pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/03/2023

O equilíbrio entre concepção e execução.

Mário Costa: “Quero ser um bom músico e não apenas um baterista com uma técnica do caraças”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/03/2023

Cinco anos após Oxy Patina, Mário Costa voltou aos discos em nome próprio através de Chromosome, um conjunto de nove composições suas executadas com a ajuda de Cuong Vu (trompete), Benoît Delbecq (piano, sintetizadores & samplers) e Bruno Chevillon (contrabaixo).

Depois de cumprido o seu percurso académico, o baterista de Viana do Castelo não tem tido mãos a medir e é bastante comum vê-lo a desdobrar-se sobre inúmeros outros projectos, quer em estúdio quer na estrada. Participou em Casa Guilhermina (de Ana Moura, com quem também já fez longos quilómetros de palco e palco) e tem tocado ao lado de alguns dos nomes mais interessantes do jazz nacional e internacional — desde Hugo Carvalhais e Emile Parisien a Nate Wooley ou aos Mazam.

Apresentado ao vivo em três datas no final de Fevereiro (duas em Portugal, uma em França), Chromosome foi selado pela Clean Feed Records no arranque de Março e é agora dissecado através de uma entrevista para a nossa publicação.



Comecemos pelo teu concerto: como é que correu?

Acho que correu muito bem. Foram três. O primeiro foi em Lisboa, no CCB. Estava lá muita gente, mais do que eu estava à espera. Também estava inserido num festival da Antena 2 e isso ajuda na divulgação. Ensaiámos no dia antes e houve um percalço: o trompetista Cuong Vu vinha de Seattle, tinha uma hora de conexão em França; era suposto ensaiarmos na quinta-feira, mas o gajo perdeu o voo de manhã e teve de ficar o dia todo em Paris, no aeroporto, a apanhar uma seca. Ele só chegou cá às 18h, ensaiámos a correr, ao final do dia. Ele estava de directa, tinha apanhado um voo de 10 horas e depois esteve mais umas 10 horas em Paris. Ele estava muito cansado, mas ensaiámos e foi porreiro. Fomos jantar a Sintra e eles ficaram logo todos contentes [risos].

Pronto. Antes isso.

Mas o concerto correu super-bem. Foi o primeiro concerto num ambiente de festival, em que há mudanças de palco — uma banda acaba de tocar, depois é preciso voltar a meter os instrumentos, e nós temos coisas electrónicas, é preciso voltar a ligar tudo. É mais stressante do que quando já temos tudo montado e podemos estar tranquilos. Mas o balanço foi bastante positivo, sem dúvida. O concerto de Braga foi num ambiente um bocadinho diferente, foi no contexto de um espaço do Pedro Remy.

Muito bem. Vamos recuar até às sessões de gravação deste projecto. Antes de mais, explica-me: tu já tinhas trabalhado com alguns destes músicos, mas com o Cuong Vu não tenho a certeza se não terá sido a primeira vez.

