pub

Fotografia: Atlantic Music Expo
Publicado a: 09/04/2024

Cabo Verde respirou música ao longo de quatro dias.

O futuro à espreita no Atlantic Music Expo’24

Fotografia: Atlantic Music Expo
Publicado a: 09/04/2024

Amanhece cedo na Cidade da Praia e é praticamente impossível não despertar irradiado pela música que, desde as primeiras horas da manhã, percorre os cantos e recantos da Rua Pedonal, no Plateau, onde nos instalámos para acompanhar o Atlantic Music Expo, certame fundamental na afirmação da música cabo-verdiana, transatlântica e africana, e que por estes dias celebrou dez anos de existência. Uma década construída a pulso e dignamente celebrada na abertura do evento, no Auditório Nacional, com a homenagem a trinta profissionais e instituições responsáveis pela criação, organização e crescimento de um evento que, ao longo dos anos, foi sendo capaz de colocar alguns pauzinhos nas engrenagens da hegemonia cultural ocidental e anglo-saxónica.

Entre os dias 1 e 4 de abril, calcorreámos os trilhos possíveis de uma capital rodeada de possibilidades, embora o roteiro cultural planeado tenha sido frequentemente desafiado pelos encontros que foram surgindo, numa semana onde tanto pudemos assistir aos debates, showcases e concertos planeados pela organização, como demos por nós no terraço de um prédio a assistir ao poderoso batuku da Dona Tareza, uma tocatina de apresentação do novo disco da Nancy Vieira (com direito a entrevista que em breve aqui se publicará), ou encantados pela voz de Armando Soares que, no Avis, protagonizou a melhor versão que já assistimos da “Modéstia Tropical”, de Dudu Araújo. Segue-se, portanto, o relato possível de uma jornada não tanto à procura daquilo que está estabelecido, mas mais de quem, por estes dias, procura desbravar as possibilidades de um futuro que inevitavelmente só pode ser pensado com e a caminho do Sul. 

[DA HOMENAGEM A ANO NOBO À GRATIDÃO DE LUIZ CARACOL E AO FUTURO À ESPREITA DOS SIZAL E DE STE MANDELA]

O primeiro dia de showcases e concertos foi inaugurado no Palácio da Cultura Ildo Lobo, onde assistimos à primeira demonstração, confirmada ao longo dos dias, de que o futuro imaginado no AME nunca se dissocia do cultivo da memória e da sua resignificação no presente. Pelos corredores do evento, há um debate permanente, e em grande medida inescapável, sobre o futuro da música cabo-verdiana pós-Cesária Évora. Um debate particularmente premente num momento em que aos problemas estruturais relacionados com a precariedade e a informalidade do setor se associam novos desafios relacionados com a profissionalização dos músicos, a sustentabilidade do setor, os custos das digressões, a crescente concorrência de mercados muito populosos, ou mesmo o crescimento da extrema-direita e o seu efeito de contaminação em sistemas políticos crescentemente obcecados com o controlo de fronteiras, as restrições dos vistos, inculcando novas formas de autoritarismo nacionalista e nativista.  

Não há respostas óbvias para nenhum desses desafios, embora por estes dias não se sinta uma vaga de fundo de pessimismo ou de apatia entre músicos e profissionais da indústria. Pelo contrário, até se escuta algum otimismo, ainda que contido, e que muitas vezes remete para a própria resiliência histórica, social e política que é muita desta música expressa, narra e traduz. 

Diz-se que sem memória não há futuro e nestes tempos de presentismo e de amnésia histórica foi especialmente simbólico que o primeiro showcase do festival tenha sido dedicado a uma sentida homenagem a Ano Nobo (1933-2004), um dos mais prolíficos compositores cabo-verdianos, autor de mais de 400 composições, cantadas por diversas gerações de músicos e intérpretes, embora pelas quais nunca tenha recebido direitos de autor. Não se pode mudar a história, mas pode-se aprender com ela, ou mesmo nutri-la de alguma justiça poética, como aquela a que assistimos, com as composições do músico a serem interpretadas por Quarteto Ano Nobo + 1, coletivo herdeiro do seu legado, e de que fazem parte Fany, Afrikano, Nono, Quim Di Nanda e Pascoal. Sem muitos discursos preparados, o grupo preferiu deixar a música falar por si, construindo um concerto que procurou ser fiel à forma como o compositor tocava, formando uma tocatina construída à base do violão, do cavaquinho, da faca e do ferro e, claro, da cimboa, instrumento tradicional intimamente ligado à história política, social e cultural de Cabo Verde e que, segundo explicou Pascoal à jornalista Inês Nadais do Público, é o único instrumento de cordas da música cabo-verdiana que não foi importado da Europa ou das Américas, que pode ser inteiramente construído com matérias-primas locais e que se encontra em risco de extinção. A homenagem ao mestre partiu de “Ta Pinga Tchapo-Tchapo”, passou por “Badia de Fora” ou por “Linda”, um das mais cantadas pelo público, terminando com uma evocação a Amílcar Cabral que, tal como Ano Nobo, continuam vivos na voz e luta de quem os convoca ao tempo presente.



