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Fotografia: Joana Fernandes
Publicado a: 03/11/2020

Halloween roxo.

Maria & DarkSunn no Lux Frágil: a ordem é para circular

Fotografia: Joana Fernandes
Publicado a: 03/11/2020

Pode um disco feito a pensar em viagens de carro, comboio, barco, metro e autocarro resultar num fim-de-semana em que existem limitações para circulação entre concelhos em Portugal? Depois daquilo a que assistimos no passado sábado, restam poucas dúvidas: funciona bastante bem e ainda demonstra um grande potencial para se expandir para lá daquela sala e do formato trio. Mas já lá vamos.

Em Junho, ainda andávamos a tirar as ilações iniciais sobre a pandemia, Maria e DarkSunn decidiram lançar uma cassete a meias, um projecto que se formou à volta de um mote: criar mais uma banda sonora para “filhos” dos subúrbios de Lisboa. É engraçado reflectir sobre isso agora: com “teletrabalho” candidato a palavra do ano de 2020, a dupla da Monster Jinx deixa-nos um pedaço de imaginação em formato sonoro que pode ter efeitos curativos para um futuro distante e assustador (que ganhou sentido de presente nos últimos meses…) em que a ideia de ir até ao centro perde força e a Internet passa a ser o verdadeiro ponto central, onde quase tudo se passa. Dramático, é verdade, mas por esta altura existem realidades mais tenebrosas que esta hipótese…

Posto tudo isto, a chegada ao Lux, em Lisboa, assemelha-se a uma espécie de realidade alternativa em que só algumas pessoas merecem a oportunidade de assistir in loco a um espectáculo. No entanto, não há nada de elitista (ou de selectivo) nesta bolha: é mais uma questão de vontade e disponibilidade para se entrar numa viagem que tem tanto de futuro (imaginado pela plural e futurista beat scene de LA, digamos) como de passado (alicerçado em projectos fundacionais como Endtroducing… de DJ Shadow, por exemplo).

Em palco, um cenário simples com representação humana de diferentes gerações do Monstro Roxo: Bruno Dias, à esquerda, e David Almeida, à direita, nas máquinas e Vasco Completo, no centro, na guitarra. E o autor de Cor e Forma assume a liderança na hora de controlar as mudanças ou continuidades nas versões live dos temas da split tape, agitando braços e falando para os seus colegas quando sente que é necessário. Se andam a dormir no produtor de Alverca, talvez seja melhor acordarem rápido: não só produz beats de elevado calibre (e underbangers como “Caixa Negra“) como ainda tem atitude de líder — duas coisas que dariam jeito a muitos artistas quando fosse altura de entrar num estúdio para criar e gravar um trabalho.

Som de imersão a pedir silêncio em certos momentos e a pedir exaltação noutros, este Crooked N Grinded é tão multifacetado quanto consistente, e é tão filho do hip hop mais tradicional como da música electrónica mais arrítmica — com delírios drum’n’bass ao vivo em “Evil Demon Has Me Trippin”, por exemplo. O sistema de som da sala lisboeta ajudou na percepção das drums musculadas do veterano de Almada (“Mandalorian Death Touch” é um autêntico mimo nesse sentido…) e das texturas cinematográficas de Maria (e as suas guitarras que choram em cima de breaks ou as suas vibrações Flumeish circa-2013, mais concretamente de “Drop The Game”, com “A Oliveira da Estação”). Tudo isto com direito a um guitarrismo discreto e muito mais preocupado em acrescentar camadas do que em sobressair de Vasco Completo, o mais recente aluno da turma roxa.

Não esquecendo a ideia começada no primeiro parágrafo, é notável a envergadura visual da música que Maria & DarkSunn criaram para este projecto, imaginando-se facilmente uma banda maior (com mais músicos) para dar outra expansividade aos instrumentais e levá-la para outro tipo de palcos: dos maiores aos mais pequenos, do clubbing aos festivais de cinema (realizadores portugueses de cinema de autor, não se façam rogados…), dá a ideia que as limitações, neste momento, são puramente pandémicas.

Perante uma sala bem composta, ainda para mais tendo em contas as condições do fim-de-semana em que aconteceu, é espantoso — para não dizer triste — que ainda se assista a algum desprezo por alguns elementos da plateia pelo momento de se ver um espectáculo ao vivo. Imaginem ter que se pedir a adultos, em 2020, numa época em que a vida cultural atravessa valentes dificuldades para subsistir, para falarem mais baixo num concerto que pagaram para assistir. Não precisam de imaginar, na verdade, porque aconteceu mesmo. Um verdadeiro bruxedo em dia de bruxas.

Praticar o escapismo parece cada vez mais uma solução obrigatória para manter o equilíbrio em alturas delicadas como esta e as faixas esculpidas por estes dois beatmakers servem esse propósito: trazer a lembrança de tempos diferentes onde uma das maiores preocupações seria a escolha das canções para ocupar o tempo de viagem. Enquanto não voltamos aí, aqueles que marcaram presença no Lux podem sempre fechar os olhos e regressar à actuação de sábado. Para os outros, basta irem até ao Bandcamp e carregarem no play. No geral, a mensagem é a mesma: sentemo-nos e circulemos com segurança (dentro das nossas próprias cabeças, se possível).


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