Com o Cuong Vu foi a primeira vez. E a primeira vez que gravámos foi a primeira vez que tocámos juntos, na verdade. Eu já o conhecia, mas ele não me conhecia a mim. Eu vi-o tocar pela primeira vez no Coliseu dos Recreios, com o Pat Metheny Group, em 2005. Ele andava em digressão com o Pat Metheny Group e eu fui a Lisboa ver. Não me lembro se eles também vieram ao Porto e eu só pude ir à data de Lisboa, mas calhou ir vê-los ao Coliseu dos Recreios. Ia para ver o Pat Metheny, obviamente, e o baterista, Antonio Sánchez, que eu adorava. No concerto fiquei fascinado com o som que o Cuong Vu tinha no trompete. Ele tinha um som muito atmosférico, com muito reverb, muitos efeitos… Havia um momento em que ele ficava sozinho a fazer o espaço dele… Eu fiquei fascinado. Ainda por cima o meu primeiro instrumento foi trompete. Quando comecei a aprender música, numa escola em Viana do Castelo, comecei a aprender trompete porque não havia professores de bateria nem de percussão. Fiz aquelas aulas normais, de “dó ré mi”, e quando tive de escolher um instrumento fui para trompete. Fiquei fascinado com isso. Depois, mais tarde, em 2008, fui a Nova Iorque, com o baterista Marcos Cavaleiro, passar uma temporada. Fomos ver uns concertos e fomos a um bar, o The Stone, que é do John Zorn, ver um concerto de Cuong Vu Trio. Na altura, eu já estava curioso com o Cuong Vu, mas íamos para ver o baterista, Ted Poor, que eu adoro. O trio dele foi altamente. Não me lembro do nome do baixista — acho que era japonês. O trio tinha alta energia e eu adorei aquilo. Fiquei sempre a pensar, “um dia gostava de tocar com o Cuong Vu.” Porque tem uma identidade muito própria, um som único e uma outra coisa que eu gosto muito — tanto toca uma melodia bonita e espacial como, se fizer falta, toca uma coisa mais abstracta, com mais energia, mais densa. Não é um músico muito intelectual, mas também o sabe ser. E é um músico de energia, que sabe tocar música aberta. Em 2020, o Adelino Mota, do festival Jazz Valado, tinha-me convidado para ir lá tocar com o meu disco anterior, o Oxy Patina. Tínhamos a data marcada e, entretanto, a minha filha ia nascer nessa semana. Pensei, “não posso ir fazer o concerto.” Falei com o Mota: “Adelino, não dá para mudarmos isto? Não me dá jeito nenhum…” E ele: “Então passamos para o próximo ano.” E assim foi. No ano a seguir, falei com ele e disse-me: “Este ano já está cheio. O dia que dava para ti era o dia internacional e já vem o Carlos Bica. Fica já marcado para 2021!” Ele tem sempre um dia em que há um bocadinho mais de budget e mistura projectos portugueses com estrangeiros. Ficou tudo fechado e eu fiquei com um ano para pensar nisso. “Vou aproveitar para chamar algum nome mais conhecido, vou escrever música a pensar nisso e vou gravar esse projecto.” Assim foi. Convidei o Cuong Vu: “Olha, tenho este concerto, vou escrever música nova e gostava de contar contigo.” Ele ouviu as minhas coisas, conhecia os outros músicos — o Benoît Delbecq e o Bruno Chevillon — e disse, “vamos a isso.” Entretanto, há o COVID-19 em 2020 e, em 2021, quando lá íamos, o gajo, para vir dos Estados Unidos, tinha de fazer 15 dias de quarentena… Ele disse-me que estava fora de hipótese. Estava tudo mais ou menos fechado, foi naquele Verão em que já havia concertos. Ele disse-me: “Peço imensa desculpa. Sei que está tudo anunciado comigo, mas eu não posso ir, porque não quero correr o risco de ficar 15 dias…” Primeiro, era obrigatório ficar 15 dias cá, antes de sair do hotel — e tinha de ser eu a pagar isso tudo, não é? — e no regresso, ele tinha medo de também ficar preso numa cidade qualquer por mais 15 dias. Então disse que não vinha. O que é que eu fiz? Tinha a música toda escrita a pensar nele e fiz os concertos com o Justin Stanton, trompetista dos Snarky Puppy, que é namorado da Gisela João e estava cá em Portugal. Tinha-o conhecido há pouco tempo e, inclusive, tinha-lhe dito que ia ter esses dois concertos, mas que não sabia ao certo da situação dos voos. Ele disse-me: “Se precisares de um trompetista, vamos a isso.” Pensei, “pronto, é um nome também conhecido e de certeza que…” Na altura tinha arranjado três concertos — o Jazz Valado, outro em Espinho (no Auditório de Espinho), e no festival da Universidade de Aveiro. Claro que quando apresentamos um projecto com certos nomes e depois dizemos que aquele nome “principal” — o mais chamativo — já não vinha… Pareceu um bocadinho bluff. “Olha o Mário, que disse que vinha com este trompetista e agora já não vem.” Então tentei arranjar um nome que, se substituísse, mantivesse o interesse das pessoas. Assim foi. Veio o Justin. Os concertos foram muito fixes, o Justin é alto músico, mas não era a estética que eu estava à procura. Eu escrevi música a pensar em cada um daqueles músicos e o som do Cuong Vu é muito difícil de substituir. Acabei por adiar esse projecto por mais um ano. No ano passado, apareceu-me o Jorge Moniz, que organiza o festival Jazz no Parque, no Barreiro, e perguntou-me se eu queria ir lá apresentar o projecto. Desse-lhe: “Claro que sim!” Fui tentar arranjar mais dois concertos e finalmente liguei ao Cuong, “é desta!” Ele lá veio em 2022, gravámos e o disco está cá fora agora. Acabou por acontecer tudo naturalmente, como tinha de ser, e cá está o disco. Agora apresentei-o e foi bom ter sido no festival da Antena 2. Assim tive a promoção da Antena 2 juntamente com o concerto.

