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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/05/2023

Um constante fomentar da cena jazz.

Luke Stewart: DIY não é conceito, é etos e comunidade

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/05/2023

Comunidade, DYI, aprendizagem, incomensurável vontade em unir e fazer. Sem contexto serão sempre letreiros a bombardear caracteres numa legitimação capitalista. Tudo pode existir. Mas haverá sempre um etos. Uma procura. Um músico na definição de um operário em construção — o que produz a música. A casa, o que constrói, um dia terá de ser dele, do operário, do músico, e, porque nela, da comunidade. A música é ao mesmo tempo, todo o “tempo perdido” e “todo o tempo do mundo” para Luke Stewart e para nós.

Antes do seu concerto de amanhã no âmbito do Amadora Jazz, trocámos algumas impressões com o baixista norte-americano.



[Lisboa e uma relação só nossa]

“Muito entusiasmado e agradecido pela comunidade me ter acolhido. Em particular ao Luís Vicente, ao João Valinho, Mariana Lemos, também ao Marcos e ao Natxo da ZDB. A cena, ultimamente, parece-me bastante activa e com uma atmosfera muito bonita. Talvez se deva à própria cidade e às zonas envolventes, que deve ter influência na música que aí se faz. O Colectivo Tundra, em particular, foi realmente encorajador. São sobretudo um grupo de jovens músicos que tomaram conta de um espaço com uma vista de nos deixar sem respiração. Fiquei muito impressionado com o equipamento, o nível de organização e como a música improvisada pode ser verdadeiramente um catalisador para a construção de uma comunidade e uma forma das pessoas entrarem neste género de música. Foi um concerto que começou com uma música muito intensa, justamente a seguir ao pôr do sol e que imediatamente se transformou numa ‘espécie de dance floor’. É um conceito muito simples, mas que se torna muito efectivo – os músicos da improvisada gostam de dançar, as pessoas gostam de dançar e estas amam a música não tão facilmente audível. O facto de terem cruzado estes campos é uma coisa muito simples, muito necessária e que me inspirou com toda a certeza. Organizei o mesmo tipo de concertos em Nova Iorque e noutras cidades. Empurra a música para outros limites e integra outras pessoas no meio. É uma forma muito particular de organizar, única e do qual tive o privilégio de interagir e partilhar e de como posso incorporar essa energia na música que faço – na improvisação, nas composições e em último grau na ‘onda’, nos sons e nas mensagens que podem ser transmitidas pela música.”

[Lisboa, Luís Vicente e a Jazz Messengers]

“Sobre o House In The Valley, talvez seja melhor colocar essa questão ao Luís. Do que me lembro o convite deve ter partido da minha relação com o John Dikeman. Mal conheci o Luís, entendemo-nos imediatamente e tornou-se um grande amigo. Gravámos o House In The Valey, num estúdio muito bonito de um americano a residir em Portugal. Essa cumplicidade e camaradagem entre mim e o Luís penso que transparece muito claramente quando se ouve o álbum. Gostei muito de apresentar o disco na Jazz Messengers, num espaço íntimo como é uma loja de discos, com uma excelente livraria e um bar apreciável. Foi óptimo ter tocado para um público conhecedor e que está imerso na música improvisada. Senti verdadeiramente o poder da música.”

[Amadora Jazz]

