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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/08/2025

A renovação artística a solo de um músico que não tem tido mãos a medir.

luto: “Tentei expressar em cada música e com cada pessoa que trabalhei um conjunto de pequenos e grandes fins do mundo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/08/2025

Há duas décadas, quando Fred Severo assumiu as rédeas de baixista dos Moe’s Implosion, seria-lhe complicado perceber onde a música o levaria. No entanto, duas décadas depois, aqui está ele, renovado, rejuvenescido, a assumir as rédeas do seu próprio projeto musical: luto. Pelo meio, muita coisa aconteceu. 

Com Moe’s Implosion, tornou-se parte da identidade de uma das bandas mais importantes que nasceram na Margem Sul nos últimos 20 anos. Tocou com O Bisonte, MISS TITAN, assumiu-se como produtor e multi-intrumentista, e eventualmente envolveu-se no universo do hip hop tuga. Atualmente, Fred Severo divide com Beiro o projeto de ELIS NEON, e toca ao vivo em projetos tão díspares como As Docinhas ou João Maia Ferreira.

Enquanto luto, porém, Fred encontrou uma forma de canalizar o seu melómano interior, capaz de deambular entre o rock, o jazz e a pop. Após as primeiras experimentações durante a pandemia da COVID-19, que resultaram em dois EPs, (vol.1) pés e o (vol.2) cabeça, ambos publicados em 2023, Fred passou os dois últimos anos a erguer uma nova fase para o “seu” luto. 

Se os dois EPs foram feitos por Fred sozinho no seu quarto, o seu álbum de estreia — canções para um próximo, e inevitável, fim do mundo — foi feito em colaboração com velhos e novos amigos ao jeito das bandas com que Fred cresceu a tocar. É um dos álbuns mais curiosos do ano lançados em Portugal, digno de uma longa conversa com o artista sobre os vários “fins do mundo” e a forma como foi deambulando entre vários panoramas musicais até aos dias de hoje.



É complicado falar do teu álbum sem abordar logo o título: canções para um próximo, e inevitável, fim do mundo. Serve de presságio para o que pode acontecer dado o rumo da sociedade ocidental ou é uma forma quase irónica de abordares a temática da inevitabilidade do fim?

Acho que é mais sobre a inevitabilidade do fim. O nome do disco surgiu antes de existir as canções. Depois de fazer os EPs — o (vol.1) pés e o (vol.2) cabeça —, percebi que queria fazer um disco com um conceito do início ao fim. Surgiram-me três títulos para o álbum e este foi o que me ficou mais na cabeça. Depois disso, sim. Percebi que ficou na cabeça talvez por ter visto, como toda a gente com dois dedos de testa, a direção que o mundo, a cultura, estava a tomar no último ano — que foi quando escrevi o disco. Parecia inevitável que, para já, este seria o “fim”. Portanto, acho que o título não funciona tanto como um aviso, porque sinto que as pessoas não precisam de um aviso. Funciona, então, como uma lembrança da inevitabilidade de qualquer que seja o fim.

Esse fim pode ser a morte?

Não pensei nesse fim como sendo a morte. Tentei expressar em cada música e com cada pessoa que trabalhei um conjunto de pequenos e grandes fins do mundo. Por exemplo, quando gravei a música com a Catarina Branco, tentei representar que parecia o fim do mundo não ir ao Alive porque todos os amigos estavam lá e eu fui o único a ficar cá fora [risos]. Por outro lado, o fascismo também parece o fim do mundo. São duas escalas muito diferentes, mas que representam uma pequena coleção de fins do mundo na perspetiva de muitas pessoas — os meus convidados e eu.

Sentes que o artista ainda tem capacidade de utilizar a sua voz para ampliar uma mensagem de mudança social? Ou sentes que, com a hiperindividualização, tornou-se muito complicado comunicar esse tipo de mensagens?

Quero acreditar que ainda é possível. Parte da ideia que inspirou o projeto de luto é essa. Contudo, concordo contigo que é cada vez mais difícil passar uma mensagem de mudança quando existe tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo e que te distrai muito facilmente. Há demasiada informação, demasiado conteúdo. Muitas vezes, as pessoas não querem ouvir ou preferem simplesmente ignorar porque é muito mais fácil ignorar. E falo por mim, que nem sempre estou no mood para ouvir A garota não ou Zeca Afonso, que são artistas que dizem verdades que não são propriamente muito divertidas. 

No outro dia, li um texto no AbrilAbril que falava de como o direito à cultura não era o do usufruir da cultura, mas o de participar nesse todo que é a “cultura”. Penso que isso se relaciona com o ato de fazer e ouvir música ter-se transformado, com a ajuda das plataformas de streaming, em conteúdo para ser consumido. Trazeres tanta gente para o teu disco foi uma forma de contrariares essa tendência?

Sim. E o que estás a dizer é exatamente o problema. Há tanto conteúdo que, quando ouves conteúdo revolucionário, ao “consumires” esse conteúdo, achas que estás a fazer a tua parte. E essa parte depois não se traduz em algo físico e aplicável no mundo real. Obténs a dopamina e ficas por aí. Há essas duas perspetivas. Por um lado, tens mais fácil acesso às coisas devido à quantidade de conteúdo que existe. Por outro, tudo se transformou em conteúdo. Portanto, para o meu disco, quis criar uma espécie de espaço de comunhão onde os artistas que convidei pudessem explorar os seus problemas e expressar as suas ideias em conjunto comigo. Todas as músicas que estão no disco, quando as compus, foram compostas especificamente a pensar em cada artista.

Lançaste os convites primeiro ou só os lançaste depois de teres composto as músicas?

A maior parte deles lancei depois [risos]. Só houve uma pessoa que disse que sim antes e há outra pessoa que gravou uma música, mas que não saiu por questão relacionadas com a editora. A música está acabada e deverá sair em breve. Mas maior parte das pessoas que convidei eram pessoas que conhecia e sabia que a probabilidade de dizerem que não era muito baixa. Sou muito amigo da Inóspita, da kikka masala, e do Pedro Antunes, por exemplo. Mas houve pessoas que não conhecia de lado nenhum, mas que admirava o trabalho — como a Catarina Branco. Não a conhecia, e ela foi a primeira pessoa com quem falei sobre o disco e lancei o convite. Mandei-lhe um demo, ela gostou, fomos beber um café, e gravámos. E desde aí vou sempre aos concertos dela e já gravámos mais coisas que irão sair no futuro. A mesma coisa com a Margarida Campelo. Enviei-lhe a demo, ela gostou e, por acaso, acabámos a tocar juntos num concerto d’As Docinhas [risos]. Com o João Maia Ferreira, toco com ele e foi só perguntar se ele queria gravar depois de lhe mostrar a demo: ele disse logo que sim. Foi tudo muito orgânico e acho que isso se deve a eu ter crescido muito a tocar em bandas. A minha primeira banda foram os Moe’s Implosion, que duraram dez anos. Toquei ainda com O Bisonte e tive outra banda que se chamava MISS TITAN, do qual fazia também parte a Inês Monstro.

Por acaso, ia perguntar se eras um gajo que vinha da escola do punk ou do jazz [risos]. A ouvir os EPs, havia ali uns riffs que fiquei a achar que só podiam ter sido escritos por um gajo que curtia de hardcore e pós-hardcore. Faz tudo mais sentido com esta informação.

Faz, faz. Eu ouço uma quantidade absurda de música e consumo muita arte no geral. Sejam séries, videojogos, pintura, etc. E quando te digo que oiço tudo, oiço mesmo tudo. De Chappell Roan a Turnstile. Existe muita coisa a aprender com qualquer artista e acho que umas ideias que pretendia com este projeto era preencher todas as linhas que vejo entre, por exemplo, Talking Heads e You Can’t Win, Charlie Brown, ou entre Funkadelic e a Chappell. Quero ir buscar influências a tudo o que existe entre essas linhas e juntar tudo de maneira que faça sentido. Ao vir de um contexto onde cresci a ter bandas, e particularmente bandas punk, senti, e ainda sinto, falta dessa comunhão, especialmente agora que trabalho mais como produtor. Sinto muito falta das discussões entre cinco pessoas porque acham que o refrão não está bem. Agora, já não tens muito isso. Tens a opinião de um produtor que decide 90% da canção e que depois mete um bocado dos convidados por cima. Tentei muito evitar isso. Tentei fazer com que as músicas soassem e se enquadrassem no estilo de cada um dos convidados. Foi muito essa falta de comunhão artística que me levou a ter tantos convidados no disco, mas acho que é assim que o projeto de luto vai continuar. Pelo menos, no próximo disco, que já está a ser gravado, vai ser assim.