É curioso, porque às vezes não temos ideia da quantidade de histórias, acidentes, desvios e obstáculos que existem entre ouvirmos o objecto e o que teve de acontecer para que ele se tornasse real.

Está quase fora da validade [risos].

Falando em termos muito práticos — e tendo tu essa história de te teres, de certa forma, enamorado do estilo e da arte do Cuong Vu: como é que se passa de estar numa plateia a ver um músico internacional que se admira para, de repente, estar no estúdio com ele? Vais ao Instagram e mandas uma mensagem? Pedes o número de telefone a um amigo que o conhece?

Hoje em dia o processo normal é esse, vais ao Instagram ou ao Facebook e contactas. Se ele não responder, tentas procurar um e-mail na página dele. Mas o mais certo é não obteres qualquer tipo de resposta. O que aconteceu é que há um baterista holandês que eu sabia que já tinha tocado com ele e a quem, por sinal, já tinha comprado uma peça de uma bateria — faço colecção de baterias antigas. Eu fui ver quem ele era e vi que ele tinha tocado com o Cuong Vu. Pensei, “tenho aqui uma…” Escrevi-lhe, a esse baterista holandês: “Olá, sou o Mário. Comprei-te um instrumento uma vez. Queria convidar o Cuong para vir cá. Podes confirmar-me qual a melhor forma de o contactar? Sabes qual é o e-mail?” Ele deu-me, efectivamente, um e-mail que nem é do Cuong, mas sim de uma associação que ele tem. Escrevi-lhe e ele respondeu-me logo. É engraçado porque a primeira vez que toquei com um músico assim, convidado, foi para o meu projecto que se chamava Homo Sapiens, de 2010, feito para a Casa da Música. Eles faziam uns ciclos de… Acho que lhes chamavam Novos Valores do Jazz. Na altura, tinham um cachê de mil euros para um quarteto. Claro que para um quarteto português, ganhar 250 euros cada um, “’tá feito!” Na altura, pensei, “Em vez de ir com os meus colegas da zona, da ESMAE — que é o que toda a gente faz — gostava de convidar um músico de fora. Nessa altura convidei o Emile Parisien, com quem tenho vindo a tocar, já depois disso. Pensei, “Vou dar-lhe o meu cachê. O meu e o dele, para as viagens, já dá mais vontade de vir [risos].” Conheci-o pelo MySpace, que é uma coisa que acho que já nem existe. Às vezes, a falar com ele, “Epá, eu conheci-te — eu convidei-te — pelo MySpace!” Hoje em dia é muito mais fácil.

Com o Cuong, quando me disse que sim, disse que conhecia também os outros músicos. Eu expliquei-lhe logo as condições, quem eu era e quem não era, as datas. Consegui juntar aqui as gravações com os concertos. E lá está, ele vem de uma viagem muito longa. Ele vem de Seattle, do outro lado, faz uma viagem de 20 horas. Se fosse só para fazer uma gravação de dois dias, se calhar recusava. O mais certo era dizer que não vinha — a não ser que fosse mesmo muito bem pago. Se for no meio de uma turné, em que uma pessoa tem três concertos mais dois dias de gravação, outro dia de ensaios… Cria-se aqui um ambiente para o pessoal vir passar… Não é férias, mas vem conhecer aqui o país. Agora, na segunda vez que ele veio, ele estava super-contente. E disse: “Ó Mário, não te preocupes com as condições. Tenta fazer o melhor possível musicalmente. Se pudermos tocar mais, melhor. Se antes de um concerto dos grandes tivermos um concerto mais pequeno, para rodar a banda, melhor ainda.” Eu acho que ele já se sente como um membro do grupo e não como um simples convidado. E acho que ele gostou do espírito do pessoal, tanto dos franceses como dos nossos portugueses. E uma coisa: todos eles adoram Portugal.