“Infelizmente, devido a incompatibilidades de booking, o Chad Taylor não vai poder actuar. Será também em trio, que de certa forma até é anterior. Será com o Warren Crudup III (bateria) e com o Brian Settles (saxofone tenor). São dois dos meus mais antigos camaradas. Nós começámos na música improvisada, num concerto em 2011, em Washington, com outros músicos da cena de Nova Iorque e outras cidades. Foi uma noite com músicos mais velhos. Foi uma espécie de baptismo. Demos dois concertos de música improvisada. Exactamente no início do segundo, os mais velhos saem do palco, deixam-nos completamente sozinhos, a mim e ao Warren, mas foi como uma bênção. A partir daí começámos a trabalhar como duo e formámos os Blacks Myths. Este trio, que irá tocar no Amadora Jazz, gravou num espaço muito acolhedor em Washington. Talvez não seja tão conhecida a cena independente de Washington, mas tem uma comunidade ainda muito viva, pelas experiências musicais únicas que aí se criam. Vivendo tanto a cena de Nova Iorque como a de Washington posso afirmar que vivi momentos tão particulares em Washington, que não tive em Nova Iorque. Este trio é exactamente o reflexo das interacções e experiências que vivemos de perto em Washington. Com os músicos mais velhos, alguns já falecidos. Sentir esse legado de uma forma que não teria sido possível no que se refere a um sentido de comunidade, à orientação, à música na sua essência. O trio é reflexo disso mesmo, com o máximo de integridade nesses tempos. Queremos partilhar as nossas experiências, queremos aprender com o público e com a comunidade.”

[Capitalbop]

“É uma associação fundada juntamente com o Giovanni Russonello, em Washington, oficialmente em 2009, mas com maior actividade a partir de 2010. Num contexto da comunidade DIY, uma comunidade menos conhecida e compreendida. É uma ‘cena’ paralela, de apoio a edições e apresentações ao vivo. Naquela altura estava mais envolvido com a comunidade rock indie da cidade. Tínhamos um armazém na Chinatown para ensaios e onde se organizam maioritariamente concertos indie. Senti então a necessidade, pela interacção com a comunidade ligada ao jazz, por estar ligado a uma rádio, de reincorporar o jazz e a música improvisada no ecossistema do DIY. Foi a comunidade do jazz que criou o verdadeiro etos do DIY. Reintroduzindo este etos dentro da cena indie e também na comunidade do jazz que somente tocava em clubes, que tocava somente para um público muito específico e um género muito particular de música e um muito peculiar tipo de dinheiro. O que tentei provar é que não se estava a atingir uma audiência maior, nem mesmo mais esclarecida. Havia a necessidade de dar mais liberdade, de se criar música original e até, em último caso, a onda é mais saudável e mesmo a receita dos concertos que se geravam eram mais altas; ou pelo menos havia o potencial de as gerar. Naquele tempo! A minha participação na CapitalBop prendeu-se muito com a escrita, também, mas fomos igualmente capazes de coproduzir concertos com o DC Jazz Festival, produzir o nosso festival. É uma associação com mais de 10 anos e como tal já fizemos muitas coisas. Não temos fins lucrativos e as pessoas começam a prestar atenção ao que fazemos, não só aqui, mas também com quem de fora quer estar envolvido com a comunidade de Washington. Permite-nos fazer parte de uma discussão mais alargada, que não se restringe exclusivamente a Nova Iorque e/ou Chicago. Em Washington, em Lisboa, em Filadélfia, no Porto, a música está em toda a parte. Nós estamos aqui, outros nos mais diferentes lugares, mas cada um interagindo, assumindo uma posição pela música na sua cidade.”

[Johnson Fellowship for Artists Transforming Communities]