De continuar a convidar pessoas?

Sim, até porque assim uma canção é feita a partir de pontos de vistas diferentes. No caso da “castigo”, com a 701, estivemos dois dias em estúdio a construir a música de raiz a partir de uma ideia base que tinha. Acho que isso tanto para mim, como para os artistas com quem quero trabalhar, oferece novas perspetivas e ideias. Sinto que isso é algo que falta a muitas produções recentes.

Em Portugal ou estás a falar a nível internacional?

Cá [risos]. É produto dos tempos e tudo isto tem fases. Não é melhor nem pior, mas é mais rápido fazer música assim.

Estás sozinho em casa com o Ableton e…

Exatamente. E não tens chatices. Não tens vozes a dizer que sim ou não, ou a dizer-te para mudar uma coisa. Acabas por mostrar o produto mais finalizado e depois tens só de dar pequenos retoques. Esse processo acaba por te dar um output muito maior e muito mais rápido do que se tivesses de trabalhar com outras pessoas. Porém, não é tão divertido [risos]. Eu trabalho com outras pessoas porque gosto delas. Portanto, se é para trabalhar com elas, prefiro estar a receber o seu input e inspirar-me com elas para fazer arte.

Como é que o teu período a tocar em bandas como Moe’s Implosion, que eram do Montijo, influenciou como vês a música?

No Montijo, não havia praticamente nada a acontecer quando começámos com Moe’s Implosion. Havia uma ou duas bandas e pouco mais. Tivemos de ser nós a criar as nossas próprias venues. E estamos a falar de isto para aí em 2005, que foi quando começamos a tocar — eu tinha para aí 15 anos. Nós tecnicamente criámos a cena no Montijo e isso aconteceu muito graças a pessoas como nós e como o meu irmão, que chegou a organizar a European Hardcore Pool Party, em Alcochete. Isso teve umas três ou quatro edições e teve no cartaz bandas como os Linda Martini, os No Turning Back, os For The Glory

Bandas muito ligadas ao MySpace.

Sim. Moe’s Implosion tocou imensas vezes na sede do PCP e chegámos a organizar um dos primeiros concertos dos Men Eater lá. O último concerto dos Riding Pânico com a formação original? Fomos nós que organizámos no TimeOut. A mesma coisa com If Lucy Fell, com os Day of the Dead, com os For The Glory. Embora Moe’s Implosion não fosse uma banda de hardcore punk, foi nesse circuito onde crescemos. No circuito de “se não tem, faz-se”. Se não há palco, roubam-se paletes na noite anterior e faz-se. Esse é um espírito que tento levar para qualquer projeto onde esteja envolvido. luto tem muito esse espírito DIY. Arranja-se sempre maneira de fazer acontecer. Se não conheço as pessoas, mando-lhes mensagem e insisto até que queiram gravar comigo [risos].

Como alguém que vêm de um background do DIY, como te sentes quando trabalhas num ecossistema mais ligado à produção de artistas de multi-nacionais?

Para o bem e para o mal, as coisas estão cada vez mais estruturadas. As majors têm cada vez mais processos definidos para cada artista. Não é tão DIY como antigamente nem tão amador, mas acaba por retirar um bocadinho da magia do processo. Acaba tudo por funcionar, como se costuma dizer, “a metro”. Isto tem vantagens, porque te permite ter um output incrível. Por outro, e é algo que eu próprio tento evitar e se deixar de o conseguir fazer podem dar-me um tiro, se tirares a voz de algumas dessas canções, ninguém sabe de quem são. A música tem de ter personalidade. Estamos numa fase onde, por um lado, há muita música ainda feita de forma cooperativa — até com ligações às majors — e, por outro, há mesmo muita música genérica a ser feita — mais do que nunca. Há tanto conteúdo que a grande dificuldade para o público é separar o que é original do pré-fabricado. 

Sentes que o desaparecimento de venues e de espaços comunitários, onde era permitido malta juntar-se para fazer barulho, também levou a que os músicos se virassem mais para um processo solitário de fazer música em casa?

Sim. No outro dia, quando fui tocar com As Docinhas ao Maus Hábitos, falei com a chica, que estava lá a tocar com bbb hairdryer, sobre isso. No passado, a Rua Cor de Rosa, em Lisboa, tinha seis ou sete venues para tocar. Neste momento, tem uma e meia. O Musicbox e o Roterdão — daí ser uma e meia [risos]. Antes, tinhas o Tokyo, o Jamaica, o Sabotage, o Copenhaga, e mesmo o próprio Roterdão, quando tinha condições para mais concertos. Eu toquei em todos esses sítios e agora é cada vez mais difícil tocar ao vivo em Lisboa. Se não fosse o B.Leza ter aberto as portas para coisas além da música africana e brasileira, pior era. Sim, o Tokyo conseguiu ir para outro local, mas não é a mesma a coisa. E não pode ir toda a gente tocar ao Musicbox, especialmente quando só tens dois dias da semana com concertos. Eu entendo essas decisões. É uma questão monetária. Os concertos não fazem tanto dinheiro como uma festa. Mas acho que nós, os músicos, temos de nos adaptar a estas condições.

O Sabotage é um caso paradigmático de nostalgia porque era um sítio onde conseguias dar o teu primeiro concerto com relativa facilidade.

Foi o último reduto da verdadeira música rock em Lisboa. Foi o último suspiro. A quantidade de vezes que toquei lá sem ter nada para apresentar [risos]. Agora, não consegues fazer isso. Tens de ter uma razão para ir tocar aos sítios. E isto piorou porque, depois da pandemia da COVID-19, tiveste uma explosão de novos projetos que queriam todos ir tocar. O problema é que não existe sítios para enfiar tanto projeto. Vês muito isso no hip hop. Não existem Semanas Académicas suficientes, que é primeiramente onde tocas hoje enquanto artista rap, para meter todos esses projetos a tocar. Não existem venues nem festivais suficientes para todos esses artistas.



Tu tocas com o João Maia Ferreira e vocês deram muitos poucos concertos até agora a apresentar o O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua.

E estamos a falar de um artista que está numa major e num tier relativamente alto da indústria. Não é um T-Rex ou um Plutónio, mas está numa divisão abaixo. E mesmo assim, é difícil arranjar concertos. O xtinto é igual. No outro dia, o Maudito queixava-se do mesmo. O L-Ali a mesma coisa. Acho que a última vez que o L-Ali tocou foi a última vez que o fui ver, que foi o concerto que ele deu em janeiro a celebrar dez anos de carreira no Musicbox. E estamos a falar de artistas com uma base de fãs super sólida e mesmo assim é difícil. Não existe uma sobrecarga de artistas. O que existe é uma falta de venues e de oportunidades. Há falta de circuito. Eu cresci numa altura da música portuguesa em que, se fizesse uma digressão — como cheguei a fazer com O Bisonte —, tocávamos 25 concertos em mês e meio. Não era que toda a gente fizesse isso, mas não era difícil fazê-lo. Lembro-me que os For The Glory e os Linda Martini tocaram em tudo o que era sítio. Desde palcos maiores em festivais até palcos mais pequenos. Faziam todo o circuito a toda a hora e acho que há cada vez menos hipóteses de as coisas funcionarem assim. São dadas cada vez menos condições para isso acontecer.

O que é hoje uma digressão em Portugal?

São quatro ou cinco datas, a menos que sejas um artista grande. Para o artista comum, é ir tocar ao Musicbox, ao Maus Hábitos e, com sorte, ao Salão Brazil. A meio, fazes o Bang Venue e esqueces-te de ir ao Algarve porque já não existem sítios para tocar lá. Lembro-me de chegar a ir tocar com O Bisonte ao Algarve em pleno mês de Março — a Loulé. Para garantir que não íamos perder dinheiro, fazíamos a FNAC de Loulé, que pagava sempre um cachê fixo que cobria logo as despesas com gasolina.

Há pouco tempo, o Vaiapraia dizia-me que os cachês basicamente não subiram desde há uma década para cá. Não acompanharam o aumento do custo de vida.

Estão iguais e o custo de vida subiu imenso. Faz-me uma confusão, mas montes de vezes, para tocar ao vivo, tenho de pedir esses valores de cachê antigos. E hoje não tens sítios para encher calendários. Quando fiz tours com O Bisonte, fazíamos imenso isso. O que nós queríamos era tocar e aceitávamos — bem, eles aceitavam porque era o resto da banda que tratava disso — tudo o que era cachê, fosse alto ou baixo.

Os MAQUINA. operaram assim quando começaram.

Foram das poucas bandas a fazer isso à antiga. Encontrar sítios para tocarem e arranjarem sítios entre esses locais para tocarem independentemente do valor do cachê. Isso é um método válido, mas cada vez menos funcional. O custo de vida é muito mais elevado e estás constantemente a perder dinheiro. Com O Bisonte, fazíamos assim e não perdíamos dinheiro. Não ganhávamos, mas também não perdíamos. Agora perdes. Só em gasolina estás lixado. Tens muitas poucas bandas a fazer as coisas assim quando antes a regra. Lembro-me que Os Pontos Negros, quando começaram, tocavam todos os concertos de merda possíveis e imaginários. Os Glockenwise igual. E apesar de ninguém falar do valor dos cachês, toda a gente sabe quais são os sítios em que, se fores lá tocar, nem 100€ recebes.

Devia existir mais transparência sobre o valor dos cachês no circuito?

Claro. Olha, nos últimos dois anos tenho trabalhado mais com As Docinhas e elas são transparentes — às vezes, até demais [risos]. E adoro que elas sejam assim. Eu comecei a tocar com elas porque fui substituir alguém e acabei por ficar a tocar com elas. Elas revelam tudo. Se correu mal e foi culpa delas, vão para as redes sociais dizer. Se foi culpa de outra pessoa, também. Isto está mau para toda a gente. Se tens uma banda e sentes que és um looser por não tocar, não é problema teu. A não ser que estejas num patamar alto, estamos todos no mesmo barco. É extremamente complicado para uma pessoa viver da música. É preciso fazer muitos sacrifícios.

Depois isso fomenta competição, mesmo que ninguém queira.

Completamente. Tenho perfeita noção de que estou a competir com amigos meus no dia-a-dia. Se eu for tocar a um sítio, eles não vão. É muito raro acontecer o que aconteceu quando fui tocar com As Docinhas ao Maus Hábitos com bbb hairdryer. O Pedro Antunes, que toca bateria com As Docinhas, vive na mesma casa que o Chinaskee, que toca bateria em bbb. É raro acontecer esses encontros nos dias que correm. Antes, com Moe’s Implosion, chegamos a tocar com O Bisonte porque éramos bandas amigas. Isso é uma cena incrível que acontece cada vez com menos frequência. Haver comunhão entre bandas que se admiram e irem para a estrada juntas. E há cada vez menos bandas de abertura, que é outro problema. Com Moe’s Implosion, cheguei a abrir para The Get Up Kids na República da Música. Se os cachês não aumentaram, será que queres ter uma banda de abertura com quem tens de dividir os ganhos? Mal tens dinheiro para pagar ti a mesmo, quanto mais para dividires dinheiro com outra banda. Quando juntas isso à falta de venues, acabas por fomentar a competição entre artistas, quando não devia ser assim. A palavra de ordem devia ser, novamente, comunhão. Ao invés, estás a competir inadvertidamente com amigos e colegas teus — alguns dos quais com quem trabalhas. Porque para tu ires tocar a um festival, alguns deles não foram. A “não fui ao Alive” também é sobre isso. Os meus amigos estavam a tocar todos no Alive e eu não. Há essa invejazinha que não tem mal, acho eu. A competitividade pode ser uma coisa boa se te levar a fazer melhor arte, digamos assim. Eu vou a muitos concertos e muitas vezes saio de lá a querer fazer mais música. Da última vez que vi os Hetta ao vivo, lembrei-me que já não fazia hardcore há imenso tempo. O que me leva a outro ponto: os músicos em Portugal têm de ouvir mais música. Cá, os músicos, pela falta de segurança no seu próprio trabalho — uma consequência disto tudo que estamos a falar, seja da falta de venues ou da falta de oportunidades —, agarram-se muito a eles mesmos e não percebem que isto não é uma competição. Ir ver concertos de outros artistas é uma experiência incrível, mesmo quando são de bandas que não são propriamente semelhantes à música que fazes ou ouves. Acho que cada vez se vê menos músicos em concertos.

A ver outros músicos e bandas?

Sim. Era muito normal antes, numa noite do Musicbox, se fizesses parte de uma banda, vias os grupinhos das bandas diferentes a verem um concerto. Tu vês menos isso hoje, também porque grande parte dos projetos são agora de artistas a solo. Portanto, quem toca ao vivo nesses projetos, são músicos contratados e não existe tanto essa comunidade entre os músicos de fazerem coisas em conjunto. Quando estava em contexto de banda, era quase uma religião irmos todos ver uma banda de quem gostávamos. Sabíamos que íamos aprender alguma coisa e curtir a cena. Tens cada vez menos isso, o que é uma pena. Os músicos têm de ouvir mais música. Praticar o teu instrumento é secundário. Ouvir mais música é que te faz fazer melhor, acho eu.

Como vês a evolução do projeto de luto entre os EPs e o álbum? Sentes que a abordagem musical sofreu alterações?

Sim, completamente. Nos EPs, 90% do que se ouve foi gravado ao primeiro take. Fiz muitas mais músicas nessa altura e escolhi aquelas que achava que faziam sentido para o primeiro e para o segundo EP. Gravei aquilo durante a pandemia, quando estava fechado em casa e precisava de exteriorizar o que estava a sentir na altura. E gravei tudo sozinho. Todos os instrumentos e compus tudo sozinho. Daí que, quando quis fazer o disco, decidi que não ia ser só eu. Queria que o disco fosse um projeto que funcione quase como desculpa para fazer música com os meus amigos. Embora o disco não soe muito a isso, uma das minhas maiores influências são os Gorillaz. Nos Gorillaz, não existe propriamente um estilo definido. Há uma linha condutora em cada disco, mas a sonoridade é o que fizer sentido. Pode ser dub, punk, mais eletrónica, pop, country, algo mais acústico. O meu álbum foi um processo muito pensado com um propósito muito maior em mente. Tive muito cuidado a fazer os arranjos, a escrever as letras, a tentar fazer as escolhas mais corretas para cada ocasião porque queria que o disco fosse visto como um todo. O disco tinha de fluir de uma certa maneira para que fizesse sentido. Tinha de ter partes mais sérias, outras mais cómicas. Queria que funcionasse quase como uma slice of life e, portanto, tinha de ter um pouquinho de tudo. Foi um processo mesmo muito diferente dos EPs.

Sentes que, para ti, isto funciona como um arquivo daquilo que estiveste a ouvir e a pensar musicalmente nestes dois anos?

Sim. Funciono muito dessa forma que estava a descrever. Ouço uma música e começo a pensar: “Porque é que não tenho uma música assim?” Mas posso fazer. Não há nada que me impeça. Se fores ver as minhas playlists do Spotify e ordená-las cronologicamente, consegues perceber o que estava a ouvir quando fiz uma dada música do disco. No caso da “volta e meia”, por exemplo, aquilo começou como um desafio de tentar fazer uma música de trip hop porque estava a ouvir bué cenas estilo Massive Attack ou Portishead. Gosto desse tipo de desafios e perceber se sou capaz de fazer uma música de um determinado estilo. Às vezes, a resposta é não. Outras vezes é sim. Às vezes, é mais ou menos e sai algo a meio termo. Mas desde que eu goste, acaba por não fazer muita diferença. Portanto, o álbum acaba por ser um arquivo quase cronológico do que estava a sentir nas diferentes fases de composição.

É essa curiosidade que liga luto, que funciona como uma extensão da tua persona, com outros projetos onde estás envolvido, como xtinto, João Maia Ferreira, As Docinhas ou ELIS NEON?

Sim. Felizmente, tive a sorte de, até agora, conseguir tocar só com projeto com que me identifico. Foi o Beiro, com quem divido a meias o projeto de ELIS NEON, que me apresentou à malta do hip hop nacional, como o L-Ali e o João Maia Ferreira. Eu já conhecia o Beiro há muito tempo porque, quando tocava com Moe’s Implosion e O Bisonte, ele tocava numa banda de rock que se chamava The Crawlers. Não falava com ele há imenso tempo, mas durante a pandemia ele falou comigo e surgiu a ideia de ELIS NEON. Todos estes projetos são com pessoas com quem nutro algum tipo de admiração, seja ela pessoal ou artística. De alguma forma, todos também influenciam a maneira como abordo a minha música. Posso creditar publicamente As Docinhas com não ter abandonado a música. Quando comecei a tocar com elas no final de 2021, estava a questionar se ainda valia a pena estar envolvido na música ou não. É por essa altura que também comecei a fazer os EPs, porque começar a tocar com elas deu-me outra vez aquele sentido de comunidade, de banda rock, de banda estrada, que não tinha há algum tempo. Fez-me pensar que ainda valia a pena. E trabalhar com elas é incrível porque elas são génios musicais. Eu trabalhei com a Leexo no disco dela [Love & Courage] e trabalhar com ela é impressionante. Ela aparece no estúdio com 40 ideias diferentes e isso também te estimula imenso. Ela e a Cire fizeram-me ter a coragem de não ter de escolher um estilo para o meu disco. Porque se há algum projeto em Portugal que é o protótipo disso, são As Docinhas. Quando vais ver um concreto delas, vais ao encontro de um espetáculo de variedades em formato de concerto [risos]. É uma experiência. Tu não sabes se vais ver música tradicional portuguesa, se vais ver techno, se vais ver punk. E a verdade é que vais ver um pouco de tudo. 

Quando apresentares este álbum ao vivo, a ideia é poderes tocá-lo em formato de banda?

A ideia é ser em formato de banda e talvez essa apresentação ocorra mais para o fim do ano. Tenho estado, feliz e infelizmente, bastante ocupado nestes meses com outros projetos que impossibilitaram dedicar-me a 100% a luto. Mas também sinto que precisava desta distância para com estas canções. Dediquei muito tempo a fazer o disco e senti um grande alívio depois dele sair. Contudo, não descarto a ideia de existir uma versão do espetáculo em que consiga apresentar estas canções num formato mais íntimo. Aí, até se calhar posso tocar algumas coisas dos EPs. Mas idealmente, é em formato big band que apresentarei as canções deste álbum e também do próximo. Se correr tudo bem, lá para o fim do ano… 

Sentiste muito a necessidade de espremer todo esse sumo musical que existia dentro de ti?

Sim, e também porque cheguei a um conceito para esse próximo disco. A partir daí, comecei logo a fazer as demos e a convidar quem queria. Quando as coisas estão a fluir, não vale a pena parar para pensar. Se tenho músicas que ainda não toquei ao vivo, posso tocá-las depois com as próximas. Não há problema. Há cada vez menos regras de como fazer as coisas. Tens o exemplo da Chappell Roan, que lançou o disco [The Rise and Fall of a Midwest Princess] em 2023 e aquilo não bateu. E de repente, ela tornou-se na maior artista do planeta. Portanto, se alguém te diz que tens de fazer as coisas de uma certa maneira, não faças. Faz como te apetecer, desde que faças o que estás a gostar. Se correr bem, correu. Se não correu, tenta outra vez. Se não ficar, que se foda. Se ficar, que se foda também [risos]. Não tem de haver necessariamente um caminho pré-determinado de como as coisas têm de acontecer. Estou a tentar aplicar isso a luto. Faço as coisas e se resultar, resulta. E se não resultar, está tudo bem. Ao menos estou a divertir-me a fazer música com os meus amigos, que era o que eu queria com este projeto.


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