“Demand the Impossible!” manifestou a organização da primeira edição do Luna Fest, como que colocando a batuta em quem a iria testemunhar. Sem o saber, o festival usou a mesma frase imortalizada pelos movimentos estudantis parisienses da revolução de ‘68 — mais tarde adaptada por ativistas de esquerda em várias latitudes. Durante cinco dias na também estudantil cidade de Coimbra, os organizadores Victor Torpedo — fundador de alguns dos mais eléctricos projetos locais — e o empresário Tito Santana conseguiram, também eles, erguer uma agitação subcultural.
O cartaz deste festival marcará seguramente a cronologia em Portugal no que ao punk diz respeito. Não contando as baixas tropeçantes de Devo ou The Damned, não tenho memória de alguém — com meios não extraordinários — ter a coragem de reunir tantos projetos de culto deste subversivo género musical, e foi essa ousadia o principal trunfo deste evento.
Quando falamos de punk, é preciso frisar a percepção de “liberdade” que o movimento acarreta. O punk é libertário e punk de direita não é punk, ponto! Não se pode ser paralelamente revolucionário enquanto se é preconceituoso, ou apelar à diferença enquanto se julga. E toda a planta desenhada para estes dias mostrou que o movimento já não passa por cuspir para o chão em jeito de afirmação.
Sabemos hoje que também é possível saborear punk no free-jazz ou na experimentação electrónica e, no Luna, o cartaz era intrinsecamente punk, mesmo sem o festival hastear esta bandeira — ao contrário da exploração de vários festivais com o chavão “jazz”.
Uma nota à assertiva decisão de não colocar projetos nacionais. Não pela diminuta qualidade destes, mas pela vontade de criar algo verdadeiramente único, que o público não possa ver no mês seguinte a uma qualquer sala vizinha.
No recinto da Praça da Canção, às 19h em ponto de quarta-feira (16 de Agosto), os britânicos DSM IV tiveram a tarefa, sempre ingrata, de ser a primeira banda a subir ao palco. O novo projeto do ex-vocalista dos Eighties Matchbox Disaster — que há dezoito anos se estreou no Super Bock Super Rock — entregou 45 minutos de várias waves e ages (sub-géneros da electrónica, entenda-se) ora mais escuras ou mais coloridas, e Guy McKnight soube controlar o ambiente ainda meio adormecido de quem assistia. Seguiu-se o power pop revivalista dos The Speedways.
Já com o público em número digno de festival, Robert Görl, a metade sobrevivente dos DAF, dupla germânica de EBM já por aqui dissecada, apresentou-se como um verdadeiro crooner das pistas de dança, com visuais alusivos à memória de Gabi Delgado-López, cujos rumores dizem ter morrido em Portugal no ano de 2020. Görl, deveras agradecido e acompanhado pela produtora Sylvie Marks na maquinaria — que arrojadamente terminava sempre os temas em fade out — fez pulsar desde o techno mais industrializado à europop orelhuda, terminando com o clássico controverso “Der Mussolini”, que levou o público ao primeiro êxtase da noite.
De bolsos mais cheios de hinos underground, com a apresentação seguinte dos irlandeses The Undertones, não foi preciso tirar a nossa máquina do tempo intelectual estacionada no século passado. Desde as primeiras notas de “Jimmy Jimmy” (single de 1979) que a banda recorreu ao humor para se apresentar informalmente e captar as atenções de quem se aproximava do palco. Não é por acaso que o novo vocalista, Paul McLoone, substituto do fundador Feargal Sharkey – tarefa sempre ingrata em qualquer projeto musical – tinha uma carreira no entretenimento televisivo humorístico antes de ingressar na banda.
“You’ve Got My Number (Why Don’t You Use It!)”, “Girls That Don’t Talk” ou “Wednesday Week”, clássicos da sua discografia, foram cruzados com temas mais recentes como “Enough”. A disposição contagiante da banda aliada à sua pop speedada levou a que — num festival onde a celebração da memória colectiva é motivação-chave — os singles “Here Comes the Summer” ou “My Perfect Cousin” fossem cantados em uníssono. Na produção, contaram-me que António Sérgio, divulgador máximo em terras lusas, dizia que os discos dos Undertones saíam sempre um ano depois do seu movimento. Em Coimbra, contrariaram a matemática que mede a idade em contraponto à energia.
