pub

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes & Guilherme Cabral
Publicado a: 01/09/2023

Entre a espada do vento e a parede de poeira.

MEO Kalorama’23 — Dia 1: a veterania de The Prodigy e Yeah Yeah Yeahs a fazer a diferença

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes & Guilherme Cabral
Publicado a: 01/09/2023

O MEO Kalorama está de regresso. Já decorreu um ano desde que o mais jovem dos festivais de verão portugueses – aquele que ocorre em último lugar – decorreu pela primeira vez e, ao que parece, depois de uma primeira edição não tão escaldante, a organização aprendeu com os erros e decidiu melhorar. Não em tudo, mas na maioria das coisas. Já explicamos. Contudo, alguma informação primeiro.

O Kalorama arrancou esta quinta-feira (31) e decorre até sábado (2). Não mudou de sítio face à sua primeira edição; continua a decorrer na mesma no Parque da Bela Vista, em Lisboa. Todavia, há diferenças no recinto. Este é maior, mais espaçoso, e no geral, uma melhor experiência comparativamente com 2022, particularmente pelo maior distanciamento entre os vários palcos que, ao invés de três, agora são quatro.

Porém, apesar destas melhorias, os problemas de “trânsito” e mobilidade dentro do recinto, marcado pelas suas colinas dignas de etapa de Volta a Portugal, continuam a manter-se. Tentar sair do palco San Miguel – um dos novos palcos secundários – quando este se encontrava cheio não deixou de ser claustrofóbico e uma experiência que requer avaliação pronta para que não se repita nos próximos dias de festival. Conteúdo extra sobre coisas que não se podem repetir: problemas na entrada do recinto – o recinto abriu com praticamente uma hora de atraso – e filas que sucederam nas casas de banho. Além disso, o pó que pairava em todo o lado dificultou bastante as coisas e, pelo facto de não existirem grandes espaços verdes, torna-se muito complicado de assistir aos primeiros concertos do dia, a iniciarem-se durante as horas de maior calor. De notar ainda que a área de imprensa piorou bastante de 2022 para 2023…

Antes de passarmos a contar a história dos concertos deste primeiro dia de Kalorama, um último ponto – muito positivo neste caso – a relatar: a qualidade de som dos palcos do festival. Se em 2022 isso talvez tenha sido a maior crítica dirigida ao Kalorama, em 2023 parece ser um dos seus pontos mais fortes. Louvamos, desde já, os ouvidos abertos da organização do Kalorama – agora apenas a cargo dos espanhóis da Last Tour – em melhorar o certame, coisa que raramente assistimos por parte de outros festivais portugueses.



Hora de confessar-vos uma coisa – tenho tido grande dificuldade em interiorizar a música de Scúru Fitchádu. Admiro-a pelo que pretende ser – a destruição do pensamento colonizador, imperativa nos dias de hoje, construída (ou desconstruída) a partir de uma energia punk implacável, afrofuturista e negro. A sua poesia é efervescente, a sua entrega total. É catártica, de certa forma. Mas repito: ainda não a tinha interiorizado. Entre em cena o concerto de Scúru Futchádu no Kalorama – a primeira vez que o vi ao vivo.

Fui para este concerto – no palco Samsung – com a expectativa que este me faria mexer e ia, efetivamente, finalmente fazer-me ganhar vontade de revisitar a sua obra. Com o seu novo disco, Nez txada skúru dentu skina na braku fundu (cuja entrevista publicada nestas páginas merece ser lida e relida), Scúru volta a meter a ferida no legado colonialista e, com a ajuda da sua milícia – leia-se, nós, antifascistas, ativistas, indivíduos (ou seremos todos vampiros, como este nos chamou por estarmos à sombra?) que pensam em coletivo para um melhor futuro construir – destruí-lo sem dó nem piedade. Ao vivo, nota-se. A sua entrega é pujante, as suas vociferas – para uns indecifráveis, para outros gritos de guerra de erguer punhos ao céu – acompanham instrumentais que nos fazem dançar, mas que não nos fazem esquecer. Pelo contrário. Ativam os nossos sentidos de sobrevivência, porque no meio de todo o caos, a música de Scúru, mesmo que violenta, oferece-nos alguma benevolência e paz de que as coisas vão ficar melhor. Pelo menos, foi isto que concluí.

