LP / Digital

L'Rain

Fatigue

Mexican Summer / 2021

Texto de Pedro João Santos

Publicado a: 03/01/2022

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Agnosticismo: uma corrente de pensamento que não vê a dúvida como um precipício. Algo pode ou não existir — quizas, quizas, quizas —, mas não está ao alcance do ser humano e da sua microscópica memória RAM. À falta de certezas irrevogáveis, acredita-se, com reservas, na crença. Ou seja; “nunca vi, mas talvez paire por aí e, enquanto não me aparecer à frente, deixem-me estar sossegado”.

Numa edição da lamentavelmente descontinuada Tone Glow, newsletter sobre música experimental, Nick Zanca descreveu L’Rain como um projecto agnóstico. Não em relação ao divino, nem à materialidade sónica (seria difícil, porque cogito ergo audio, ou lá o que disse Descartes), mas sim “genreagnostic”. Faz sentido. Taja Cheek, a timoneira dessa aventura que dá pela graça de L’Rain, cresceu num medley rico de cenas musicais. Tão rico que sugere uma inocência brilhante, onde o preconceito e o clubismo, coisas do mundo corriqueiro, nunca teriam lugar na arte.

O rock alternativo das Breeders, os versos melífluos do curandeiro Common, o clube de jazz do avô, a cena DIY na Brooklyn natal, as atmosferas progressivas de Brandy… Não, a frase não se completa com a indicação dos minutos e segundos de Fatigue, o segundo álbum de L’Rain, onde podemos identificar tal-qualmente essas inspirações. Talvez o disco homónimo, de 2017, fosse mais propenso a essa análise: um sprint supersónico por harmonias quase reichianas, temperos de jazz elástico, trechos de house hiperactiva tipo Daphni. Tudo referências da nossa imaginação fugaz, sem importância nem real consequência. Enquanto esquissamos ligações fictícias, Cheek faz música sem manual de normas, colagens sonoro-mentais com resíduo pegajoso, estímulos sem ciência discernível. 

Podemos imaginar Fatigue como uma caixa negra. Conhecemos algumas das entradas — a formação clássica da artista (em violoncelo e piano), a experimentação com contornos soul e o psicadelismo frio que os arrefece, os excertos não identificados de gospel — e cada ouvinte saberá da sua saída (emocional, estética, whatever). Só que as engrenagens interiores parecem girar numa lógica própria, entre códigos e sentimentos que nunca se consolidam numa linguagem. Talvez Joviale a conseguisse entender bem, ou uma Lianne La Havas mais abstraccionista; talvez essas comparações sejam mesmo uma estupidez pegada (ya, são).

Cada faixa é um bolbo de natureza diferente. “Fly Die”, a primeira faixa, cintila, empurra e sussurra, entre sirenes e arrepios que fazem pouco para abrir o jogo. “Find It” e “Kill Self” são grooves sem conforto: indecisas entre uma pulsação sôfrega e uma malha em estado de ectoplasma. Ora desaparece (“IV”), ora se derrama num piano de revelações instantâneas (“Need Be”); no título da faixa com mais streams, a líquida e livre “Two Face”, Cheek pode estar a piscar-nos o olho. No final, se há coesão ou não, essa profunda dualidade ou ambivalência parece sempre uma ferramenta para colher o grande prazer. 

Onde fica o género? Discussão cliché, tanto de quem rotula como de quem é alérgico ao rótulo. Os agnósticos ficam dispensados de responder — são espertos. Quem se disponha a ouvir Fatigue, à sua própria responsabilidade, pode ter a mesma epifania de Mejijs na plataforma RateYourMusic, que se confessou a 26 de Dezembro, altura de rescaldos do fim de ano: “Passei isto à frente, pensando que era mais um projecto desnecessário de soul experimental, lol” — como se houvesse algo de inerentemente desnecessário em soul experimental — “[mas] estava errado. Esta merda é fantástica.”

Mas nós ainda nos atrasámos mais. Porque é que esta crítica não foi publicada em Junho, data de lançamento de Fatigue? No que toca ao desabrochar imediato de uma obra de arte, alguns de nós também somos agnósticos…


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