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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/04/2024

Por uma lusofonia mais unida.

Luiz Caracol: “Acredito num Portugal que se mistura e que é mais rico na diversidade”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/04/2024

Luiz Caracol tocou pela primeira vez em nome próprio em Cabo Verde, algo que já desejava há muito. No palco do Atlantic Music Expo’24 apresentou alguns dos temas mais icónicos de uma discografia construída num espaço que se encontra entre as coordenadas culturais de Portugal, Angola, Brasil e Cabo Verde, país por que se apaixonou há quase trinta anos e por quem diz sentir um dever de gratidão.

Depois de ter protagonizado um dos momentos mais emotivos do festival, com uma sentida homenagem à luz de Sara Tavares, com quem partilhou estradas e afetos, o músico aceitou falar com o Rimas e Batidas sobre as origens da sua música e a sua relação com Cabo Verde, Angola e com o Brasil. Pelo caminho, abordámos ainda diversidade da música feita em Portugal e a complexa situação política do país, que o artista não deixou de mencionar no seu concerto, lembrando que cabe também aos músicos fazerem ouvir a sua voz perante a ascensão da extrema-direita e dos discursos de ódio. Palavras bem necessárias nesta contagem decrescente para os 50 anos do 25 de Abril, onde faz muita falta quem continue a agitar a malta.



É a primeira vez que estás a tocar em nome próprio em Cabo Verde. No concerto disseste que era algo que já desejavas há muito tempo e falaste num dever de gratidão pelo país. Qual é a tua relação com Cabo Verde e com o continente africano?

Os meus pais são portugueses, mas foram viver para Angola muito novos e eu sempre tive uma conexão muito grande com o país. Num primeiro momento da minha vida cresci com a cultura da África lusófona, embora também tivesse referências portuguesas porque os meus pais voltaram para Portugal na altura do 25 de abril. Obviamente que essa ligação acaba por ter um peso e eu cresci num contexto e numa cena muito multicultural. Depois, Lisboa é também uma cidade altamente inspiradora nesse aspeto. Temos gente de muitos lugares de África, sempre tivemos, e eu sempre me aproximei muito dessa realidade, a vida sempre me foi levando para aí. Eu já nasci em Portugal, mas cresci no meio de muita gente que veio para Portugal e isso influenciou-me muito, porque muitas pessoas mantinham os mesmos costumes de se juntarem, de haver muita música dentro de casa e muito convívio. 

As pessoas com quem cresceste eram sobretudo portuguesas?

Não. Havia famílias portuguesas que voltaram, mas famílias angolanas também. Aliás, eu sou criado também por uma avó de criação, que era do Lubango, e que teve um peso muito grande na minha vida. Depois mais tarde veio esta relação com Cabo Verde de que falavas, e também com o Brasil. Eu acho que a minha música assenta essencialmente neste quadrado entre Portugal, Brasil, Angola e Cabo Verde. São as minhas inspirações. 

E quais são as tuas primeiras memórias musicais, lembras-te? 

Lembro-me completamente e curiosamente nem são portuguesas. O meu pai gostava muito de música do Brasil, de bossa nova, do Caetano ou do Chico. A minha mãe tinha um fascínio por Duo Ouro Negro, e por cantores angolanos como o David Zé ou o Filipe Mukenga. Havia muito essas referências e na rádio também se ouvia muita dessa música. 

Cresceste com esse som a pairar?

Sim. Quando começas a tocar há um dia em que decides que é importante ires à procura de quem tu és realmente. Eu comecei a perceber que todas essas referências influenciavam muito a linguagem da minha música e isso levou-me por muitos outros caminhos. Acabei por tocar com a Sara Tavares por causa disso. Ela encontra-me num bar em Lisboa a tocar músicas de Cabo Verde e de Angola, já tocava baixo e guitarra nessa altura. Ela viu-me, foi falar comigo e acabei por tocar com ela durante muitos anos. 

Como é que aprendeste a tocar?

Eu estudei música um tempo, mas comecei como autodidata porque o meu fascínio pelos instrumentos vem de antes de começar a estudar música. A percussão foi a minha primeira paixão. Eu curtia muito ver a malta de Angola a tocar tambores, as dikanzas, as percussões dos sembas de quintal. Aquilo fascinava-me muito. E com o Brasil foi a mesma coisa, aquela cena da Bahia afro-brasileira, até relacionada com a capoeira e com o candomblé, sempre me fascinou muito. Depois, mais tarde, quando começo a ter vontade de cantar, percebi que a percussão não era um instrumento user-friendly para tocar e cantar ao mesmo tempo. Sentia que faltava a harmonia e comecei a tocar guitarra por causa disso. Mas como transito da percussão para a guitarra, acabei por usar a guitarra de uma maneira muito percussiva, no sentido de pôr alguma pulsação na mão. 

Voltando um pouco à pergunta inicial, o que representa para ti tocar pela primeira vez em nome próprio em Cabo Verde?

Vir aqui é muito importante para mim. Há quase 30 anos que eu sou influenciado pela música de Cabo Verde. Foi uma das culturas que descobri mais tarde, que não estava no berço, mas tem sido uma paixão profunda ao longo da vida. Já estive em vários países e os dois povos mais musicais que já conheci, tendo em conta a dimensão desses países e a quantidade de gente que toca, é Cabo Verde e Cuba. É impressionante. Claro que o Brasil também tem muita gente que toca, mas são quase 200 milhões de pessoas. Eu arrisco-me a dizer que é capaz de não haver uma família cabo-verdiana que não tenha uma ou duas pessoas que toquem um instrumento ou que cantem. É algo muito enraizado. Para mim tocar aqui foi uma espécie de retribuição.