Ia perguntar-te exactamente isso, se a nossa condição periférica funciona neste momento… Quer dizer, nós olhamos para o resto das notícias e os estrangeiros querem todos vir para cá, o pastel de nata é o melhor do mundo, as nossas praias são incríveis e o peixe é o que é. Portanto, temos muitos factores para atrair pessoas para cá virem. Mas como é que isto funciona na música? A nossa cena musical é suficientemente reconhecida — e falo nomeadamente da cena jazz — a nível internacional para começar a atrair este tipo de talentos?

Eu acho que sim. Eu tive algumas experiências lá fora e acho que nós, portugueses, temos a tendência para pensar que os outros são bons e nós somos sempre inferiores. Hoje em dia isso já não acontece. Temos músicos nacionais ao nível dos internacionais. Se calhar, não têm tanto reconhecimento porque nós estamos no extremo da Europa. Um músico em França toca na Europa inteira porque facilmente apanha um comboio em Paris e está a duas horas de Berlim, de Amsterdão… Por 50 euros de comboio vai a qualquer sítio de tocar. Nós, em Portugal, sempre tivemos mais dificuldade em nos “internacionalizarmos”. Acho que a questão musical não está em causa. Se a malta de fora não vem tocar com os músicos portugueses, não é por serem inferiores, diria eu. Se nós, como músicos, tivermos alguma coisa de original para dizer e para mostrar, eles gostam — qualquer músico se sente atraído por isso. Acho que gostam de cá vir por isso. Obviamente, também gostam muito da nossa comida, do nosso país e de nós como pessoas. Se isso os faz sentir bem, é uma ajuda para eles cá virem e de dizerem, “Não te preocupes com as condições. Podem não ser as melhores, mas nós adoramos ir aí, queremos estar aí contigo a tocar a tua música.” Isso, para mim, facilita bastante o processo de me juntar com eles.

Tu compuseste estas peças com estas pessoas na cabeça — escolheste primeiro a equipa e só depois foste à táctica, digamos assim. Como é que é esse processo? Tu és baterista e já me disseste que o teu primeiro instrumento até foi o trompete. Qual é o teu método de composição e em que instrumentos é que compões? E como é que essas composições chegam aos teus convidados? É por pautas ou gravações?

Eu uso o método tradicional — escrevo as composições em papel, na folha. Tenho um piano e, de forma muito rudimentar, chego lá. Neste disco, grande parte das composições foram feitas ao trompete. Queria que fosse uma coisa natural para o trompetista. Se nós não dominarmos os instrumentos para os quais estamos a compor… Esta é uma coisa sobre a qual falo muitas vezes com o Carlos Azevedo, pianista de Mazam. Ser compositor hoje em dia… É muito fácil abrirmos o computador, ir ao Sibelius, escrever para as vozes todas e ouvirmos o que está a tocar. Não é como antigamente, quando os músicos tinham de estar a ouvir e a compor. Muitas vezes acontece nós não dominarmos o instrumento para o qual estamos a escrever. Eu era incapaz de escrever para guitarra porque não sei fazer um acorde de guitarra — não faço ideia de onde se metem os dedos. Por isso, ao escrever melodia, nunca sei se vai ser fácil ou difícil [de executar]. Se for no piano, por muito lento que seja, eu consigo perceber — “Isto é possível. Isto não.” No trompete é fácil e fluido eu perceber: “Isto para mim é difícil, mas para ele é fácil.” Ou “isto é impossível.” Ou “esta posição [dos dedos] não é tão fácil de fazer, para estas notas.” Fui adaptando um bocadinho as melodias que me surgem. A minha forma de compor é muito rudimentar, no sentido em que posso estar a conduzir e vem-me uma melodia à cabeça, meto logo o telemóvel a gravar e registo a ideia. Depois tento desenvolver um bocadinho a ideia e, às vezes, fujo um bocado da ideia original, depois tenho de voltar atras. Mas escrevo essa ideia — normalmente é uma melodia ou uma linha de baixo — e começo a acrescentar layers, outras partes, em cima daquilo. “Olha, aqui ficava bem uma harmonia.” E escrevo uma harmonia nota a nota, não escrevo com cifra, como o pessoal do jazz. Depois vou tentando abrilhantar aquilo. Tento usar as técnicas de composição que aprendi – andar nas escolas tem essa vantagem. Técnicas como desenvolver a melodia, enriquecer a harmonia, saber o que posso usar dali. A partir daí é que começo a passar para o papel, por escrito. Mas começa sempre numa ideia que me surge, posso estar a assobiar uma ideia ou a pensar num ritmo qualquer que ouço. É na parte da orquestração, do arranjo, que eu adapto a cada um deles. “Esta parte vai ficar bem com o Benoît a fazer uns acordes à maneira dele.” Tento sempre trazer aquilo que eles são para esta música. Por isso é que digo que componho esta música a pensar neles. Ela é sempre trabalhada a pensar no resultado final.

E porque os conheces tão bem e sabes que caminhos eles podem percorrer, deixas muitos espaços em aberto para a inventividade deles?

Claro. Os meus temas nunca são como se fossem standards de jazz — “Está aqui o tema. Agora vamos improvisar sobre o tema e voltamos ao tema no final.” Nunca faço as coisas nessa estrutura, embora exista sempre uma estrutura — não é “vamos começar e logo se vê.” Ou seja, há uma melodia inicial, que depois pode passar para outra secção, onde sei que vai solar aquele músico. Mas o solo dessa pessoa tem de ser direccionado para deixar brilhar o outro, que vai acabar naquela parte que está escrita e vai dar continuidade para a parte seguinte. Há sempre coisas a acontecer e a arquitectura da composição está toda pensada, mas há sempre muitos espaços e eu gosto de deixar cadências, como na música clássica. “Há este momento aqui, em que vai ficar só o Bruno Chevillon no contrabaixo.” E ele tem espaço para fazer o que quiser, sabendo que vai ter de terminar naquela secção ou deixar aquela deixa na melodia para nós entrarmos a seguir com a parte escrita. Há muita flexibilidade e acho que essa é a grande vantagem — se não, este projecto não soava ao que soa. Se fosse tudo meu… Eu só tenho uma quota de 25% neste projecto, porque somos quatro e cada um contribui com 25%.

É uma sociedade.

Sem dúvida! E tem de ser. Normalmente é sempre assim, por muito que se diga, principalmente no jazz, que há um líder. Há uma pessoa que escreve os temas, mas nunca seria o projecto que é se não fossem os músicos que estão lá a “interpretar” – porque eles não estão a interpretar, estão a criar; qualquer músico de jazz está sempre a criar.



Já me falaste um bocadinho do Cuong Vu. Fala-me agora do Bruno e do Benoît. Qual é a tua história com eles? Vocês já se tinham cruzado…

