar Mediterraneo“, dando ênfase ao título que automaticamente remete para a porção de mar mais importante a banhar o continente europeu, onde ao longo da história da humanidade foram feitas inúmeras trocas materiais e culturais.

É precisamente do intercâmbio de conhecimentos musicais que esta banda faz erguer o seu som, um boogie constante mas bem diferente dos registos que colhemos da América e até mesmo do seu país de origem, Itália, já que misturam o groove dos grandes mestres com as influências que foram beber ao Norte de África e à Ásia Central. Gostámos e dançámos, mas não nos sentimos completamente arrebatados. Este grande conjunto de músicos encanta pela sua técnica e energia, mas o concerto, visto como um todo, soou algo monótono, quase como se estivéssemos a rodar um rodar um disco de library music texturalmente rico mas um pouco empobrecido em termos de “alma”. “Tienaté” foi a composição que mais nos captou a atenção aquando a escuta do disco em casa e simultaneamente um dos pontos altos do espectáculo, provocando muito boas vibrações já na recta final da apresentação.

— Gonçalo Oliveira



Pablo Vittar veio ao Kalorama dar um show. Não há medo nem represálias em dizê-lo. Para quem ainda tinha cartuxos para queimar, vir perrear ao palco San Miguel foi imperativo (não julgamos quem foi fazer o mesmo a Young Fathers – a escolha era difícil).

Acompanhada por dançarinas em palco, e com um público pronto a recebê-la, Vittar não demorou a encantar “AMEIANOITE”. Dançou, fez dançar, agradeceu, fez manobras acrobáticas, cantou (mas podia ter cantado mais – menos backing track, por favor) e fez cantar. Mas com faixas como “Sua Cara”, “Follow Me” (escutamos a voz de Rina Sawayama), “Flash Pose” (escutamos a voz de Charli XCX) ou “Cadeado”, como não? Foi uma bela festa para fechar uma edição do MEO Kalorama que, mesmo com a poeira toda, se revelou como uma melhoria substancial da primeira edição do mais recente grande festival de verão a ocorrer em Portugal. Para o ano, há mais. De 29 a 31 de agosto de 2024.

— Miguel Rocha



Lembram-se de quando andávamos todos na escola, a brincar no recreio, e a campainha que dita o fim do intervalo se lembra de tocar? Todo aquele frenesim de jovens a entrar no mesmo edifício, a entupir halls e corredores até ficar tudo vazio após cada turma dar entrada na respectiva sala? Foi mais ou menos isso que sentimos com o surgumento dos Young Fathers em cena, só que neste caso os professores estavam todos em greve e não havia salas de aulas para fazer escoar os alunos: muito pouca gente esperava pela entrada do grupo escocês à meia-noite, mas bastou soarem os primeiros bombos para um mar de pessoas invadir o espaço à sua volta.

À partida, a coisa estava no papo para o trio que ao vivo se apresenta na companhia de mais três músicos, mas parece que a tal greve tinha saído do domínio do imaginário e alastrado-se à equipa de produção/técnicos responsáveis pelo palco Samsung àquela hora, pois bastou um par de temas para que os Young Fathers começassem a fazer notar a sua frustração pelos erros que se estavam a fazer notar. “G” Hastings chegou mesmo a interromper a actuação para pedir desculpa, embora numa primeira fase não se notasse com total clareza aquilo que se estava a passar de errado, pelo menos do lado de quem vos escreve. Enquanto Hastings parecia estar a tentar remediar a coisa, visivelmente aborrecido, os colegas foram mantendo a chama viva e não deixaram a música cessar. A partir de um certo ponto, um ruído estático instalou-se nos PAs e não mais os abandonou. Enquanto havia som a vir da banda a coisa disfarçava, mas era demasiado notório nas transições entre canções para um festival desta dimensão. Quem está a exercer a sua profissão em cima do palco sabe disso e os Young Fathers não estavam nada contentes com toda aquela situação.

Talvez a má disposição tenha dado um nervo adicional à música que estão habituados a tocar porque, apesar das peripécias, o concerto que integra a tour de apresentação do brutal Heavy Heavy foi bem rasgado e transmitiu aos ouvintes uma larga dose de adrenalina — houve muito headbanging, saltos e outras danças mais frenéticas, sinal de que, para quem escutava, os problemas técnicos não estavam a causar particular mossa.

“I Saw” e “Drum” foram das mais enérgicas composições do LP editado este ano pela Ninja Tune a serem trazidas pelo grupo que mistura rock com elementos gospel, noise e rap num conceito estético bem vanguardista. “Geronimo” e “In My View” provocaram momentos mais expansivos, de viagem mental e uma certa elevação espiritual. No final deste misto de emoções, quem pagou foi a bateria, derrubada com as mãos e pontapeada pelo último par de músicos a abandonar o palco no que parece ter sido uma breve descarga de fúria — totalmente compreensível quando, repetimos, se trata de um concerto cheio de problemas inserido num festival desta envergadura.

— Gonçalo Oliveira


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