Como peixe na água, onde a memória de curta duração ainda faz o mecanismo ter lugar. Essa fórmula onde assenta a ideia do nome, frases de guitarra de poucos segundos, memorizadas nos pedais e postas em ciclos de repetição. O grupo que o caldense Miguel Nicolau, resiliente mentor convicto, vai sabendo reconfigurar apresentou-se para uma maré de concertos que levou à estrada fora, desde o Barreiro às Caldas da Rainha, passando por Lisboa, Aveiro e Porto, com paragem agendada em Coimbra, no Salão Brazil no passado dia 13 de Dezembro. No decurso da digressão, é neste palco a data onde se apresentaram no modelo nuclear, mais reduzido — além de Nicolau na guitarra e voz processada, com Filipe Louro no baixo e Pedro Melo Alves na bateria e programações. Oportunidade de assistir ao novo trio que forma a nova vida de Memória de Peixe e que gravou III, o disco que virá com o ano que se avizinha pela Omnichord Records de Hugo Ferreira. Quantas vidas tem Memória de Peixe? Ficamos a saber que pelo menos três.
Meses antes haviam revelado o primeiro dos temas que compõem o novo registo. Com “Good Morning” que abre caminho às novas influencias, que lhes entram desde um sopro de novo jazz onde a batida decalca passadas no hip hop, sem que as frases de guitarra façam esquecer a essência do que se trata. Antes de se fazerem à estrada lançaram “03:13”, que se inscreve numa esteira vinda de espaços distantes como de “Galaxy” do trompetista Eddie Henderson, ainda que daqui estejam arredadas tais vozes de metais — é um tema que Alfa Mist revisitou e trouxe à memória aquando da compilação Blue Note Re:imagined. Imagine-se nisso então onde a nova música de Memória de Peixe pode andar, bem próxima dos estímulos que nos chegam mais de perto com Azar Azar ou YAKUZA. Se reaparecessem para a nova vida com a indicação de que Nicolau tinha levado Louro e Melo Alves até ao influente Total Refreshment Centre, no bairro londrino de Hackney, para uma estadia como se duma residência artística se tratasse, seria algo de todo para acreditar. Não aconteceu de facto, mas uma lufada desse ar pode estar contida na música praticada. Desse centro, como dínamo, têm surgindo nomes como Neue Grafik Ensemble, Snapped Ankles, Bo Ningen, Flamingods ou Soccer 96. Como que imaginando essa estratégia, avançamos pelo alinhamento primordial do concerto com um exercício contaminado pela tal ligação às sonoridades em curso surgidas desde esse epicentro.
O alinhamento tocado traz um disco na integra a palco, já que é esse lugar concreto em que existe e permite uma pré-escuta. Sendo certo que ao vivo haverá mais nudez musical do que em disco, depressa se consta que contam com programações, as chamadas backing tracks, que permitem roupagem de maior vigor aos temas. Voltamos a encarar o imaginado de como terá sido com José Soares no saxofone alto e João Hasselberg nos sintetizadores. Encadeiam os temas já dados a conhecer entre um inicial “Pacemaker” e um denominado “Under The Sea”. Tema último que permite desejar dançar, muito por força de linhas ondulantes vindas da guitarra, num espaço submerso. Fica clara a noção de haver uma matriz no tempo e ritmo jazz-hip hop, onde se inscreve, intricada, uma guitarra que assume ser a instrumentação como que em caleidoscópios que lhe cabem em desmedida função criativa. Segue-se em sinal ascendente, num acelerado “El Vuelo”.
E se nesse alinhamento se seguiram e dançaram “Coincidentia” e “Not Tonight”, foi porque nesta noite que se escutava temas de uma renovada banda a saber fazer do novo uma total e refrescante música. Adicionaram-lhe ainda “Sun Inside” e “Golden Fiasco” como se preciso fosse para entender que, quando de Janeiro próximo em diante, se retomarem estes temas de cada vez que o disco tocar haverá motivos de sobra para o testemunhar, tal como nesta antevisão ficou revelada.
Souberam trazer à memória o que Memória de Peixe inscreveu no trabalho homónimo em 2012 com “Day Job” e “Estrela Morena”, e que se tornam temas renovados em palco, também por força de haver dois novos músicos para isso. Pedro Melo Alves e Filipe Louro tiveram ainda que fazer “seus” os temas da banda do tempo de Himiko Cloud com a tripla “Arcadia Garden”, “Herbig-Haro” e “Supercollider”. Para o derradeiro final, quis o público que a banda voltasse ao palco, e terminado o alinhamento preparado, quis Memória de Peixe que na mais recente das memórias ficasse inscrita na noite “Under The Sea”. Nesse motivo de dança expansiva em que a segunda tarola de Melo Alves se revelou fundamental. Que capa trará o disco? — perguntamos, uma vez revelada a música que III, em concerto, melhor redefiniu e nos deixou de Memória.