O Benoît Delbecq conheci no meu primeiro álbum, Oxy Patina. A história foi exactamente a mesma: eu conhecia o trabalho dele, os discos dele, e convidei-o para um concerto. O Oxy Patina foi gravado em Viana do Castelo, no Teatro Municipal Sá de Miranda. Tinha tido o convite para ir la fazer um concerto e pensei, “Vou convidar dois músicos de fora, ficamos dois dias a ensaiar, vou escrever música a pensar neles. Se o resultado for fixe, edito um disco. Se não for, faço o concerto.” Assim foi. Convidei o Benoît Delbecq e o Marc Ducret, um guitarrista também francês. Atirei-me de cabeça. Era o meu primeiro disco e primeiro projecto com malta de fora. Há sempre muita pressão, porque tu não sabes o que vem do lado de lá. Pode ser um gajo porreiro que está disposto a tocar a tua música e a experimentar, mas também pode ser alguém que chega lá e: “Mário, o que é que queres?” E eu: “Se calhar, quero um bocadinho da tua cena.” “Não. Diz-me o que é que queres.” De repente, ficas ali num beco sem saída com músicos respeitados e com bastante experiência. Eu era — e sou, em relação a eles — um jovem… Eles têm idade para serem meus pais e estou sempre a brincar com isso [risos]. Então é sempre um momento de surpresa, porque tu nunca sabes o que é que vem lá. Essa primeira experiência foi espectacular, correu super-bem. Eles gostaram da música, deram o contributo deles, deram sugestões. Tanto que, ao fim de dois dias de ensaios — e gravei esses dois dias — gravámos o concerto ao vivo e ficou o Oxy Patina. Gostei do resultado e pensei, “Vou editar o disco.” Editei e, sem estar à espera, foi muito bem recebido. Foi o Disco do Ano na Jazz.pt e teve críticas lá fora. Reflectiu-se em alguns concertos, não muitos, mas já sabemos que é sempre difícil tocar muito, há muita gente e cada vez há mais projectos. Depois a questão geográfica — se vais tocar ao Porto, já não podes ir tocar a Espinho; se vais ao Seixal, já não podes tocar em Lisboa. Isto reduz os concertos a três por ano — ou seis, se correr bem. Foi assim que conheci o Benoît Delbecq. O Marc Ducret, vi um concerto dele em Paris e sempre o quis convidar. Gostava da abordagem dele, única, na guitarra rítmica, com um som sujo. Bateria e guitarra é sempre aquele duo que dá muita energia. Eu gosto disso. Tanto gosto de tocar baixinho, bonito, como também gosto de… Quando é para partir, é para partir! [Risos] Então, ele aceitou e veio. Gravámos o disco e quando apareceram os primeiros concertos ele não os podia fazer devido a uma situação pessoal, tinha a mãe doente e precisou de sair de Paris para ir viver com ela. Ele disse que não estava a aceitar tocar com outras pessoas e só dava concertos de projectos dele. Pensei noutra solução para o substituir. Já tinha tocado com o Bruno Chevillon e pensei: “Não vou arranjar um guitarrista como o Marc, porque ele é muito próprio. Para o disco foi porreiro, mas se calhar, para os concertos, ter um contrabaixo não é pior e sempre dá um bocadinho mais de peso à banda, embora seja o trio tradicional de piano, contrabaixo e bateria.” Assim foi. Convidei-o para fazer o concerto de lançamento do Oxy Patina e acabámos por ficar com esse trio para o resto das apresentações do disco. Agora acrescentei o Cuong Vu a esse trio. O trio em si já está rodado e eu sei o que cada um contribui para a música. Foi só mesmo acrescentar o Cuong ao projecto.

Mencionaste aí uma coisa que está ligada com uma pergunta anterior, do quão atractivo é o nosso país para um músico internacional trabalhar. Temos esta dimensão algo reduzida que, às vezes, acaba por nos esmagar por várias coisas. A nossa escala é muito contida. Tu sentes isso, que para um músico, sobretudo na tua área, ter uma perspectiva de carreira internacional é fundamental para se poder sobreviver? Quantos concertos é que tu dás por ano?