De Cabo Verde a Portugal, quem parece ter sido muito feliz no AME foi Luiz Caracol, também ele agraciado por uma certa justiça poética. Há muito que o músico ansiava tocar a solo em Cabo Verde, país pelo qual diz ter um dever de gratidão, embora tenha estado longe de imaginar que, para o fazer, teria de reaprender a tocar em tempo recorde, depois de ter cortado um dedo a poucos dias do evento; ou que o seu concerto teria de ser feito com instrumentos emprestados, depois da TAP ter impedido o embarque dos instrumentos da sua banda. Contrariedades que podiam ter cancelado a sua presença, não fosse a solidariedade, por vezes, conseguir ter mais força que a burocracia e que os azares da vida. Acompanhado por Pedro Carvalho e Gus Liberdade, Caracol parecia estar destinado a estar naquele lugar e nem o sol abrasador que se sentiu no pátio do Palácio impediu a primeira levantada do festival guiada por temas como “Sou” ou “Falhou na Dança”, que abriram um ambiente rapidamente aquecido com o balanço gingado de “Moro em ti”, “Isto” ou “Ser da lata”. Aproveitando o afeto do público, o músico lembrou a importância da diversidade que a música representa, agradecendo todas as aprendizagens que as pessoas de Cabo Verde trouxeram à sua vida e à sua música, e mencionando a complexa situação política portuguesa, onde um partido racista e xenófobo conquistou mais de um milhão de eleitores. A essa cultura do ódio opôs uma carta de amor dedicada Sara Tavares, amiga e companheira com quem fez estrada, e para quem o amor não tinha línguas, pátrias ou fronteiras. Com uma plateia lotada a homenagear a luz da cantora, Luiz Caracol protagonizou um dos momentos mais emotivos do festival. 



Horas depois, e já guiados pelo pôr do sol, todos os caminhos apontaram para a praça Luís de Camões onde se apresentavam os Sizal, coletivo oriundo de São Vicente, e composto pelos jovens músicos Henry Fernandes, Roberto Duque, Rayan Helel, Edénio Fonseca e Liriel Delgado. Não sendo fácil coordenar cinco vozes ao vivo, o grupo encontrou uma forma de estar em palco onde os diferentes timbres, flows, frequências e camadas sonoras se vão sobrepondo, sem nunca tropeçarem uns nos outros. Talvez a coreografia do grupo estivesse demasiado bem construída e ensaiada, perdendo espaço para alguma espontaneidade. No entanto, a harmonia coletiva é notória, permitindo que a expressão da individualidade de cada um dos membros nunca comprometa a construção do projeto no seu todo. Numa abordagem híbrida entre o digital e o acústico, o grupo navega em beats que traduzem as novas sonoridades urbanas aqui conjugadas com elementos acústicos, onde a linguagem do rap encontra uma dimensão coral, as influências dos ritmos tradicionais se conjugam com as “novas” tendências do trap ou do drill. A carreira ainda é curta, mas releva-se aqui um muito promissor encontro entre Cabo Verde, a influência do mundo latino e as novas sonoridades urbanas globais. 



Quem nos corredores do festival expressa preocupação com os riscos da uniformização da nova música cabo-verdiana a partir de influências urbanas globais, talvez deva olhar para exemplos como o Sizal, onde as influências urbana global não diluem as raízes e a identidade local, ou mesmo para projetos como o de Ste Mandela, que depois de uma longa jornada em coletivos nos Estados Unidos e no Brasil, e agora acompanhado pela produção de Ndu Carlos, parece ter encontrado uma identidade sonora singular, que é tanto nutrida pelas influências urbanas do hip hop e do reggae desenvolvido pelas comunidades negras das Américas, como se inspira nos ritmos tradicionais da música cabo-verdiana e africana. Uma conjugação ainda embrionária, é certo, mas repleta de possibilidades dentro do país e na diáspora, e que claramente conquistou as diferentes gerações que, no palco da Rua Pedonal, aderiram com entusiasmo a esta sonoridade que que é moderna e urbana, mas não indistinta, inspirando-se tanto na influência da música negra global, como na diversidade da música africana tradicional. 