Já John Cale (recentemente entrevistado pelo xerife desta publicação) trazia disco fresco para apresentar: Mercy, um gospel electrónico e denso de ideologia política. Não iríamos estar perante outra retromania saudosista, mesmo sendo um nome histórico. A devoção que antecedeu o concerto deve ter sido semelhante à missa que a Praça da Canção recebeu na JMJ uns dias antes — factor aliás que impediu a autarquia local de instalar a relva sintética devida, que teria oferecido um conforto maior a quem se deslocou ao recinto.
Apresentando-se em quarteto, ora à guitarra ora ao comando de um Kurzweil K2600 e outra maquinaria electrónica, Cale foi acompanhado por bateria, baixo e guitarra num leque de canções de experimentação contemporânea com um diálogo sónico exemplar entre os seus três companheiros, destacando-se a precisão do seu novo baixista, o filipino Joey Maramba.
Ao segundo tema, o recente single “Night Crawling“, a veneração semi-religiosa já estava alcançada. Nos seguintes, ainda menos conhecidos, a familiaridade com os seus versos de apenas duas notas à la Velvet Underground permitiam a imersão, não fosse Cale um discípulo do minimalismo repetitivo. Durante toda a apresentação foi possível decifrar não só a escola que o galês carrega aos ombros na criação de perfeitas canções pop semi-exploratórias — semelhante à do seu companheiro Bowie —, mas também a influência da sua colocação vocal em projetos tão díspares como Thomas Leer ou toda aquela fornada indie dos inícios de 00.
Instrumentalmente, Cale destaca-se também pelo detalhe. A elegância diferenciada de, por exemplo, conjugar a tonalidade com o efeito certo num simples riff de guitarra com as três notas da “Satisfaction”, torna um tema que a maioria faria de forma banal em algo único. Do novo disco, “Out Your Window” antecedeu a versão de “I’m Waiting for the Man” da banda que tinha com Lou Reed, momento que a maioria na audiência padeceria caso não acontecesse.
O concerto terminou com uma hipnótica versão em jeito medley de 20 minutos algures entre o bluesy e o krautrock de “Pablo Picasso“, original dos Modern Lovers de Jonathan Richman, disco homónimo produzido pelo senhor Velvet. Portanto, Cale entendeu perfeitamente o festival onde estava inserido, e o Rimas e Batidas sabe que a sua agente agradeceu à produção pois Cale há muito tempo não era assim tão bem tratado. A triangulação “organização – artistas – público” revelava-se assim eximiamente sólida na primeira edição deste festival.
Além fronteiras, por exemplo, festivais como o londrino Le Beat Bespoke ou Funtastic Drácula Carnival em Benidorm, têm-se tornado atrações internacionais para melómanos do nicho do rock’n’roll (no sentido mais dilatado de “punk”, entenda-se). A estes e outros devemos muito da sua preservação discográfica e revitalização cultural, assim como a uma movida de DJs satélite — tal como acontece em subgéneros da electrónica — onde se inclui não só punk mas a primitividade do garage rock, psicadelia e freakbeat, todo um abraçar à música jamaicana, latina e de grooves raros de soul ou funk.
Em Portugal, festivais como o Barreiro Rocks ou o Quarteira Rock Fest também cumpriram em tempos o seu papel de abrigo para este culto que não é só musical mas também identitário. O mesmo aconteceu, por exemplo, com o Milhões de Festa em Barcelos e ainda acontece com o Entremuralhas em Leiria. São eventos que brotam de uma vontade de oferecer localmente aquilo de que se fala nas ruas, se ouve nos bares ou nos discos que se trocam, nas bandas que se criam, a um público (também muito) específico de várias outras cidades.
Por isso, um Luna Fest só fez sentido acontecer em Coimbra, onde há uma núcleo local que respira o mesmo ar de quem pisou o palco. E toda essa côdea musical — tal como nos festivais acima referidos — fez também ela parte da organização, tal como acontece numa festa rural de cariz mais popular. E ainda bem que assim o é!
Os valencianos Finale inauguraram o segundo dia, tocando como se toca em palcos de hardcore: um concerto de 25 minutos. Projeto encabeçado por uma criatura vampiresca semelhante ao Bela Lugosi se tomasse speed e desse no hélio.
Seguiram-se os Oh! Gunquit, a primeira banda do festival liderada por uma mulher e a primeira também com saxofone, instrumento tão precioso em projetos da história do punk como Stooges, Maximum Joy, James Chance e X-Ray Spex, Swell Maps, etc.