Gostava de vos poder dizer que músicas Scúru tocou, mas não sou capaz. Não conheço a sua obra o suficiente. Posso-vos dizer que tocou “Treinament”, faixa que encerra o seu mais recente longa-duração, porque o próprio – acompanhado em palco por um DJ, um instrumentalista, e duas figuras que pareciam estar lá para nos lembrar que precisamos de estar prontos para lutar a qualquer momento – a mencionou. E que, no geral, foi um excelente concerto, que bem poderia ter demorado mais se tivesse sido posicionado no horário num slot que fosse mais adequado à sua música. Mas é pedir muito para que os artistas portugueses possam tocar em slots que não os do início do dia, não é?

— Miguel Rocha



Temos pouca coisa a dizer do concerto de BK, que a veio a Lisboa e ao Palco Samsung do Kalorama apresentar ICARUS, disco editado em 2022, mas começamos pelo seguinte: o slot que lhe foi atribuído em nada beneficiou o rapper brasileiro, que se viu a ferros com um público pouco em quantidade – apesar de termos notado que, quem estava, veio com carinho para dar e com melodias para cantarolar – para alguém do seu estatuto. Ainda nem tinha começado a tocar, mas as cartas já estavam lançadas contra ele. Deve ser de mercúrio retrógrado.

Depois, o som. Sim, escrevemos na introdução deste texto que o som neste primeiro dia de Kalorama estava bom… Mas no concerto do autor de Castelos & Ruínas, obra crucial do hip hop brasileiro, simplesmente a coisa não estava bem oleada. O baixo triunfava acima do resto, os graves a destruírem qualquer noção de melodia ou sentimento que as suas cantigas pudessem ostentar. E de sentimento, têm muita.  Que se escute canções como “Amores, Vícios e Obsessões” ou “Amanhecer” como prova disso mesmo. Mas de energia, neste Kalorama, tiveram pouca. Isso podemos auferir.

Ao longo do concerto, mesmo com o público que claramente estava feliz por assistir a um concerto de BK, a energia do rapper brasileiro e os seus compinchas em palco – DJ e hype man, sem banda – não foi suficiente. Pelo contrário. Talvez fosse do calor, mas na realidade, a performance – fora quando “Bloco 7” e “Universo” surgiram já mesmo próximas do final do concerto – de BK só serviu para arrefecer esta tarde de finais de agosto em Lisboa. Esperemos que em Coimbra (1 de setembro, no Salão Brazil) e Porto (2 de setembro, no M.Ou.Co) a coisa corra melhor para quem assistir.

— Miguel Rocha



À partida, nunca é demais ver Rita Vian ao vivo novamente. E este “à partida” prende-se única e exclusivamente ao facto de termos morrido de amores pelos seus primeiros passos a solo, e agora que está a preparar o lançamento de um novo disco, o avanço inaugural soou a um completo tiro ao lado. Chega a ser cringe a forma com que se debruça sobre “Animais”, um tema que nem é bem cantado, nem é bem rap, é uma acrobacia desajeitada qualquer ali pelo meio e um dos momentos menos apelativos do alinhamento que nos trouxe ontem, muito a par com uma das faixas inéditas de Sensoreal que também fez questão de apresentar: um piano repetitivo com versos debitados estilo MC, mas atrapalhados, em que a certo ponto larga um “pode ser que amanhã isto faça sentido” — por cá, não está a fazer.

No que toca ao que já estávamos habituados a escutar da temporada de estrada em torno de CAOS’A, a coisa soa oleada como sempre. “HPA”, “Sereia”, “Plana”, “Caos’a” ou até os interlúdios que costumam intermediar o espectáculo em regime acapella, com a artista ajoelhada no chão, são como porto-seguro para quem está deste lado e não cansam a ver e rever. Em suma, fica um sabor agridoce quanto à vinda de Rita Vian ao MEO Kalorama, que, ainda por cima, desta vez veio acompanhada de Progressivu ao invés de João Pimenta Gomes – provavelmente terá sido apenas uma substituição de última hora, mas tê-lo na retaguarda em formato “DJ set”, apenas a disparar instrumentais previamente preparados, também retira algum brilho à performance.