[DA CONFIANÇA DE ZUBIKILLA SPENCER À LUZ DE ANNA SETTON E À ELETRICIDADE DOS PRIMITIVE]

A inauguração do segundo dia de showcases coube a Zubikilla Spencer, novamente no Palácio da Cultura Ildo Lobo, ao qual acorreram um número significativo de pessoas. Para além de “This is me”, o primeiro e promissor single que lançou em 2021, a cantora centrou-se em 03:04, o seu álbum de estreia, editado em 2023, e do qual destacou a distopia sonora de “Armaggedon”, a esperança de “Kel dia”, o rejuvenescimento redentor de “Amor Novo”, o sonho de “Linda”, terminando com a melancolia de “Nha Nomi Tristeza”, numa amargura que contrastou com os sorrisos da plateia, que parece ter sido mais aliciada pela performance da cantora do que pelo conteúdo da letra. Mesmo pisando terrenos experimentais, e que em parte fogem de uma certa cadência rítmica tradicional, a presença forte da cantora foi determinante numa performance onde exibiu versatilidade nos seus registos vocais, explorando vocalizações ora ensombradas por um certo negrume, ora inebriadas num balanço R&B bem mais luminoso. Talvez haja aqui mais uma possibilidade de exploração de um novo caminho entre os legados da música tradicional, os registos da neosoul, da música experimental e do jazz que contemporaneamente se faz acompanhar de novas possibilidades eletrónicas. 



Duas horas mais tarde, e ainda no Palácio da Cultura, foi a vez Anna Setton subir a palco acompanhada por uma banda bem capacitada para deixar a linguagem do jazz contaminar a MPB, em arranjos cuidadosamente esboçados para que a música sirva a voz delicada da cantora e a importância que esta atribui ao uso da palavra. Setton entrou em cena decidida a persuadir-nos de que o futuro pode ser um lugar mais bonito, tese difícil de negar perante o sorriso da sua filha, na frente do palco, a quem já quase no fim foi dedicada “O Baião da Dora”, tema que abre o seu disco homónimo de 2018. Antes de lá chegar passou por “A lenda do Abaeté”, “Revoada”, “Morena linda”, “Verde” ou a irresistível “Amor e Sal”. Acompanhada em banda, ou sozinha em palco só à guitarra, há genuína luminosidade na música e na performance da cantora brasileira sediada em Lisboa, que só ficou ainda mais evidente quando, para fechar o concerto, convidou Nancy Vieira, que assistia showcase na primeira fila, interpretando juntas “Um pincelada”, composição de Teófilo Chantre e Vitorino Chantre, eternizada na voz de Cesária, aqui também homenageada num momento mágico entre Cabo Verde e o Brasil. 

Numa tarde e noite onde também passamos pelos recomendáveis concertos de Le.Panda (do Quebec), Insolito Universo (da Venezuela), Giuliano Gabriele (de Itália), ou Brown Rice Family (do Japão e Estados Unidos), foi impossível não sermos também arrastados pela multidão que se dirigiu ao palco da Rua Pedonal para ver os Primitive, histórica banda rock da ilha de São Vicente, com carreira há mais de duas décadas. Agraciados por uma grande bandeira de Cabo Verde hasteada entre público, os Primitive asseguraram o momento mais elétrico, sujo e distorcido do festival, revelando que o grunge também passou pelas ilhas, misturado com o reggae e o ska, e sempre em kriolo, para que não se esqueça qual a raiz e a história da energia que se sente em palco. Do clássico “Rock Funana”, passando por “Kriola mansa”, “Festa” ou “Cabo Verde”, não falou força a este coletivo elétrico que agradeceu a todos os amigos e inimigos que os fazem continuar em palco vinte anos depois. 

[DA TERNURA DE MAURA À IDENTIDADE DE KATIA SEMEDO, DO NOVO SEMBA DE KLAUDIO HOSHAI À SURPRESA DE AZÁGUA]

A abrir o último dia do festival deslocámo-nos, mais uma vez, ao Palácio da Cultura Ildo Lobo para assistir ao showcase de Maura, artista cabo-verdiana a residir nos Estados Unidos, e que se estreou a cantar na sua terra-mãe. Dona de timbre grave e sentimental, contrariou os nervos da estreia com uma banda que lhe deu segurança, permitindo-lhe expor uma voz carregada de ternura e alimentada pela sementeira dos terrenos da soul, do R&B e dos ritmos tradicionais. Maura parecia estar a aproveitar o momento e não apenas a mostrar os seus dotes vocais, interagindo frequentemente com a plateia e controlado com eficácia os exigentes jogos de respiração de quem se propõe cantar em diferentes ritmos e intenções. Terá ajudado, também, escolha do repertório, trazendo a sua interpretação de temas como “Lapidu na Bo” e “Tunuka” de Mayra Andrade, “Balancê” e “Ponto de luz” de Sara Tavares, e também alguns temas originais que só pecaram por serem poucos. 



