pub

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 29/04/2021

A liberdade e as suas infinitas possibilidades.

Luca Argel no Teatro da Trindade INATEL: sambando na cara de quem censura e oprime

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 29/04/2021

Há encontros que estão destinados a acontecer, e nem uma pandemia global os consegue adiar por muito tempo. Um desses encontros deu-se esta terça-feira, quando Luca Argel subiu ao palco do Teatro da Trindade INATEL, em Lisboa. A espera adensava-se faz tempo, depois do concerto planeado para o ano de 2020 naquela mesma sala ter sido cancelado devido à pandemia. Mas como o que tem que acontecer tem mesmo muita força, outro convite surgiu, e ali estávamos nós para finalmente partilhar o tão aguardado momento.

O concerto inicialmente planeado projectava-se como uma espécie de encerramento do ciclo de Conversa de Fila, o álbum que o músico havia lançado no ano de 2019. Na mala já tinha um novo trabalho, entretanto lançado: Samba de Guerrilha (2021). O lançamento mudou-lhe o alinhamento e foi com o novo álbum que Luca Argel inaugurou o encontro, brilhantemente acompanhado por Carlos César Motta na bateria, Neném de Chalé nas percussões, Cláudio César Ribeiro na guitarra eléctrica e Pri Azevedo no piano e acordeão.

“Samba do Operário” e “Pesadelo” abriram o alinhamento com força, emoção e potência. A sala é conquistada de imediato, mostrando que Luca Argel, mesmo acompanhado de banda, não perde a intimidade com que canta quando está só com a sua guitarra. Quando o segundo tema acaba, Luca levanta os braços, esboça um sorriso contagiante para a sala: “Finalmente! Finalmente!”. O grito era dele e era também nosso, que regressávamos aos concertos, com o privilégio de assistir àquela voz sensível e tocante, íntima e rebelde, compreendida por uma banda que se estreava ao vivo com a coordenação e o instinto de quem toca há décadas em conjunto. Era gente feliz naquele palco, e gente emocionada naquela plateia.

Samba de Guerrilha foi o centro do concerto, ainda que o alinhamento tenha cruzado músicas dos seus álbuns anteriores, nomeadamente de Conversa de Fila (2019) e Bandeira (2017), sem nunca perder a coerência da narrativa que era guiada pelo mais recente trabalho.

“O que tem de acontecer, acontece”, lembra Luca Argel, antes de fazer a primeira incursão a Conversa de Fila. Com o tema “Gentrificasamba” avança para um samba que anima e inspira os combates contra a gentrificação que força o fecho do “livreiro”, da “quitanda”, do “florista”, fazendo com que a cidade “vire hotel para turista”. Luca fala do Porto e da Lisboa dos nossos dias, mas regressa a Samba de Guerrilha para nos lembrar que aquilo que hoje designamos por gentrificação corresponde a processos sociais, históricos e políticos há muito conhecidos pelas populações pobres e negras do Brasil. A elas é dedicada a música seguinte, “Praça Onze”, onde se homenageia a Praça Onze de Junho, no Rio de Janeiro, berço dos primeiros sambistas e de convívio e encontro de gente pobre e de luta, que o poder considerava suja e perigosa. A praça já não existe fisicamente, destruída pela construção da Avenida Presidente Vargas. Mas em certo sentido continua a existir, ali mesmo no Teatro da Trindade, onde Luca Argel a canta e celebra.

O exemplo de Praça Onze ilustra na perfeição um dos aspectos mais interessantes e emocionantes do concerto Luca Argel: a sua missão implicada de fazer da música um instrumento de memória, capaz de cruzar tempos, convocar públicos, enfrentar o poder e procurar futuro. Aqui estamos, em 2021, a ouvir a história da Praça Onze que nos anos 40 o poder político quis apagar da memória, mas também a história de João Cândido, o Almirante Negro que organizou a Revolta da Chibata em 1910. A história desse herói aparece em “Almirante Negro (O Mestre-Sala dos Mares)”, tema original de Aldir Blanc e João Bosco que a ditadura brasileira tentou censurar. Não conseguiu, e aqui está ela, mais uma vez, agora na versão de Luca Argel, cantada sem censura, tocada para nós, que a ouvimos e com ela aprendemos.

No concerto viajamos ainda por temas de quotidiano, sobretudo oriundos de Conversa de Fila, que é samba de sorrisos e bom humor. Mas não sem Luca Argel nos lembrar, citando Beto Sem Braço, que o samba vem do sofrimento de uma classe baixa que usava a festa para espantar a miséria. O samba de Luca Argel não tem fronteiras, nem geográficas, nem estéticas. É homenagem e reinvenção, tradição e rearranjo. E o público vai-se levantando, subtilmente, aqui e ali, mexendo os ombros com cautela, como que a testar se começa a ser hora de voltarmos a dançar juntos. Talvez ainda não seja, mas com uma certa esperança que ecoa nos corpos sabemos que já faltou mais.  

Num tempo em que tantas vezes a esperança cede perante o pessimismo, que o ódio bloqueia a solidariedade, que os muros erguem novas fronteiras, ouvir Luca Argel e a sua banda é uma experiência libertadora. Uma música que é linguagem universal e comum, transportando a memória do Brasil que é também nossa, que sabemos que nem os oceanos, nem as fronteiras, dividem lutas e patrimónios comuns. Foi isso também que Luca Argel lembrou quando pediu uma salva de palmas para o 25 de Abril. Estamos todos e todas no mesmo samba e na mesma guerrilha. Quando o concerto termina, e regressamos a casa, só uma coisa nos vem à cabeça: ainda bem que Luca Argel fez também de Portugal a sua casa.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos