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Fotografia: Bruno Simão/Culturgest
Publicado a: 02/06/2022

Atrás do vidro.

Maria Reis na Culturgest: nesta data querida

Fotografia: Bruno Simão/Culturgest
Publicado a: 02/06/2022

Um mi, um fá sustenido, um mi, um lá: o novo disco de Maria Reis começa pelos parabéns. As notas estão lá, nos entrefolhos da distorção; o feedback harmoniza-se, doce tipo Psychocandy, para despertar um “Lobisomem”. Não será este o motivo, mas tem piada imaginar que fosse uma auto-celebração — prevenção no caso de, eventualmente, secar a torneira da aclamação. Hipótese facilmente revogada: Benefício da Dúvida arrecadou cinco estrelas de todos os periódicos por onde passou (Expresso, Ípsilon e Time Out).

Ainda assim, Maria Reis é sempre a primeira a assumir-se fã incondicional de Maria Reis. “Eu gosto de tudo o que eu faço, não sei se…”, confessou, mais encafifada do que o costume, nessa instituição da SIC Radical a que chamamos Curto Circuito. Um par de semanas depois, foi dar a uma instituição menos estrepitosa, onde a verdadeira irreverência é ficar de pé: a Culturgest. Bis tardio, depois do concerto que lá levou em Fevereiro de 2020, para apresentar Chove na Sala, Água nos Olhos, sucessor do entretanto esquecido EP Maria. Foi o exórdio depois do sussurro: uma prova de fogo no rescaldo das Pega Monstro (duo punk formado com a irmã Júlia Reis), uma ode à incontinência emocional que todos devíamos ter. A graxa promocional tem razão: foi uma comunhão inesperada, um adeus inadvertido a uma vida pré-COVID.

Nunca saberemos se A Flor da Urtiga, lançado em Abril de 2021, teria tido festa na Culturgest. Saltamos diretamente para Benefício da Dúvida, terceiro episódio desta saga de discos superlativos — não os tratem por EP, Maria já nos disse que são álbuns — e o menos polido até agora. Faz-se da viola campaniça a raspar, a garganta a arranhar e o pandeiro a ondular nas mãos de Júlia: destroços de pop cristalina, um grande paroxismo que umas vezes é êxtase e outras é ansiedade. Roça o folk e a medula óssea é punk, um convite fácil para pensar nas Pega Monstro, mas isso esgota-se na noise pop de “Lobisomem” — logo aí reconhecemos as diferenças no manuseamento das harmonias. Mantém-se a urgência, mas a saturação ganha outro comprimento de onda; o tal êxtase permanece físico, mas mais intravenoso, mental, agonizante.

Ao vivo, Maria tende a reproduzir essa adrenalina, de pleno pulmão e dedos entre trastes. Um registo mínimo que, no caso dos concertos em torno d’A Flor da Urtiga (Festival Aciprestes, MIL…), transportava um disco cuidado para uma zona de perigo; no caso de Benefício da Dúvida, estipula a maior fidelidade possível à gravação. Assim a encontrámos em Ourém, durante a tour Noite Fetra & Amigos, na companhia dos seus colegas na Cafetra Discos. A Culturgest são outros quinhentos — o que é, desde logo, comprovado pela disposição em palco e pelo desenho de luz (de Joana Mário). O pontapé de partida vem do “Lobisomem”, depilado do ruído que vestia em estúdio e divorciado da guitarra elétrica, para invocar outra força motriz — o “coro informal”, formado por Ela Li, Leonor Arnaut, Nëss, Puçanga, Arianna Casellas e Sallim, todes de missal na mão. “Ão, ão, ão”, começaram, sob a batuta de Júlia, enquanto Maria preparava o refrão em estilo quase pianíssimo.



Se a licantropia foi domesticada, o resto não se traduziu num concerto calculista. Desembaraçar não é higienizar, mas propõe um novo Benefício de Dúvida: a música que era labareda, a pedir que brinquemos com ela, parece tornar-se um espectáculo atrás de vidro. O coro empurra “Virgem Maria” — pura malha de viagem na sua essência, na estrada, à procura da moral no fim da fábula — para algo mais celestial, é verdade. Eu sou olhado odiosamente pelo pessoal da minha fila, por me abanar demasiado durante “Benefício da Dúvida”, também é verdade. Lá em cima, todavia, há outro processo a acontecer. Não se limita a uma sofisticação ou ao constrangimento de se estar num sítio sério. A cantautora diz preferir espaços pequenos, o que é justo e, provavelmente, mais consentâneo com o disco que temos em mãos: exigem atenção, fabricam intimidade com estranhos. 

Na Culturgest, abre-se outra bolha, onde muitos dos lugares preenchidos já se terão envolvido com a obra de Maria. Não há copos e parlatório, não há um público a conquistar, cai o registo defensivo e cabisbaixo com que Maria protege a sua arte, a sua pulsão, aquilo para que foi posta no mundo. Mas as criaturas continuam lá para serem descobertas; as canções terão sempre flores para colher; as mãos sairão sempre cortadas. Só que, desta vez, há transparência total. “Pedinchar” começa numa cova, a desolação queimada da esperança: pelos tais trastes e pelas cordas vocais, sabemos que algo está para nascer. Num olhar trocado com Júlia, anuncia os acordes e o ritmo de “Desaparece”; pelo andar da carruagem, adivinhamos os arrepios e, ainda assim, enviam-nos para um abraço diferente daquele que conhecíamos. Será assim com “Tipo de Ferro”, “Olívia” e “Elefante na Sala”, lembranças de que não queremos produtos: a canção foi, é e será um processo. 

A última lembrança? “Vou tentar tocar uma da Amália que aprendi esta semana”, anunciou uma Maria feliz, em resposta às exigências de uma ovação de pé. (Não liguem ao pessoal da minha fila: a única comunicação da plateia, durante uma hora, foi em ditongos de arrepio e percussões de triunfo. Merecíamos isto.) Em 2020, o encore tinha sido “Fado D’Água Fria”, das Pega Monstro; em 2022, é “Quando Se Gosta de Alguém”. “Sente-se dentro da gente/ Ainda não percebi bem/ Ao certo o que é que se sente”. Tem muitos anos para continuar a perceber.


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