Quem, pelo contrário, trouxe o seu reportório bem seguro ao AME foi a cantora Katia Semedo, um dos destaques do dia não só pelas evidentes qualidades vocais, mas porque as suas palavras estão carregadas de história e raízes profundas. Caminho de São Tomé, o seu álbum de 2023, é também um exercício de memória histórica que liga a jovem cantora à sua herança familiar, nomeadamente aos seus avós que, na década de 50, na sequência das secas e fomes que se sentiram no arquipélago (e a que o Estado colonial português mostrou uma desumana indiferença), descobriram o caminho para São Tomé como serviçais contratados nas roças de café. Katia é filha de pai cabo-verdiano e mãe são-tomense, tendo uma biografia familiar que é também uma história partilhada entre dois países que Katia quer continuar a lembrar e a inscrever no futuro. Um futuro que se projeta na sua voz elegante capaz de servir a morna e o funaná, a coladera, o batuku ou o kola san jon, através de arranjos modernos e que almejam um sentido futuro para a música tradicional. O resultado foi uma plateia rendida e um auditório que se fez pista de dança comunitária carregada de história e futuro.



Foi também com a dança que continuámos, algumas horas depois, num dos showcases mais felizes do festival. O protagonista foi Klaudio Hoshai e a sua sedutora abordagem ao semba e à kizomba, numa intenção vocal e rítmica que tanto faz lembrar a inescapável herança do kota Bonga, como a elegância vanguardista de Paulo Flores ou o pioneirismo de Eduardo Paim. O maior desafio do músico é o de não ser visto apenas como uma réplica dos mestres, mas antes como alguém que dá continuidade aos seus legados. O caminho iniciado é, para já, bastante promissor, numa tentativa de atualização da música tradicional angolana interpretada a partir da sua própria história desenrolada entre as ruas de Angola, a formação em França e a coragem da luta em Lisboa. Com o seu timbre rouco, faz da palavra um elemento fundamental que tanto se pode expressar nas línguas nacionais de Angola, como o quimbundo, como também em português. Entre o ritmo irresistível e os dons de storyteller, Hoshai conquistou rapidamente a plateia que se juntou no palco da Rua Pedonal, particularmente com “Pió Pió” e “Emigrou”, esta última sobre a luta e a coragem da imigração e da diáspora. Feliz por estar a tocar num país irmão, o músico sentiu-se realmente em casa, não só pelas afinidades históricas entre Angola e Cabo Verde, mas também pela sua herança familiar já que a sua avó era natural da Ilha do Fogo. O abraço do público só terá confirmado que este é um vínculo para manter. 

Numa noite onde também passamos pela rumba congolesa de Jocelyn Balu e pela conjugação da morna estilizada com as linguagens urbanas do hip hop e do drill protagonizadas por Elly Paris, a maior surpresa ficou guardada para o fim, quando já todos os caminhos confluíam para a Praça Luís de Camões, numa enchente de público que se dirigiu para o encerramento ao AME e, logo a seguir, para a abertura do Kriol Jazz. Pernante um público numeroso, o nosso caminho em direção ao palco foi interrompido pela exposição KUTUDU, no Museu da Educação, com trabalhos de importantes nomes da cena cultural cabo-verdiana contemporânea como Amadeo Carvalho, Cida Lima, Fattú Djakité, Maisa Koening, Érica Silva, Gustavo Duarte e Ellen Barbosa. Mal entrámos no edifício, fomos imediatamente aliciados pelo som de um soturno showcase que não estava no programa e que era protagonizado por alguns dos membros dos Azagua, coletivo onde confluem alguns dos mais promissores nomes da música cabo-verdiana contemporânea, desde logo Fattú Djakité, cuja voz empoderada e a presença soberana, só alimentou, ainda mais, a esperança de que, mais cedo que tarde, a possamos numa digressão em Portugal com o seu magnífico “Praia-Bissau”.



E assim se encerra o resumo possível de um roteiro de descobertas, encontros e algumas projeções daquele que, se for nutrido com inteligência, pode vir a ser um emergente ecossistema da música transatlântica feita a partir de África, e que tem tudo a ganhar com a ligação às diásporas onde igualmente se busca um horizonte que não oblitere a memória, mas que antes a projete nos cruzamentos das fronteiras onde se inventam novos lugares. Haja otimismo que o futuro também está a passar por aqui.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos