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Fotografia: Camille Leon/Sickonce
Publicado a: 08/10/2019

Entre os dias 3 e 6 de Outubro, uma dezena de painéis debruçou-se sobre questões como a disparidade salarial na indústria, o preconceito e o assédio no local de trabalho ou a saúde mental sob uma perspectiva interseccional.

MEETSSS em Portimão: que se comece a contar os dias para o fim da “cultura do medo” na indústria musical

Fotografia: Camille Leon/Sickonce
Publicado a: 08/10/2019

Há algo de inédito e extremamente reconfortante na ideia de juntar quase duas centenas de mulheres numa mesma sala, com uma agenda comum. Parece simples, talvez não tão importante para muitos leitores, mas, a verdade, é que sempre que falamos de desigualdades, sejam elas motivadas pela cor, pelo género, orientação sexual ou classe social, a noção de representatividade é um dos pontos fundamentais para compreender as motivações por trás desta necessidade de integração e entendimento.

Safe spaces são importantes. E são-no porque é através e a partir deles que artistas, criativos ou outros profissionais da indústria conseguem criar um nível de confiança e motivação que faça com que a sua arte, os seus negócios, os seus “produtos”, os represente da forma mais fiel e profunda possível.

O primeiro encontro internacional da rede SheSaidSo, o MEETSSS, materializou-se exactamente como tal. Um safe space onde mulheres de geografias e backgrounds distintos na indústria musical partilharam as suas experiências, desafios e necessidades dentro do mercado, com acesso a debates, sessões de mentoria, workshops e concertos. Engane-se, no entanto, quem achar que só de mulheres se completa a plateia ou os mais variados painéis. Na verdade, foi com a frase “the future of feminism is male” que a romena Andreea Magdalina, fundadora da rede SheShaidSo, conseguiu recrutar Mariana Duarte Silva, co-fundadora do Village Underground Lisboa e do projecto de impacto social Acorde Maior, para ser o seu braço direito na organização do primeiro de muitos encontros. Não é a primeira vez que o dizemos: qualquer tentativa de tornar a indústria — e o mundo — um bocadinho mais igualitário depende, inevitavelmente, de uma activa participação masculina. “Os homens têm a responsabilidade de aprender que o mundo é como é inteiramente por causa deles”, assegurou Chidera Eggerue, autora e activista britânica, numa mesa redonda dedicada a explorar os conceitos de género e identidade numa era orientada para a tecnologia.

Entre os dias 3 e 6 de Outubro, uma dezena de painéis debruçou-se sobre questões como a disparidade salarial na indústria, o preconceito e o assédio no local de trabalho ou a saúde mental sob uma perspectiva interseccional. Para Jennifer Justice, advogada, fundadora do The Justice Department e responsável pela gestão de carreiras como a de Jay-Z, Rihanna ou Kanye West na sua passagem pela Roc Nation, não há dúvidas no que toca à falta de confiança feminina quando, por exemplo, a questão é dinheiro. “As mulheres tendem a afastar-se do processo de negociação porque nós não fomos ensinadas a falar de dinheiro, investimento ou risco. Essas são as conversas que os nossos pais e os amigos dos nossos pais têm e nas quais nós não participamos”, partilhou. Confiança, aliás, é tema recorrente em qualquer uma das discussões daquele que se percebe como sendo o momento zero para se começar a perceber a indústria, a um nível mais alargado, em Portugal.

A mesma confiança, ou falta dela, que pode encontrar resposta na InChorus, a plataforma da britânica Rosie Turner que se dedica a mapear experiências de micro-agressão no local de trabalho, seja ele um escritório ou um estúdio, ou que se constrói — e várias vezes se põe à prova — na experiência de Oronike Odeleye, coordenadora do festival One Fest em Atlanta e fundadora do movimento #MuteRKelly. O cantor de Chicago viu dezenas de concertos cancelados, nos EUA e na Europa, e as suas canções serem retiradas do ar após os escândalos de pedofilia nos quais estava envolvido ganharem maior visibilidade nos media. “Isto aconteceu durante 25 anos e estamos a falar de raparigas que, em muitos casos, tinham 13 ou 14 anos na altura”, explicou. “Toda a gente sabia e ninguém fez nada. Aliás, essa foi uma das respostas que obtive de um amigo e responsável de playlist numa das rádios que contactei. Nós percebemos mas na verdade ninguém quer saber, Oronike”. Para ela é claro que, transversalmente, as mulheres não querem ser vistas como sensíveis e isso, muitas vezes, inviabiliza qualquer tomada de posição, de maior ou menor importância.

“As mulheres seguem guidelines específicas ao longo da vida enquanto os homens não”, frisou Clare Scivier que, depois de 20 anos a trabalhar com editoras e músicos no hip hop e na electrónica, fundou a Your Green Room para acabar com a “cultura do medo” na indústria. “Nós estamos constantemente a tentar ser perfeitas, a viver numa cultura tóxica que nos obriga a agir como ‘good girls‘ e isso, naturalmente, atrasa-nos”, continuou, num painel moderado por Mark Grotefeld, director-geral da gigante Pioneer DJ, comprometido com a necessidade de encontrar soluções para uma melhor integração das mulheres na produção e no mercado de DJing. As temáticas da sustentabilidade nos festivais de música, a presença das mulheres na produção e composição ou a promoção da música a uma escala global, levaram ainda a portuguesas Da Chick ou Marinho ao Algarve para não só partilharem as suas experiências, como integrarem o cartaz das três noites de concertos em vários pontos da cidade.

Surma, Fábia Maia e a dupla Studio Bros foram os responsáveis pelas primeiras batidas do evento, com a cantora de Barcelos a actuar num formato inédito com banda e a partilhar novas faixas de um trabalho que deverá chegar ainda este ano, logo após se discutir a cena musical nacional num debate com moderação do Rimas e Batidas. Na segunda noite, a sul-africana Dope Saint Juderumour has it que talvez a possamos voltar ouvir num dos grandes em Portugal depois de, em Março, ter passado pelo Musicbox — reclamou para si mesma o troféu de entrega em palco, numa actuação para lá de enérgica. Vimo-la rimar os seus manifestos feministas por cima de beats de YG ou Erikah Badu e apresentar as faixas do seu EP de estreia com uma única ideia em mente: “It is my right to flex, it is my right to shine” e nós não poderíamos estar mais de acordo. A produtora britânica Perera Elsewhere e a portuguesa Mafalda completaram o cartaz da noite num evento que reuniu ainda nomes do indie e da electrónica como foram os casos de CRLN, Yamamemaru, Hanakito, Da Chick ou Roundhouse Kick.

Numa altura em que os media, especializados e generalistas, e as redes sociais fervem com posicionamentos que hesitam entre calar, aceitar ou condenar a normalização da violência, do abuso e do preconceito de género na indústria e no hip hop, que nos importa particularmente — veja-se o caso Valete e tantos outros com mais ou menos exposição –, o primeiro encontro da rede internacional é um virar de página na partilha de desafios e ideias em larga escala que se possam adaptar e discutir no mercado nacional. Prometida, para já, está a realização de talkse workshops, num modelo menor, que trará a rede SheSaidSo a Lisboa.


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