Nome incontornável da cena experimental nova-iorquina, Mary Halvorson tem vindo a redefinir, com notável consistência e ousadia, as possibilidades expressivas da guitarra no jazz contemporâneo. Agraciada com a bolsa da MacArthur Foundation e com um percurso recheado de colaborações com figuras seminais como John Zorn, Bill Frisell ou Robert Wyatt, Halvorson regressa a Portugal num momento de particular vitalidade criativa, para apresentar o seu mais recente álbum, About Ghosts, lançado pela Nonesuch Records em Junho de 2025.
Composto por oito novas peças, About Ghosts dá continuidade à linguagem singular que a compositora tem vindo a desenvolver com o seu Amaryllis Sextet — o mesmo grupo que animou os aclamados Amaryllis, Belladonna e Cloudward. Mantém-se o núcleo original — Patricia Brennan no vibrafone, Nick Dunston no contrabaixo, Tomas Fujiwara na bateria, Jacob Garchik no trombone e Adam O’Farrill no trompete —, agora expandido com as contribuições de Immanuel Wilkins e Brian Settles nos saxofones, que se juntam ao ensemble em cinco composições. Halvorson acrescenta ainda discretas camadas de sintetizador Pocket Piano, em sobregravações que ampliam o espectro tímbrico da obra. O resultado, produzido e misturado por John Dieterich (dos Deerhoof), é um álbum em que o rigor composicional convive com a liberdade da improvisação, num equilíbrio raro entre o estrutural e o intuitivo.
O concerto inserido no ciclo Julho é de Jazz, dia 11 de Julho no Theatro Circo em Braga, será a oportunidade para ouvir ao vivo — com o Amaryllis Sextet (Patricia Brennan, Nick Dunston, Tomas Fujiwara, Jacob Garchik e Ingrid Laubrock no saxofone, além, claro, da própria líder) — este novo repertório, que não só alarga os horizontes do sexteto como reafirma a inquietação estética de Halvorson, uma artista em constante busca de novas possibilidades.
À conversa com o Rimas e Batidas, Mary Halvorson fala-nos do impulso por detrás de About Ghosts, da contínua reinvenção do seu universo sonoro e da tensão criativa entre forma e liberdade que tem guiado o seu percurso singular.
Há aquele ditado que nos diz que não devemos julgar um livro pela sua capa. Mas se julgássemos o seu novo álbum pela sua capa, ele dir-nos-ia que é feito de um espectro cromático muito maior do que os seus antecessores. Ao escutá-lo, percebemos que isso é verdade. Fale-me sobre isso, dos novos músicos que ingressaram no seu Amaryllis e da nova sonoridade que quis para este trabalho.
Nós aqui temos mais sopros. Já fazia bastante tempo que eu não escrevia para quatro sopros, nesse caso para o disco Away With You (2016). Eu sentia saudades dessa orquestração mais densa, com mais instrumentos para trabalhar. Ao mesmo tempo, queria continuar com o Amaryllis, mas adicionar-lhe mais dois saxofones. Acho que tomei essa decisão muito depressa. Num dia, simplesmente… “É isso! Vou adicionar saxofones.” E gostei muito do processo, de ter mais cores na música, como você disse. O DM Stith fez essa capa maravilhosa e eu praticamente nem lhe dei indicações. A capa que ele desenhou vem do que ele escutou na música, também ligado ao título. Eu achei muito fixe que ele tenha tido essa ideia.
Esta adição de camadas a um som que já dominava também tem a ver com querer desafiar-se enquanto compositora? Todos os discos que fez com o projecto Amaryllis receberam imensos elogios, mas, como indica no press release, gosta de atirar uma chave inglesa para o motor e ver o que acontece.
Sim. Para mim, é importante não estar constantemente a fazer o mesmo tipo de álbuns. Quis fazer algo diferente. Embora haja três temas do disco apenas em sexteto. Eu quis lançá-los porque nós temos tocado muito juntos em digressão e fomos criando estes temas que ainda não tinham sido gravados. Mas o resto das músicas são com a versão aumentada do grupo. Eu não sabia o que iria acontecer ou como iria soar, então, parte disso serve para que eu me consiga surpreender a mim mesma. “O que será que acontece se eu adicionar dois saxofones e um sintetizador?” Sintetizador esse que um amigo meu de infância construiu. Eu quis ir adicionando camadas para ver se conseguiria resultados diferentes dos discos anteriores.
O som da sua guitarra também parece diferente. A forma como faz o pitch bending de algumas notas também faz parecer que está a tentar explorar um novo território ao nível das texturas.
É engraçado dizer isso e creio que é apenas a segunda pessoa a notá-lo. Eu não fiz nada com o som da minha guitarra de forma consciente. É daquelas coisas que, talvez por estar tão dentro do processo, não consigo ver.
Não adicionou nenhuma ferramenta adicional ao seu arsenal? Algum pedal novo que tenha juntado?
Hum… Em termos de coisas novas, eu só me lembro de ter usado o pedal de delay da Line6, que é de onde eu obtenho esses pitch bendings das notas e que entretanto foi actualizado para um novo modelo que oferece mais possibilidades. Portanto, é possível que existam alguns sons que não existiam antes. Mas também é possível que esteja a ouvir o sintetizador, porque o meu amigo que o construiu enviou-me alguns patches com pitch bend e ele disse-me que eles o faziam lembrar de mim. Ou seja, esses patches meio que emulam o som da minha guitarra, portanto também é possível que seja isso que está a ouvir.
E é possível que daqui a uns anos voltemos a conversar sobre um possível álbum em que assume apenas o leme do sintetizador? [Risos]
Não, não creio [risos]. Para mim, isto foi uma coisa um bocado limitada. Não é algo que eu esteja a procurar fazer mais. Mas há situações em que se pode tornar interessante. Isto é o tipo de coisa que eu gosto de fazer apenas para situações muito específicas.
Espere até o seu amigo lhe oferecer um sintetizador modular e vai ver que vai entrar num buraco negro do qual não conseguirá sair [risos].
Nunca digas nunca, não é? [Risos]
Estava aqui a olhar para o seu calendário e o primeiro concerto do mês de Julho é precisamente este que vai ter em Portugal, em Braga. Será a sua primeira vez lá?
Não. Eu estive em Braga duas vezes, tenho quase a certeza. A primeira com a minha banda Code Girl, depois com Thumbscrew, o projecto que tenho com o Michael Formanek e o Tomas Fujiwara. Mas ambas essas datas já foram há alguns anos, portanto já faz um tempo que não vou a Braga, que é uma cidade lindíssima.
E como é que se prepara para o arranque de uma nova digressão após o lançamento de um novo disco?
Muitas das vezes, quando lançamos um álbum já o andamos a tocar ao vivo há algum tempo. O processo de editar um disco demora muito — entre gravação, mistura, masterização, encomendar a capa… Já temos andado a tocar muita desta música há algum tempo e sentimos que ela está num estado muito bom. Levar esta música para a estrada agora acaba por ser uma continuação daquilo que é o seu processo de desenvolvimento. Estas peças estão sempre a sofrer mutações, progressivamente. Ao andarmos na estada a tocá-las, elas vão evoluindo de uma certa forma, vão mudando. É divertido ver o que acontece consoante vamos tocando mais vezes. Mas já faz algum tempo desde que esta banda tocou junta, portanto vai ter aquele sabor a reunião, de alguma forma.
E a produção do álbum? Ela foi feita pelo John Dieterich, certo?
Sim.
Alterou-se alguma coisa ao nível das dinâmicas dentro do estúdio?
Ele tem sido o produtor dos discos de Amaryllis. Ele conhece tão bem a minha música, já trabalhámos tanto juntos, que eu sinto que ele está já muito inteirado do som que procuro, então quase que nem trocámos impressões. Eu envio-lhe as gravações, ele faz a mistura e já sabe como fazer. Adoro a forma como ele trabalha essa parte, os sons estão tão quentes. E ele tratou muito bem do sintetizador, soube inseri-lo na música de forma correcta, porque eu não queria que isso fosse dominar no resto da mistura. Ele soube encaixá-lo. Adoro trabalhar com ele e também sou fã dele como músico, da forma como ele toca guitarra nos Deerhoof. Tem sido muito bom trabalhar com ele nestes discos.
Vocês têm dois espectáculos na Europa, depois regressam para os Estados Unidos. Eu questiono-me: que tipo de país julga que vai encontrar quando lá chegar? Aquilo que temos escutado deste lado do oceano é alarmante.
Verdade. Eu própria me pergunto sobre isso [risos]. Creio que estamos numa situação em que as coisas estão a mudar para pior de forma tão drástica, que se torna muito difícil de saber onde vamos estar daqui a duas semanas, um mês, um ano… Eu não sei. Acho que as pessoas estão finalmente a perceber o que se está a passar, a protestar e a ripostar. Espero encontrar um impulso positivo quando lá chegar. Espero que nos consigamos começar a mover-nos numa direcção melhor. Mas as coisas estão bastante sombrias. Eu meio que sinto que estou a viver semana a semana. É de loucos.