Se não houver carreira internacional, é impossível sobreviver como músico em Portugal. Quanto a isso não tenho dúvida nenhuma. Quando eu digo “ser músico”, é ser músico a 100%, não é dar aulas e tocar de vez em quando — isso é ser-se um professor que, por acaso, também é músico. Ser músico profissional é eu estar o dia todo em casa a tocar bateria, a estudar, e depois tocar ao fim-de-semana. Felizmente consigo manter isso, porque trabalhei com a Ana Moura, que é uma fadista com quem fazia 100 concertos por ano. Assim é possível ser-se músico profissional. Agora, na área do jazz… Eu não sou músico a tempo inteiro por ser músico de jazz. É uma realidade que acho que nem vale a pena falar dela. Mas se formos a ver bem todos os músicos em Portugal… O jazz é uma área muito complicada. Sempre o foi e é cada vez mais. Porquê? Porque há muitos músicos, muitos CDs a sair — tu, que os recebes a toda a hora, deves de saber isso. Já não é os Discos do Ano, perdes a conta. Já é os Discos do Trimestre ou Discos do Mês. E qualquer dia já é os Discos da Semana — porque esta semana sai o meu disco, mas na outra já sai o disco de outra pessoa super-interessante. De repente, há muita coisa a acontecer e é quase impossível… Eu ponho-me no lugar dos programadores e dos directores dos teatros: é quase impossível conhecer toda a gente e até ter competência para avaliar os projectos todos, porque há muitos projectos e muito diferentes. É muito difícil conseguirmos tocar muito, porque é como dizia há bocado: se vais a um sitio tocar, depois já não consegues ir à cidade “vizinha” – e quando digo “vizinha”, digo a 100 quilómetros à volta. Em Portugal, só podes ir a três sítios [risos]. Eu tragos estes músicos a Portugal e, na melhor das hipóteses, só consigo fazer quatro concertos — um no Norte, um no Centro, um em Lisboa e outro no Algarve. Quatro concertos é o ideal da turné. Mas é complicado, claro. Eu já fico contente de poder fazer três concertos com eles. Agora estou a tentar organizar mais alguns concertos, estou a trabalhar nisso. Mas se não for a carreira internacional… Os franceses, por exemplo, têm 4500 festivais de jazz por ano. Fazendo as contas, dá para eles tocarem não sei quantas vezes por ano e só depois voltam a repetir os mesmos festivais. Quando tocava com projectos franceses — e ainda toco, às vezes — via que eles têm muitos festivais, alguns deles muito pequenos, como nós temos aqui as comissões de festas, das romarias — a minha mãe faz parte de uma dessas associações, em que se angaria dinheiro para a festinha da capela local. Eles lá fazem isso para o jazz. Organizam jantares, festas e peditórios o ano todo, têm 50 pessoas voluntárias a trabalhar para o festival. O que eles querem é ter aquela semana com concertos de jazz, receber lá os músicos, toda a gente a cozinhar e a trabalhar no bar. Aquilo é a romaria deles. Há essa diferença cultural que é efectivamente muito grande e permite ter mais concertos. Já na Alemanha, há um circuito mais “elitista” — de auditórios, teatros, etc. — que também é um mercado gigante. Como eu dizia há pouco, está ali no centro da Europa e é muito fácil para eles se movimentarem, porque estão a uma ou duas horas de qualquer lado por 40 euros. 40 euros para estares a uma hora ou duas de distância de outras cidades europeias faz diferença. Nós não. Na melhor das hipóteses, estamos a 150 euros, que é um voo low cost, mas se tiver de levar os pratos já são mais 50 euros de mala. De repente, já é preciso um budget um bocadinho mais alargado para tocar na Europa. Claro que o facto de estarmos aqui, geograficamente, encostadinhos ao oceano, para chegarmos ao resto da Europa temos de saltar aqui pelo nossos vizinhos, Espanha. E Espanha não é um marcado jazzístico. Ainda noutro dia estava a falar com os franceses, sobre perspectivas de futuro e o que é que se deveria de procurar para concertos, e o Benoît Delbecq estava a dizer-me que nunca tocou em Espanha. Estamos a falar de um dos músicos mais respeitados em França, com uma carreira de 40 anos e que nunca tocou em Espanha.

Que é mesmo ali ao lado…

Isto é completamente surreal. Espanha tem meia dúzia de festivais conhecidos — em San Sebastian, Madrid, Barcelona — e acaba por ficar um bocadinho por ali. Não sei se é falta de contactos ou se Espanha trabalha um bocadinho como o Brasil, que por si só já é um mercado suficientemente grande e auto-suficiente — não precisam de importar nem de exportar. Não sei se serão os espanhóis que não gostam de jazz. Pronto. Mas é engraçado isso.

Perante o cenário que desenhas, é um bocado um paradoxo que, sendo o nosso mercado tão curto, tenhamos instituições de ensino em Aveiro, Porto, Lisboa, Évora… Há neste momento formação de jazz numa série de academias e outras entidades mais ou menos formais. A quantidade de músicos de jazz que estamos a formar é muito superior àquilo nque a nossa cena realmente suporta, não é?

É, sem dúvida. É preciso sorte. Se calhar, na prática, tens muitas escolas – só universidades há quatro ou cinco. Os conservatórios, hoje em dia, já quase todos têm um curso de jazz. O que é que acontece? Acho que toda a gente tem noção de que nem todos aqueles alunos vão ser músicos profissionais. Eu estudei numa escola profissional de música, em Viana do Castelo, onde estudei trompete e percussão clássica, e só uma percentagem muito curta dos alunos da minha turma é que são músicos profissionais hoje em dia. Uns estão a tocar numa orquestra sinfónica, outros estão a dar aulas e há alguns que até deixaram a música. Isso sempre aconteceu. A taxa de sucesso de uma turma de conservatório… Se calhar, numa turma de 20, há um que consegue entrar numa orquestra sinfónica. No jazz vai acontecer a mesma coisa. Já sabemos que, numa turma de 20 alunos, não vão ser todos músicos de jazz. Uns vão ser apaixonados do jazz, outros, se calhar, ficam mais frustrados e nunca mais querem ouvir jazz na vida. No final da história, com todos os músicos que estudam jazz, se passados 10 ou 20 anos conseguirmos tirar 20 ou 30, que realmente fizeram carreira e gravaram discos, já é um resultado muito bom, porque, na verdade, está a ir ao encontro do que a coisa era antes de haver escolas, que é: quem tinha de ser músico conseguiu ser músico. Eu não acho que são as escolas que fazem um artista ser artista. Pelo contrário: pode haver alguém que queria ser artista e a escola foi castradora. Estou a dizer-te isto e fiz o percurso académico todo. Sou completamente a favor das escolas. Mas às vezes, as escolas, do ponto-de-vista artístico, dão-nos a técnica e não nos dão, por vezes, o conceito. São castradores porque nos dizem: “Para seres músico, tens de fazer isto.” E não! Para mim, aquilo até pode nem ser natural – sofri isso na pele. Tipo, se eu tivesse seguido os exemplos de quando estudei na ESMAE, em que me diziam o que é que era ser músico e baterista, se calhar não estava onde estou hoje. Era simplesmente mais um. O facto de querer ter outra visão e, se calhar, de não me sentir confortável a tocar de uma maneira e procurar outros músicos de outra área – dentro do jazz, porque há várias vertentes do jazz — fez com que eu, hoje em dia, fizesse os meus projectos e, se calhar, sou um bocadinho diferente dos meus outros colegas que fizeram um percurso exactamente igual a mim. Por isso, acho que a escola é fundamental para dar as partes técnicas. Mas depois é preciso trabalhar a parte estética, de direcção artística e gestão de carreira. E quem não anda nas escolas, até pode ter isso, mas depois não tem a parte técnica. Isto é uma balança que eu acho necessária num artista qualquer – até mesmo num pintor. Posso saber muito sobre pintura, gosto muito de pintura, mas não sei pegar num pincel porque nunca dominei as técnicas desde o início — não sei fazer um retrato, uma linha… Eu posso ter muito conhecimento sobre pintura, mas se fizer um quadro, ele se calhar não vai ser aceite, porque não tem o domínio técnico da pintura. Na música é igual. Eu tenho muitos colegas que são muito bons tecnicamente, mas não têm o conceito e acabam por não ser interessantes — são só músicos técnicos. E há o contrário, músicos que têm o conceito e que sabem muito sobre música, mas que não têm a componente técnica. Acho que é a junção destes dois mundos que fazem os grandes mestres que conhecemos — Pat Metheny, Herbie Hancock, Keith Jarrett… Todos esses grandes músicos têm as duas coisas. Acho que é esse o caminho que eu tenho vindo a trilhar e no qual quero continuar a trabalhar. Quero ser um bom músico e não apenas um baterista com uma técnica do caraças. Tem de haver esse 50/50.

Uma última pergunta antes do Zoom se desligar: até ao final do ano, tens mais alguma coisa nos planos que vá para além deste disco?

Eu fui convidado para fazer uma residência num festival de jazz, que vai ser um projecto muito interessante, com o Carlos Bica e o Bruno Pernadas. É um trio novo. Não posso dizer onde é, mas será uma residência num festival de jazz e vai ser apresentado cá, em Portugal. Depois tenho um projecto em mente, que até já divulguei — estava confirmado, mas desconfirmou-se — só que está neste momento em stand by. Seria eu fazer este meu quarteto mais uma orquestra sinfónica. Um concerto em grande. Quero adaptar e fazer arranjos deste quarteto, tanto deste como da música do meu outro disco. Basicamente, é um concerto meu com orquestra sinfónica, em que toco principalmente este repertório novo, mas também alguns temas do Oxy Patina. Um concerto grande com uma formação alargada. Vamos ver se vai acontecer. Eu espero que sim, mas estamos dependentes de decisões.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos