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Fotografia: Inês Mineiro Abreu
Publicado a: 12/11/2021

Um espectáculo inserido na edição deste ano do Misty Fest.

Matthew Halsall no Museu do Oriente: a elevar espíritos enquanto nos carregava da selva tropical à Índia das monções

Fotografia: Inês Mineiro Abreu
Publicado a: 12/11/2021

Sentado no chão sempre que se remetia ao silêncio, o que sucedeu com alguma frequência, Matthew Halsall personificava ontem da melhor forma o lado meditativo da sua arte. Como teve ocasião de explicar em algum detalhe em entrevista ao Rimas e Batidas, esse lado da sua música não resulta de alguma apressada tentativa de sintonização com o lado “espiritual” do jazz que tantas reedições e novos lançamentos tem inspirado, antes de uma real experiência terapêutica em que embarcou na adolescência para debelar os seus problemas de dislexia. Como ficou evidente de todas as vezes que comunicou com o público que esgotou o auditório do Museu do Oriente, na zona ribeirinha de Alcântara, em Lisboa, o trompetista britânico Matthew Halsall é uma figura simpática, tranquila, aberta, mas ainda assim pouco dada a manifestações mais expansivas, o que condiz na perfeição com a sua música, uma declinação contemporânea do jazz que figuras como Alice Coltrane, Yusef Lateef ou Pharoah Sanders criaram nas décadas de 60 e 70, mas também informada por essa outra música que na transição do milénio usou essa mesma matéria clássica para reimaginar o futuro.

Talvez seja na secção rítmica – Gavin Barras no contrabaixo, Jack McCarthy na percussão e Alan Taylor na bateria – que melhor se identifica essa assumida dívida perante a música que num mundo pós-hip hop, expandido pelas possibilidades do sampling, procurou no jazz o combustível para novas viagens: o trio conjurou ao vivo um pulsar que deve tanto à cadência do jazz modal clássico quanto a um certo lado mais “orgânico” da música de clubes, sobretudo a que se definiu no período que se desenrolou a seguir ao trip hop e que teve em projectos como os Cinematic Orchestra de J Swinscoe – aliás homenageados ontem por via de uma versão de “Ode to the Big Sea”, clássico do alinhamento de Motion, o registo de estreia desse projecto, lançado em 1999 – um dos seus mais evidentes expoentes. E nesse sentido, pode quase falar-se de uma espécie de “swing continuum” no jazz proposto por Halsall, com essa sólida base erguida por uma ágil bateria, um arsenal de percussão que soube colorir de forma “exótica” os espaços rítmicos, e um contrabaixo que não teme a enfática repetição que garante concentração hipnótica.

Em palco, para lá da já mencionada secção rítmica, encontravam-se ainda o pianista Liviu Gheorghe, o saxofonista (alto e soprano) e flautista Matt Cliffe e a harpista Alice Roberts, todos músicos com sólidas competências técnicas que, no entanto, deixaram sempre claro estarem ali para tocarem em ensemble os arranjos assinados pelo líder e não para partirem em altos voos solitários e improvisacionais. O importante ali são os desenhos harmónicos e o encaixe no sofisticado plano rítmico. 

Claro que a todos os instrumentos foi dado espaço solista e todos o aproveitaram com classe, sem nunca registarem desvios por território mais atonal ou “free”. Em temas como “The Sun in September” (do álbum Fletcher Moss Park de 2012), na já mencionada vénia aos Cinematic Orchestra com “Ode to the Big Sea”, “Together” (de Colour Yes de 2009, peça que foi dedicada por Mathew a um amigo português residente em Manchester desaparecido recentemente) e sobretudo nas peças mais recentes de Salute to The Sun (2020) como “Harmony With Nature”, “Joyful Spirits of the Universe” e também no próprio tema-título, a visão musical de Matthew Halsall surge claríssima: a de um jazz que sobrevoa o tempo, que tem vocação melódica vincada e que procura inspirar a elevação. No final, havia mesmo quem assobiasse um par desses tunes, embalado pela prestação do septeto.

“Harmony With Nature” foi um dos pontos mais interessantes do concerto, com Matthew a sublinhar na sua comunicação o lado exótico da peça entregue sobretudo ao percussionista Gavin Barras que puxou de uma série de apitos e chocalhos para evocar a densa folhagem onde se poderiam abrigar as aves multi-coloridas de uma qualquer selva tropical, mas também ao pianista que só aí se voltou para o Nordlead que repousava ao seu lado para dele retirar os percussivos sons digitais que o DX7 ofereceu aos delírios quarto-mundistas de um Jon Hassell, por exemplo. O público foi aliás convidado a, caso desejasse, juntar os seus assobios ao “coro”, mas foram sobretudo a planante flauta e o piano acústico que brilharam na peça.

No final, o encore fez-se com a nova composição “The Temple Within”, tema em que parecemos viajar entre o Alhambra e o Taj Mahal, com colorações melódicas no piano e no trompete a evocarem o flamenco, primeiro, e a música clássica indiana, logo depois. Com recurso à surdina e tudo, este foi o momento mais “milesdavisiano” do concerto, com Halsall a evidenciar o seu lado mais poético de tal forma que chegou a ser tocante. O suficiente para deixar toda a plateia com os corações carregados de uma bem necessária e saudável energia anímica.

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