“One fine morning I woke up early / Find the fascist at my door / Oh, partigiano, please take me with you / Bella ciao, bella ciao / goodbye beautiful”. Versos da bela canção de protesto que Marc Ribot inscreveu um certo dia em Songs of Resistance (2018), cantada com Tom Waits. Comece-se pelo final do concerto, como um fim de princípio. Data única em Portugal de Ribot, no Theatro Gil Vicente, inserido no programa anual do Jazz ao Largo em Barcelos. Dia 14 de Maio, teria sido imperdoável não estarmos presentes. Ribot que nesse álbum fez prova de protesto e resistência — a peste de nome Trump tinha alcançado o poder nos EUA —, porque no protestar haverá sempre armas de combate. A peste voltou e Ribot volta a esse cancioneiro. Desfecho do concerto assim mesmo, porque a indiferença e resignação estão excluídas do seu léxico (e do nosso!).
As marcas do tempo são visíveis a olho nu. Uma guitarra acústica de bordos desgastados e de um tampo em acabamento estilo raios de sol. Uma das primeiras J-45 da Gibson, que soa ainda melhor assim, envelhecida. Um guitarrista curvado pelos anos de serviço na música: “Sinto-me reformado mas continuo a tocar e a compor, o Tom Waits esse, está no dia-a-dia dedicado à sua horta”, como deixou escapar em conversa à mesa do jantar, com muita observação do cenário politico actual e dum passado feito de esquecimentos que permitem a ameaça de erros terríveis de novo. E essa sua América aqui tão perto… O militante guitarrista Ribot, que é visita regular, lembra-se do primeiro concerto em Portugal — Lisboa em 1982, com Wilson Pickett e “ainda havia no ar essa frescura de liberdade, da revolução, ou melhor, o que não foi de todo uma revolução”. Estamos em sintonia de análise. Mas os tempos voltam a ser urgentes, por isso mesmo está em palco. Como dizia em entrevista ao ReB, quando afirmava só tocar em situações de urgência — volta a ser o caso.
Este programa do jazz em Barcelos trouxe antes de Ribot o duo de Sylvie Courvoisier (piano) e Mary Halvorson (guitarra) em Abril. Ribot esteve em muitos grupos, alguns seguem activos, como Ceramic Dog, ou como The Young Philadelphians, onde conta precisamente com a guitarra de Halvorson — bom presságio este pela sucessão de músicos neste palco, neste Jazz ao Largo. Ribot tinha pedido um palco desnudado, com “nada de luzes dramáticas, mas sem escuridão”. Uma presença directa ao essencial, um som preciso nos detalhes, mas sem artifícios. Crueza em linha directa com este mago guitarrista. Um tocar despretensioso no modo virtuoso — mas que o é. Um dedilhar que explora as cordas, que parece nem saber o que fazer — e nem o sabe como afirma mais adiante. Tudo começa numa fricção das cordas entre um par de silêncios. Há lugar à tosse e aos harmónicos, tudo honesto e real. Parte para uma suite feita de muitas outras músicas de outros. Ribot mostra-se anacrónico no seu guitarrismo. Uma míriade de temas colados em sucessão, onde se destaca um melancólico “Amen” de Coltrane (1971). Estilisticamente, sabe-se dele que vai do experimentalismo ao dedilhar quase barroco de uma vihuela. Traz a música de outras instrumentações à sua idiosincrasia. É disso exemplo o tema de Louis Armstrong, como se fosse para guitarra.
Em solo de guitarra acústica amiúde feito de texturas, sem perder o caudal de récita ao luar, como que no campo à beira de uma fogueira — lugar de embalo. A sua voz cantou um par de vezes. A primeira para se ligar a umas quantas palavras que em cada estrofe surgiam: “We are soldiers in the army / we’ve got to fight although we have to cry”. Seria um primeiro mote de acercar-se ao sentido de urgência da música, do combate. Umas das duas canções que trouxe e que estão inscritas em Songs of Resistance 1942-2018 é precisamente a que abre esse relevante e pertinente álbum. A sua voz pela primeira vez exposta num novo disco, a estrear está Map of a Blue City (New West Records) — o primeiro disco onde alia a voz à guitarra do primeiro ao último tema. Um conjunto de canções escritas em 30 anos enquanto observador e experimentador. Mas esse registo não fez parte do alinhamento, foi contudo uma oportunidade de deitar mão às cópias de um disco com lançamento a 23 de Maio — privilégios paralelos à música em palco.
Marcante foi a abordagem a “Nonaah”, extenso tema-título do álbum de Roscoe Mitchell. Tudo é jazz aqui, onde na guitarra de Ribot parece caber até a memória acústica do saxofone de Anthony Braxton. Depois uma dessas envolventes melodias das Antilhas, com uma peça de Frantz Casseus — considerado o primeiro guitarrista haitiano. Ribot tem um disco inteiro dedicado e esse repertório em Marc Ribot Plays Solo Guitar Works of Frantz Casseus — uma assumida reverência ao seu mestre em guitarra clássica. E volte-se ao princípio desta crónica indo directo ao final de concerto. Para que melhor se evoque, dada a urgência dos tempos, a pertinência das palavras transcritas e assim cantadas — por entre arrepios escutadas em palco:
“Oh, partigiano, please take me with you
I’m not afraid anymoreAnd if I die, oh, partigiano
Bella ciao, bella ciao, goodbye beautiful
Bury me upon that mountain
Beneath the shadow of the flowerShow all the people, the people passing
Bella ciao, bella ciao, goodbye beautiful
Show all the people, the people passing
And say, ‘oh, what a beautiful flower.’This is the flower of the partisan
Bella ciao, bella ciao, bella ciao
This is the flower of the partisan
Who died for freedomThis is the flower of the partisan
Who died for freedom”