Ao sétimo concerto dos 11 programados para os 21 Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, do Festival Jazz ao Centro, a música volta ao lugar da irrepetibilidade. Assumida prestação em improvisação a cargo de Luís Vicente (trompete, flauta e campainhas), William Parker (contrabaixo) e Aleksandar Škorić (bateria, kalungu e adufe). Domingo à noite, à hora a que tantos assistem em comuns ecrãs a mais do mesmo, outros vieram e encheram o Salão Brazil para fruir o que nunca se repete, música sem amarras e de criação momentânea.
Primeiras vénias rendidas ao mago Parker (n. 1952), em plena actividade e que acumula à data um volume de edições discográficas que ascendem a 198 registos. Impressionante numa vitalidade que teima, e ainda bem, em continuar. Alguém que dentro da sua veterania faz da ligação a bem mais jovens músicos um sábio elixir da juventude. É o caso de Škorić, baterista dos Balcãs a residir na Bélgica e com recentes ligações à cena jazz portuguesa, com o recém-editado registo Now…Spos!, juntamente com José Lencastre (saxofone alto) e Miguel Petruccelli (baixo), a cargo da Phonogram Unit. A amizade com Vicente, que se estende para além dos palcos, revelou o trompetista em conversa no pós-concerto a alguns de nós curiosos por, pela primeira vez, ver e ouvir o desempenho de Škorić, que levou à partilha de histórias como a da digressão que Alek fez como baterista no trio de Charles Gayle (1939-2023). Aconteceu a convite e como generosa resposta de Gayle à confissão de Škorić da profunda admiração musical em missiva enviada ao malogrado saxofonista. É também feita disto a fascinante acção do jazz, com a generosidade, cumplicidade e partilha a serem constantes imprescindíveis nas equações da música e da vida. Por último, sem isso ser um lugar restante ou menor, Vicente conta já com uma profícua e incansável vida musical como assumida figura da cena improvisada europeia, em plena digressão com Parker com 15 datas efectuadas ao momento.
Vicente é luz inquieta em permanente borbulhar, Škorić é efusão lávica, e Parker absolutamente totémico. Esta é a estrutura estabelecida desde os primeiros instantes da noite dominical no Salão. Fica-se na espuma de uma efervescência contínua que emana da ação trompete-peles-címbalos, e que não perde o rumo da verticalidade conduzida pelas quatro cordas graves. O som de Parker é um certeiro relógio de pêndulo, função metrónoma para o trio, simples, directo e caloroso. Incessante, rompendo a cadência do movimento de dedos apenas para passar ao arco. Isso faz um decréscimo de efervescência, no qual usufruímos do som da mudança, Vicente descansa os dedos e troca os pistões do trompete para um vozear longo através da mais ancestral das flautas, uma flauta vertical, de sopro difícil em parcos orifícios. Škorić serve-se de outro ancestral instrumento, oferecido por Vicente confessou-nos, um adufe de Monsanto. Ainda que dele tenha feito uso comedido, o que pode entender quer por estar a iniciar-se ou até mais porque já umas quantas adufeiras nos colocaram o instrumento em vibrantes outros patamares. Até então a música quis-se de intensidade desmedida, desde dedos moderadores em sobe e desce constante de pistões, num som projectado em aberto ou modelado por surdinas, às baquetas efusivas que se iam fazendo do baterismo escutando uma conversa, literalmente, pelos cotovelos, que eram amiúde convocados para modelar o vibrar das peles. Outro belo modular foi o trazido pelo kalungu, tambor falante africano percutido por uma baqueta curva e que aqui prestou uma imitação às vozes em discurso do trompete. Para as gentes do oeste-africano é tradicionalmente usado para atingir tonalidades da linguagem cantada. Esta foi a linguagem do trio nesta noite em previsível tema único. Num prenúncio de final, o descanso da efervescência era um chegar tranquilo e sereno. Mas houve uma peça mais, arrancada entre bateria e contrabaixo, dos dois músicos que nunca pararam na noite. Retomada a actividade borbulhenta desse gás de trompete emanado estava restabelecido o trio na efervescência do efémero, sem passos em volta, em ascensão uma outra vez, repetindo-se somente no modelo da intensidade da peça, embora de menor extensão que a primeira, terminando em regime de um contemplativo decréscimo convocando um descanso merecido que sininhos nas mãos de Vicente anunciavam estarmos lá.
O que acontece no Salão fica no Salão, serve a máxima para outro lugar, sempre que a música se ouvir improvisada. E como num outro momento maior desta sala o saxofonista-poeta filósofo dePlume nos ensinou: “A música fazemo-la juntos e por isso é sempre diferente”. Saboreamos isso mesmo outra vez, sem repetir o que seja, apenas na vontade da beleza.