No teu concerto falaste em retribuição e gratidão. 

Eu acho que é importante agradecer. Eu acredito num Portugal que se mistura — nós sempre nos misturámos com os outros, os outros sempre se misturaram connosco. Essa é a minha bandeira e agora mais ainda. É importante percebermos que somos mais ricos na diversidade e eu quero continuar a misturar-me e a permitir que se misturem comigo. 

Antes desta entrevista estava a comentar que a imagem que muitas vezes se projeta de Portugal para o exterior, do ponto vista musical, está muito associada ao fado e às suas derivações. Mas a verdade é que a música portuguesa sempre foi muito mais diversa e plural, com diferentes sotaques, vozes, cores e ritmos. Achas importante trazer a festivais como estes uma ideia mais diversa do que é hoje a música portuguesa?

Sim. Quando andava com a Sara na estrada percebi, por exemplo, que a francofonia conseguia ter muito mais foco na globalização da sua música do que nós conseguimos ter com a lusofonia. É muito mais fácil um músico de Angola “vender-se” apenas como sendo Angola, ou um músico de Cabo Verde como sendo Cabo Verde, do que tentarmos explorar a potencialidade destas ligações entre os países. Posso dar-te o exemplo de uma pessoa como o Pedro Coquenão, que admiro e estimo muito. Temos ambos esta ligação a Angola, ele nasceu lá, eu já não, mas temos esta conexão, ele mais no campo eletrónico, eu mais no campo acústico. Como nós, há muitos outros casos em que essas conexões já existem, mas não sabemos ainda projetar esta ideia da lusofonia. Obviamente que sinto um orgulho grande em vir aqui ao AME representar uma ideia de uma portugalidade misturada, representando-me a mim, mas também quem sente isto como bandeira. 

É inevitável não te perguntar sobre um aspeto de que falaste no concerto e que tem a ver com a situação política em Portugal, onde mais de um milhão de pessoas votaram num partido xenófobo e racista. Em Portugal temos assistido a uma afirmação musical cada vez mais plural e diversa, em grande parte protagonizada por afrodescendentes, e tem havido também esta afirmação cultural de uma Lisboa negra e crioula. No entanto, ao mesmo tempo, nos 50 anos do 25 de Abril e das independências, assistimos a crescimento da extrema-direita como nunca imaginámos. Como olhas para esta aparente contradição entre a cultura e a política e como vês o atual momento político em Portugal?

Eu acho que, historicamente, uma das coisas que mais separa a extrema-direita das esquerdas é que as esquerdas sempre estiveram mais conectadas com a cultura. Em relação ao que está a acontecer neste momento em Portugal, vemos que a extrema-direita cimenta o seu discurso no descontentamento das pessoas. Se calhar eu e tu também estamos descontentes com certas coisas, a questão é que eles sustentam o descontentamento no ódio. Aquilo que a mim me revolta é que a extrema-direita tem conseguido chegar a um tipo de pessoas que se calhar tem menos conhecimento de que, historicamente, vimos de um percurso de ditadura e do que isso significou. Tens muita gente com 20 e poucos anos que se calhar votou neles, e que não sabe que há 60 anos as mulheres não votavam.

Ou que nem podiam sair do país sem a autorização do marido.

Exato. Eu acho que há muita falta de conhecimento histórico de um processo pelo qual nós passámos. Eu tenho familiares que sofreram muito a ditadura, inclusive um tio meu que foi assassinado. É complexo porque muitas pessoas não têm esse conhecimento. Eu acho que em Portugal as pessoas estão divididas e há uma franja muito grande que foi conquistada pelo ódio e seguiu aquele caminho, muitas vezes talvez por ignorância ou por falta de interesse em saber o que está por trás. Agora, do nosso ponto de vista, das pessoas que defendem a cultura, o encontro e a mistura, eu acho que as nossas vozes vão soar cada vez mais alto e não os vamos deixar a falar sozinhos. Sinto isso completamente e talvez até já esteja a acontecer.

Eu sinto também uma certa desesperança, que pode ser algo momentânea, mas sinto que há muitas pessoas desiludidas e com falta de perspetivas perante o que aconteceu.

Acho que tens razão, mas acho que ainda há uma parte da cena cultural que tem consciência de que tem de existir um discurso de defesa da multiculturalidade e nós não nos vamos calar. Isso é algo que faz parte de Portugal, não vale a pena virem com discursos de purezas de raça que nunca existiram. É falta de conhecimento histórico. Nós misturámo-nos com muita gente diferente, que também se misturou connosco. Eu acho que há que lembrar e celebrar isso. Deve ser um discurso consistente, permanente, porque o conhecimento traz clarividência e a clarividência traz foco. É importante que as pessoas saibam e tenham noção de que nós, enquanto portugueses, somos misturados.

Depois do Ao Vivo no Namouche que planos tens para o futuro?

Confesso que já estou a compor outra vez, mas neste momento tenho muita vontade de levar este disco para a estrada porque é um disco recente. Eu sou muito do “ao vivo”, cresci a tocar e acho que me formei como músico no palco, mais do que em qualquer outro lugar. E este certame onde estamos acho que nos pode abrir portas para irmos para outras latitudes e longitudes. Estou muito feliz com essa possibilidade.


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