Tal como na banda anterior, também os Oh Gunquit! se destacaram pela prestação na sua linha da frente. No caso de Tina Swasey — activista americana “descendente” das celebrações roqueiras dos clubes londrinos, universo paralelo que Victor Torpedo tão bem conhece pelo inícios dos The Parkinsons — fez-me ruminar sobre a diversidade de género no alinhamento deste festival, pois foi talvez a melhor entertainer de todo o evento, alternando entre a voz e o trompete juntamente com uma parafernália de objectos circenses. Ao lembrar a força motora de Karen O e, claro, a determinação de Poly Styrene, Swasey revelou que os limites do punk estão apenas onde cada pessoa os quiser colocar, e ver miúdas em palco só faz com que mais miúdas queiram formar bandas.
Por falar em quebrar barreiras, os texanos Hickoids fizeram uma versão de Willy Nelson e a dupla espanhola La Élite apresentou um electro-punk-guna na primeira adesão total da noite. Deixou pelo meio uma versão de “Autosuficiencia” dos Parálisis Permanente, da autoria de Eduardo Benavente, representante máximo do pós-punk espanhol e movida madrilena, para deleite dos conterrâneos na audiência.
Este escriba recusa-se a grafar sobre o concerto de Black Lips, depois das acusações de que um dos membros da banda esteve envolvido no triste episódio da felizmente extinta editora Burger Records, assim como em relatos paralelos.
Dos nomes mais aguardados deste festival, os Buzzcocks foram deveras competentes e, com um alinhamento também ziguezagueante entre o passado mais e menos distante, a banda (agora) de Steve Diggle sabia perfeitamente o que estava a fazer em palco. A coreografia estava mais que ensaiada pela nova geração que acompanha o “cock sobrevivente”, mas a graciosidade — e até queerness, raios! — que a dupla Pete Shelley e Howard Devoto carimbou no que rodeia a atração sobre os Buzzcocks foi substituída para uma postura até machóide dos novos elementos. Algo não batia bem ali.
“What Do I Get”, “Fast Cars”, “I Don’t Mind”, “Autonomy” ou “Orgasm Addict” foram tocadas sempre a uma velocidade mais lenta da que conhecemos em disco, e se já estava com alguma dificuldades em me transpor para os anos honrados da banda, aos primeiros acordes do hit impopular “Ever Fallen in Love”, essa travessia foi interrompida pela exagerada e lucky-lukeana extração de “telefones espertos” do bolso pela audiência para filmar os (provavelmente) únicos dois minutos da sua vida que vão ver aquele tema ao vivo. Acção que incluiu um dos técnicos de palco, que a essa hora já se movimentava atrás do baterista de braços esticados para conseguir o melhor ângulo, mesmo que isso implicasse um corpo estranho presente no cenário.
Sinal dos tempos, talvez, mas o erro foi meu, que só queria ter terminado o segundo dia ali para os lados de 1978, porque tinham-me dito que dava para pedir o impossível.
O terceiro dia do Luna Fest trouxe o único nome na lista que esteve presente na downtown nova-iorquina da década de 70. Ainda por estes dias John Lydon fez das suas patetices ao afirmar que a geração britânica do punk — que liderou, diga-se — foi mais influenciada por hard e glam rockers conterrâneos do que pelo movimento nova-iorquino que circulava pelo CBGBs e Max’s Kansas City, onde os Ramones eram figuras de proa. Sem jogar ao “ovo ou a galinha“, facto é que os Suicide já em 1971 usavam o termo “punk music” para descrever as suas apresentações e, o leitor indeciso que pretenda aprofundar sobre este ping-pong transatlântico, pode mudar de canal para o que Simon Reynolds tão bem dissecou este ano para o Tidal.
Formados em 1976, os The Fleshtones pertencem à geração que viu nascer Television, Blondie ou Talking Heads, e o vocalista Peter Zaremba fez questão de o recordar quando deu a entender que estes projetos eram melhores em trio, quarteto e trio, respectivamente, fazendo lembrar também o seu falecido amigo Alan Vega – também ele artista visual – da dupla Suicide que, nas suas palavras “tinha o número suficiente” de elementos. O carisma de Zaremba e restante equipa já era conhecido de quem os viu ao vivo (“sort of” segundo o próprio) no passado, e “Going Back to School” ou “Can’t Stop Dreaming About Work” demonstraram ser o elixir da juventude irreverente desta ultra dinâmica banda, tanto que só me questionava de como seria ver estes gajos naquela altura.
Depois de “I Surrender” ou “Remember the Ramones” e ate convencerem o público a alegremente rodopiar sobre si próprio, o gimmick final levou-os a sair (à excepção do baterista) de palco pela frente, ou seja, pelo meio do público em direcção aos camarins, enquanto continuavam a tocar. Viva o século XXI e a sua tecnologia wireless!
De 51 anos e também “juventude” irrequieta, o co-organizador Victor Torpedo subiu a palco com os seus Pop Kids a interpretar o tema de culto “Eisbär” dos germânicos Grauzone e três outros da sua autoria, em jeito de aquecimento para os The Parkinsons que se voltaram a reunir para esta actuação.
Não foi possível ao Rimas assistir ao concerto dos franceses La Femme, e os cabeças de cartaz da noite The Damned cancelaram o concerto por problemas de saúde. Golpe profundo para uma primeira edição.
No entanto, o apoio comunitário presente nas redes sociais transpôs-se de igual forma para o recinto. Foi evidente o suporte da sociedade local para com a organização a propósito dos cancelamentos. Principalmente na baixa da mais apetecida banda do cartaz, os Devo, e o consequente impedimento lógico de encontrar substituição à altura a um mês do evento, o que levou a organização a oferecer o último dia a quem quisesse aparecer. Se forem a um restaurante, pedirem um prato que vem sem um ingrediente importante, ou o devolvem ou comem na mesma por conta da casa!
De louvar foram também as acções de Torpedo e Santana em oferecer bilhetes a doadores de sangue, a oferta de 500 bilhetes para a Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, assim como a duas repúblicas da cidade, em modo angariação de fundos.
Nessa mesma associação nasceram os 5.ª Punkada, projeto com que arrancou o quarto dia do festival. Com centenas de actuações por toda a Europa, e aqui acompanhados pela multi-instrumentista Surma, foi exemplar o silêncio total respeitoso da audiência quando o vocalista Fausto Sousa – único membro fundador da banda em 1998 – se fazia entender.
Os Eel Men – que também estão no line up do Funtastic Drácula de Outubro próximo – ofereceram 40 minutos do melhor garage rock da nova geração londrina, passadas duas décadas do boom juvenil que reviveu o género americano – que coincidentemente é uma resposta à British Invasion, também ela filha do rock’n’roll americano. Zigue-Zague!
Aposta certeira no Luna foram os Martin Dupont. “Love on my Side”, “Like a Lion”, “Just Because” ou “Inside Out” fizeram parte do alinhamento do projeto de Marselha, cuja segunda vida se deve ao resgate pela editora Minimal Wave, de Veronica Vasicka.
Ainda com três das figuras fundadoras em palco, Alain Seghir e Brigitte Balian nas vozes e Beverley Jane Crew também no clarinete e saxofone, acompanhadas por um guitarrista e um músico nos synths e backing tracks sem artifícios, os franceses receberam uma fraca resposta do público, talvez pelo bafiento estigma ou mero cepticismo para com a música electrónica. Se conseguiram cirurgicamente remover essa formatação de pelo menos uma pessoa, o objetivo da programação foi cumprido. O certo é que nos anos 80, o futuro da música electrónica contracultural passou pelo four of the floor dos Martin Dupont.
Os escoceses Rezillos trouxeram o imaginário rock’n’roll de série B com “Destination Venus”, “Flying Saucer Attack” ou “Top of the Pops” no concerto com mais aderência de todo o dia.
Ainda mais arrojada foi a escolha do projeto germânico Dissidenten, que já caiu nas graças de Brian Eno ou Madlib. No entanto, o lado técnico não permitiu uma experiência frutuosa deste espectáculo. Nos ecrãs, a banda apresentou filmagens de tours nas últimas três décadas, com uma formação multicultural composta por percussão, baixo, bandoloncelo electrificado, sanfona e as exímias vozes dos marroquinos Mennana Ennaoui e Noujoum Ouazza. Mas mais incomodativo que a backing track a clippar foram os comentários a roçar o racismo que se ouviam em conversas paralelas.
Já de som perfeito foi a actuação dos A Certain Ratio. Nome maior do movimento de Manchester que orbitava em torno da Haçienda e da Factory Records, o seu regresso aos palcos no início do século a galope também se deveu ao mercado independente das reedições discográficas, mais precisamente com a colectânea da Soul Jazz Records, Early.
Jez Kerr, agora impedido de tocar baixo devido à artrite, encabeçou um dos melhores concertos deste festival, enquanto que os outros dois fundadores Martin Moscrop e Donald Johnson iam alternando entre bateria e baixo e trompete.
Assessorados pela nova geração musical da sua cidade estavam a energética vocalista e flautista Ellen Beth Abdi (que já tem no currículo actuações com Stones Roses ou New Order), a baixista Viv Griffin, de 21 anos, e Matt Steele nos teclados.
De todo o alinhamento mais histórico deste festival, os A Certain Ratio (a par de John Cale) são unanimemente quem conseguiu na sua actual discografia manter intacto o patamar com que se estrearam. “1982” do disco homónimo deste ano, seguido do primeiro single “Do the Du” de 1980 e o último single “Afro Dizzy” eram quase sempre apresentados em modo extended version, não estivéssemos perante os pioneiros do que a internet apelidou de “dance-punk”.
A memória da vocalista Denise Johnson, falecida em 2018 foi evocada com “Won’t Stop Loving You”, no momento em que o tema mais “canção” de todo o concerto foi certeiramente incluído. A versão dos Banbarra para “Shack Up” antecedeu os últimos dois temas regados a samba-mutante-disco, não andassem os ACR a ombrear com Liquid Liquid no concurso do mais dancefloor do movimento punk.
O último dia começou com a coqueluche do festival: Bruno, músico britânico-brasileiro de nome único — que nem Prince ou Cher — que há um par de anos deu nas vistas por personificar o mais puro do rock’n’roll aos treze anos de idade.
Ainda sem buço e acompanhado pelos The Outrageous Methods of Presentation, o rapaz subiu ao palco de blazer branco e duck’s arse, como se fazia nos anos 50 e apresentou dos 40 minutos mais electrizantes do festival. Soube que andou pela cidade à procura do single dos Steamers e de pop-rock feito por cá na década de 60, e a julgar pelas referências a Paul Weller ou John Waters, que apanhei das suas letras, o puto não devia ser muito popular na escola.
O seu single de estreia conta com Glen Matlock dos Sex Pistols no baixo, diz-se que foi descoberto pelo Jason Pierce dos Spiritualized e já foi DJ para o Bobby Gillespie dos Primal Scream. Não escrevo isto para transformar este texto num episódio do Fama Show, mas para salientar a importância que uma comunidade alicerçada tem no desenvolvimento cultural desta malta, tal como acontece em Coimbra.
A prestação dos Ruts DC — que contou com Captain Sensible dos The Damned como convidado surpresa — assim como a dos The Yummy Fur e The Only Ones não foram alvo de uma devida atenção.
Os Gang of Four chamaram a maior enchente do festival para junto do palco ao som de “Right Here, Right Now” clássico samplado por Fat Boy Slim, enquanto o ecrã era composto pela bandeira LGBTI+, a americana, a uma faixa alusiva ao movimento Black Lives Matter, a bandeira do Reino Unido, e a bandeira iraniana (pré-revolução) com a frase “Women Life Freedom”. Não que tudo tenha de ser politizado, mas esta mensagem — a par de outras projectadas alusivas à imigração ou ao capitalismo — foi a ideal para fechar um festival de rock’n’roll em 2023. Lá vem o esquerdalha!
O vocalista Jon King foi soberano. Quando um vocalista precisa de três microfones ladeados em palco, prevê-se que se vá mexer muito, e claro que assim foi a sua prestação.
De bateria simples, baixo minimal e guitarra rítmica, esta última, nos dedos de David Pajo — substituto do anti-herói Andy Gill, recentemente falecido — destacou-se pelo seu estilo “Keith Levenesco”, em mais uma substituição de formações originais bem conseguida das bandas que pisaram o palco do Luna Fest.
Sara Lee (autora das linhas de baixo em “Roam” ou “Love Shack”, dos B-52’s), estreou-se nos palcos portugueses com a sua “velha” banda, que regressou cá depois das passagens por Paredes de Coura e no Reverence Valada, desta vez com a filha do baterista Hugo Burnham na voz secundária. Um negócio de família, portanto.
“I Love Man in a Uniform”, “To Hell With Poverty” e “Damaged Goods” fizeram, claro está, parte do cardápio do derradeiro concerto do festival. A música dos Gang of Four é uma cerimónia maior do punk dançante e sabemos hoje que foi precisamente à volta dela que se criou toda uma DFA Records ou um James Murphy se formou.
Se já não consumimos tanta música a ler contracapas de discos com os nomes de toda a malta que participou, estas ramificações e links intergeracionais, que influenciam parte daquilo que hoje se ouve num Lux Frágil ou numa Antena 3, têm por vezes de ser relembradas, nem que seja uma vez ano, por exemplo, num Luna Fest.