“A bolsa foi-me atribuída pelo trabalho que desenvolvi em Washington. Um reconhecimento do que fiz, como tendo contribuído para a eliminação de limites na ‘paisagem musical’ da cidade. Por ter introduzido com sucesso o jazz novamente na discussão da música independente produzida na cidade. Foi um trabalho duro, porque Washigthon sofre de um problema grave de gentrificação e muita da herança foi apagada. Muitas comunidades foram apagadas. Todo o meu trabalho desenvolveu-se a combater esta realidade e usar o poder da improvisação como um veículo de mudança social. Direccionar a improvisação, desde o início, no sentido de provocar essa mudança. Exemplo de CapitalBop, mas também os sucessivos espaços para concertos que tiveram variadíssimas localizações, devido à gentrificação. Nos últimos anos, com a Union Arts, onde organizámos perto de 2000 concertos, apoiámos centenas de artistas, organizámos festivais, workshops, palestras encontros entre os elementos da comunidade. Outra vez, o espaço que tínhamos foi ocupado por um hotel, o que obviamente gerou uma forte contestação da nossa parte contra o governo local. Uma luta que não tivemos com o primeiro espaço, infelizmente, porque na altura eramos somente eu e o Aaron Martin Jr., músico já idoso, com quem gravei como Trio OOO, um dos meus primeiros discos. Só eu e ele lutámos pelo primeiro espaço. Quando quiseram fechar o segundo, já fazíamos parte de uma ‘força galvanizadora’ e, desta vez, fizemos com que a nossa voz fosse ouvida, como artistas que somos constantemente empurrados. A Union Arts foi o último espaço com aquela natureza em Washington. A bolsa decorre precisamente destas acções, de criar espaços para o jazz, para a música improvisada, de criar uma energia, um movimento.”

[A universidade]

“Sou actualmente professor na New School em Nova Iorque, onde organizo performances e conferências. Tenho que dizer, também, que fui para a universidade, mas não andei em escolas de música. O meu papel como professor é mostrar mais do que existe. A minha interacção como professor é muito mais uma troca de experiências com a comunidade e como a educação da música interage dentro da comunidade. Vi o lado bom e o lado mau dessa dinâmica. Vi como as escolas de música criam diferentes ‘cliques’ na comunidade, mas também vi que podem ser formas de limitar o acesso a determinados indivíduos, fechando-se em pequenos grupos e criando oportunidades para os próprios que outras pessoas jamais terão. Também vi, alguns alunos serem destroçados por professores e colegas. Faz parte de se ser jovem músico. Quando somos jovens vivemos da paixão, de uma forma idealista. Tal pode transformar-se em excesso de crítica e negatividade. Eu vivi isso. Mas também vivi como a escola pode criar a urgência, o foco e em última análise dar o tempo para que possas trabalhar as tuas matérias. No meu caso, deu-me a paixão e o rigor por aprender a tocar o instrumento. Trabalho, igualmente, de uma forma muito aprofundada com a comunidade jazzística, com os mais antigos, na estação de rádio (WPFW) por exemplo. Aprendi muito com estes músicos mais velhos, sob a sua asa protectora mostraram-me o infinito. Essa foi a minha escola de música. Ensinaram-me a escutar, ensinaram-me a compreender o sentido por detrás da música, analisá-la a partir de uma perspectiva de como ela é importante para a comunidade. O que vejo actualmente, como professor, é medo nos alunos. Como têm receio de serem eles, porque novamente há demasiado criticismo, demasiada insegurança. Há muito medo em querer ser aberto e fazer algo de diferente. Não quero parecer muito duro, até porque como já referi, o facto de não ter tido outro percurso deu-me uma perspectiva mais particular, única, daqueles que iam para Nova Iorque quando tinham 18 anos. Isto nota-se em tudo o que faço, como professor, músico, a forma de encarar a vida. Tive de fazer por mim. Eu consegui interagindo com a comunidade. Só uma última nota – eu advogo a importância da educação, mas também a partilha com a comunidade. São precisas ambas.”

[A escrita/crítica]

“O meu trabalho de escrita está muito relacionado com o meu trabalho na CapitalBop. Não sou como outros jornalistas que pertencem ao meio da crítica. Não tenho de responder a nenhum editor. As coisas que escrevi serviram mais como um complemento ao meu jornalismo de rádio. E como pessoa da rádio exigi a mim mesmo uma investigação mais profunda sobre a comunidade, sobre aquilo que ouço, o que é apresentado ao público, aos ouvintes. Este trabalho de selecção foi um processo maior com longas conversas sobre música. Escrever sobre música é uma forma de cultivar a minha visão holística, como investigador, músico, instrumentista, compositor, improvisador e como organizador de concertos. Novamente a relação com a comunidade, do músico na comunidade. Esta visão holística é entendida, da minha parte, na forma em que cada elemento, alimenta e alimenta-se de cada um. A música alimenta a investigação, a investigação alimenta a música. Ambas alimentam a comunidade.

[Percurso musical — o jazz]

“O meu primeiro contacto sério com um instrumento foi com o saxofone alto. Comecei a tocá-lo quando fazia parte de uma marching band. Uma forma muito tradicional de tocar o instrumento. Nesta altura, não havia jazz, nem blues. No Verão antes de entrar no ensino médio foi quando descobri o Miles Davis. Ouvia o Kind of Blue e o Bitches Brew. Constituiu um momento marcante. Foi quando disse a mim mesmo – esta é a música que eu gosto, que quero tocar um dia. No entanto, naquele tempo, parecia-me uma completa impossibilidade. Não havia uma cena de jazz. Eu vivia perto de Nova Orleãs, cheguei a ir ao New Orleans Jazz Festival, que não é de todo um festival de jazz, como nós entendemos o jazz. Senti-me desenraizado. Não havia ligação entre o que queria ouvir e o que me era apresentado como jazz. Não sabia como me integrar. Somente após uns dias em Washington já me sentia verdadeiramente a fazer parte de uma cena musical, também porque Washington é administrada por afro-americanos. Culturalmente era excelente. Era muito comovente para mim ver essa implicação na cultura, socialmente, politicamente. E claro na cena do jazz, o que me permitiu rapidamente interagir com os músicos locais. Foi isso que fez com que me tornasse um músico de jazz.”

[Percurso musical — o punk]

“O meu contacto com o punk deu-se antes da minha vinda para Washington, ainda no Mississípi. Dávamos sobretudo concertos no Mississípi, Alabama, Florida, Louisiana, inseridos no contexto do punk, que é bastante diferente da cena punk de Washington. A cena punk de Washington é sobretudo conhecida pela Dischord. Quando me juntei aos Laughing Man, que não era propriamente um banda punk, embora houvesse alguns elementos que o fossem. Era sobretudo rock, embora muito chegados à cena punk da cidade. O nosso disco foi distribuído pela Dischord e teve o apoio do Ian Mackaye. O punk é obviamente parte da minha formação musical, foi uma das formas como aprendi a tocar música. De novo, estando envolvido na comunidade punk fui-me embrenhando na cultura punk. Foi aí que adquiri esta sensibilidade para uma forma particular de fazer as coisas.”

[Tocar a solo]

“Vem de uma urgência interna. É uma forma de aprender a tocar contrabaixo. O contrabaixo não foi o meu primeiro instrumento. Onde cresci não tinha essa possibilidade. A primeira vez deu-se somente quando vim para Washington. Tocar a solo é uma forma de recuperar o tempo. Mas o meu projecto específico a solo – Works for Upright Bass and Amplifier – vem da minha experiência e interacção com a música electrónica-experimental, noise, bem como com a música improvisada. Não é simplesmente uma questão de ser a solo. É uma vontade em querer compor e fazer um disco que realmente ainda não tenha sido feito. Interagindo de uma forma eletroacústica ‘empurra-me’ para novas colaborações com vocalistas, performers, e neste momento, com o ensemble completo. O que faço essencialmente é feedback. Este trabalho a solo está relacionado com a minha pesquisa sobre a relação entre a música e o movimento. Uma demonstração de como utilizar o amplificador por si só, o amplificador como um instrumento electrónico e uma forma de interagir com o contrabaixo, tocá-lo de uma forma que ainda não o tenha feito. A procura de novas técnicas, desenvolvidas com integridade, de uma forma orgânica. É uma maneira de mostrar a força da improvisação, como gerador de mudanças sociais, que começam primeiramente em mim.”


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