— Gonçalo Oliveira



“Já não tocamos cá [em Portugal] há 17 anos”. A frase proferida por Karen O a dado ponto durante o concerto dos Yeah Yeah Yeahs pode parecer algo surreal, mas é verdade. A última vez que os Yeah Yeah Yeahs atuaram em Portugal foi em 2006, em Paredes de Coura, quando ainda eram uma das bandas mais badaladas do indie rock.

Em 2023, os YYY já não são das bandas mais badaladas do indie, mas são das mais acarinhadas, tanto por pessoas que viveram o seu auge – durante o período em que Nova Iorque foi o epicentro da nova era do rock de garagem – como por pessoas que descobriram a sua música mais tarde e relacionaram-se. Afinal, aquilo que torna a música dos YYY especial – e intemporal – é ser música de catarse romântica. 

Em palco, Karen O, Nick Zinner – as suas guitarras continuam a capturar a imaginação de tantos -, e Brian Chase, cujo sorriso enorme bem se fez notar atrás do seu kit, ajudados por um músico extra para conseguir construir ao vivo as suas canções, vieram para dar espetáculo. Karen O, ícone do estilo do indie, não desapontou. Colorida e icónica, como sempre nos habituou, energética, como se quer. Pode já não ter o caos puro das suas performances de outros tempos, mas O ainda arranja tempo para atirar uns microfones e colocá-los em sítios menos aconselháveis (ou mais, dependendo da perspetiva), e ainda cantar com amor suficiente para qualquer um se apaixonar. Assim vale a pena.

A abrir, “Spitting Off the Edge of the World”, single apaixonante extraído do mais recente trabalho discográfico do trio, Cool It Down (bom disco), lançado em 2022, logo a mostrar que os YYY vieram mostrar serviço no Palco MEO. A seguir, “Cheated Hearts”, canção de Show Your Bones (2006), e “Pin”, de Fever To Tell, disco de estreia de 2003 que confirmou os YYY como estrelas indie, mantiveram a chama acesa do rock, que começou a cativar mais o público para dançar e saltar. “Burning”, mais uma canção do último disco da banda, veio logo a seguir, pronta a atiçar corações, refrão carregado de emoção a não deixar ninguém indiferente. 

“Zero” marcou a primeira de três vezes que a banda visitou It’s Blitz! (2009), antes de “Soft Shock” e “Gold Lion” marcarem o passo em preparação para o que seria a reta final do concerto, perdida entre algumas das melhores canções da banda. “Lovebomb” mereceu muitas palmas, “Y Control” mereceu muita dança, “Maps” foi “Maps” – se não é a melhor canção de indie rock de sempre, está muito perto de o ser – e “Heads Will Roll” (com iluminação digna de um concerto de EDM) e “Date With the Night” foram o furacão final merecido para as hostilidades darem-se por concluídas. Os Yeah Yeah Yeahs saíram satisfeitos e nós também. Do bom concerto de rock.

— Miguel Rocha



Entrar com “It’s Been a Little Heavy Lately” é mesmo para levar qualquer pessoa às lágrimas. O Kalorama somou pontos ao promover a estreia de Joesef em Portugal, e mesmo que este seja um nome ainda não muito conhecido do público em geral, a verdade é que se formou uma plateia muito bem composta de die-hard fans não apenas para o ver actuar, mas também para o acompanhar em muitas das letras que traz na bagagem. Pelo que parece, nem o próprio estava à espera de tal moldura humana, e vimo-lo ficar “sem jeito” várias vezes a cada demonstração de apreço vindo da massa adepta. A canção que mais ansiávamos foi a primeira a ser tocada e a noite estava ganha logo ali, mas ficar até ao final mostrou-se tão, mas tão recompensador.

O cantautor escocês tem um ar peculiarmente dócil e frágil, que casa bem com a voz angelical e plena de sentimentos, tal como os versos que assina assim bem o pedem. Na vinda a Lisboa, fez-se acompanhar por um par de guitarras, bateria, baixo e teclas, embora alguns dos músicos se fossem desdobrando por um ou outro elemento de percussão adicional, mas todos eles detentores de um groove bem apelativo, quer nos temas mais acelerados e dançáveis, quer nas jams mais lentas e progressivas. E este foi o ano certo para o recebermos por estas bandas, já que cimentou a carreira logo em Janeiro através do lançamento do seu álbum de estreia, Permanent Damage, após alguns anos a movimentar-se pelos corredores da indústria a exibir singles de EPs.

Em menos de uma hora de espectáculo, presenteou-nos com músicas para corações partidos, dedicatórias a mães solteiras e outras que fazem noites chuvosas virarem dias de sol, devolvendo-nos a fé de que dias melhores nos esperam lá mais para a frente. “Joe”, “Comedown” e “All Good” foram algumas das canções que trouxe para cima do palco, num concerto que proporcionou inúmeras trocas de afectos, com a plateia constantemente a puxar por Joesef e este a responder a cada manifestação mais efusiva que escutava, chegando até a prometer que voltaria muito em breve para diante de nós. Venham de lá essas datas.

— Gonçalo Oliveira



Poucas bandas têm este poder de juntar gentes das mais diversas gerações tribos urbanas. Ravers, punks, betos, nerds ou normies, dos mais jovens aos mais velhos, uns mais exuberantes do que outros na forma de vestir e vivenciar um festival, todos se dirigiram ao palco MEO ao soar a “campainha” das 00h40. Com o sistema de luzes ainda em serviços mínimos, escutava-se um DJ que, entre scratches, ia disparando breaks clássicos de bateria e, por momentos, parecia até uma entrada digna de um concerto de KRS-One, que por acaso até se fez escutar através de “Sound of da Police”, após uma passagem por “So What’cha Want” dos Beastie Boys. Os “professores”, no entanto, eram outros, embora de uma disciplina que também assenta de forma vincada no sampling de deliciosos pedaços rítmicos, mas que os reformula de maneira totalmente diferente, bem mais selvática. A aula não era de hip hop, mas sim de drum & bass, e nisso os The Prodigy são uma autêntica instituição, responsáveis por levar a cultura sónica criada no Reino Unido para as catacumbas, na versão mais frenética e, ao mesmo tempo, decadente possível do motto “sexo, drogas e rock and roll”.

8 anos passaram desde que os vimos num dos dias da edição de 2015 do NOS Alive e muita coisa mudou. Embora continuem com o power de sempre, socorrem-se de uma formação emagrecida devido ao precoce desaparecimento do carismático Keith Flint, que morreu em 2019 com apenas 49 anos de idade, e de um alinhamento que também parece ter sofrido uma certa dieta.

Depois de uma introdução de cerca de 10 minutos, irrompem-nos pelas vias respiratórias logo à boleia de “Breath” e levam-nos por um portal temporal que atravessa mais de uma década para chegar a “Omen”, mas voltam a recuar na cronologia, até porque é lá atrás que residem os seus maiores bangers, para fazerem de nós “Voodoo People”, obrigando-nos a mover os corpos segundo as suas directrizes. Maxim foi mestre de cerimónias solitário e passou a maior parte do tempo desprendido das letras que guiam cada tema, adoptando uma postura mais de hype man do que propriamente de intérprete, deixando-nos muitas vezes entregues a versões instrumentais das faixas, sobre as quais ia debitando uns “where are my party people at?” e “this is fucking Lisbon”. Em homenagem a Flint, calou-se por completo em “Firestarter”, enquanto a cara do malogrado companheiro ia sendo desenhada a laser verde nos painéis que integram a estrutura do palco, gerando muita emoção entre o público.

Infelizmente, a visibilidade foi péssima e dificilmente alguém percebeu o que se estava a passar sem o auxílio das imagens que eram projectadas nos ecrãs. Não bastava a poeira que faz parte das características do local, as máquinas de fumo não pararam de trabalhar por um segundo e havia uma densa névoa que apenas nos deixava vislumbrar alguns vultos a espaços. Não conseguindo focar atenções nos performers, restou-nos atentar o festim de luzes que acompanha os Prodigy na estrada e que cumpre com a sua função sem nunca saber a soberbo, recorrendo maioritariamente a tons verdes, vermelhos e azuis.

Quando Maxim vocifera ao microfone “now it’s the fucking anthem”, já sabíamos que a aventura estava a chegar ao fim, mas sabíamos também que era altura de soltar tudo cá para fora ao som de “Smack My Bitch Up”. Muita gente a saltar, o nível de poeira no ar no seu pico, alguns corpos em colisão e pertences diversos a voar pelo ar — das peças de roupa aos copos vazios. Findada a opus magnum do lendário grupo inglês, fingiram o adeus por breves momentos e regressaram com um pequeno encore antes da verdadeira despedida.

— Gonçalo Oliveira


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos