As águas de março, de fato, fecharam o verão brasileiro. Os versos de “Águas de Março”, interpretada por Elis Regina e Tom Jobim, se materializaram nos dois primeiros dias do Lollapalooza Brasil 2024. Depois de um calor incessante, a chuva chegou, porém, não agradou quem foi ao Autódromo de Interlagos, em São Paulo, para ver seus ídolos de perto. Na sexta-feira, 22, e no sábado, 23, a água parou de cair poucas vezes. Somente no domingo, 24, que o tempo (mesmo fechado) melhorou. Mesmo assim, não melhorou a situação do lugar porque a lama tomou conta, fazendo os presentes lembrar — inclusive Gilberto Gil — de festivais históricos (Woodstock de 1969 e Rock In Rio de 1985). No entanto, a comparação não ultrapassa esse limite.
Na sua 11ª edição, a primeira sob a organização da Rock World, que também é responsável pelo Rock In Rio e The Town, o Lollapalooza trouxe ao Brasil o Blink-182 para uma performance nostálgica e marcante, que fechou o primeiro dia com um alto nível de adrenalina, deixando os fãs em frenesi e colocando o trio Tom Delonge, Mark Hoppus e Travis Barker entre os mais aclamados dos três dias.
Apesar da quantidade de atrações internacionais, o meu foco foi acompanhar os brasileiros, principalmente na sexta e no sábado. Muito antes do Blink, no palco 2, o rapper Dexter chamou a atenção para o sistema carcerário brasileiro (o terceiro maior do mundo), mostrando como a partir de uma ressocialização real conseguiu se tornar dentro da prisão um dos MCs mais relevantes do rap BR. Na sequência, a cantora Luísa Sonza levantou um público ainda se ambientando, mas o que mais viralizou foi a crítica que fez ao jornalista Guilherme Guedes já nos bastidores, quando o mesmo foi entrevistá-la durante a transmissão na TV, e a artista lembrou que o repórter comentou sobre ela gritar ao interpretar suas canções ao vivo, fazendo uma comparação com Demi Lovato.
No final da tarde, início da noite, Marcelo D2 fez sua roda de samba no Palco Alternativo, acompanhado da banda Um Punhado de Bamba. O álbum IBORU serviu como fio condutor do espetáculo, mas não ficou só nele. O “Novo Samba Tradicional” de D2 foi dividido em 5 atos, assim como no filme IBORU: “LUZ DO REPENTE”, “PATOTA DE COSME”, “SONHO MEU”, “O PODER DA CRIAÇÃO” e “DEIXA CLAREAR”. Cada ato tinha um propósito, da apresentação dessa nova experiência sonora de samba com rap, incorporando elementos de jazz e bossa, a exaltação da cultura afro-brasileira, dos terreiros, da macumba, das matrizes africanas. Assim, Marcelo D2 também introduziu para aquele público diverso um universo pouco explorado no mainstream musical brasileiro. Isso sem contar a energia, o figurino e a estética do cantor/MC, que pode até virar tendência.
Seguindo essa mesma potência, o BaianaSystem literalmente colocou fogo na chuva e no frio. Do início ao fim, a chuvarada não parou. Na verdade, ficou mais intensa com o calor transmitido por Roberto Barreto, SekoBass e Russo Passapusso. Dentro de um festival com diversos artistas internacionais, o Baiana competiu diretamente com o The Offspring, que ao mesmo tempo tocava no palco 1. Antes deles, Jungle fez o baile com um show de luzes, deixando os seus integrantes em segundo plano, na sombra. Foi explosivo, mas não chegou a níveis tão altos como o do BaianaSystem. A todo momento, Russo pedia valorização da cultura brasileira e também da América do Sul (e Latina), repetindo: “A nossa cultura em primeiro lugar”. Para representar o lado hispânico da América Latina, a cantora chilena Claudia Manzo foi convidada para protagonizar “Sul-Americano”, além de fazer a segunda voz ao longo da apresentação.
Ainda com a chuva refrescando a cidade de São Paulo, depois de ondas de calor fora do normal, os shows de sábado foram abertos com o punk Supla e a calma, serena, tranquila e talentosa Tulipa Ruiz. Como cheguei ao festival perto das 14 horas, não consegui acompanhar esses dois primeiros — como muitos outros, pela quantidade e a dificuldade na locomoção de um palco para o outro, problematizada ainda mais pelo barro e a distância dos palcos (em apenas 2 dias, andei 27 km). Nesse primeiro momento, uma das apresentações mais esperadas era da MC Luanna.
Conquistando aos poucos seu espaço dentro do rap BR, com suas letras afiadas, ela não teve sorte na sua estreia em um dos palcos principais. Por problemas técnicos (isso é o que foi alegado pela organização), o show dela começou com 20 minutos de atraso e teve de ser interrompido antes do final. Mesmo assim, entregou com maestria, tendo em vista as limitações, inclusive de microfone, que teve que dividi-lo com a também rapper/cantora Duquesa, quando esta foi convidada para o featuring. Em um vídeo publicado horas depois no Instagram, Luanna disse que os problemas foram maiores do que o anunciado. Porém, decidiu não se aprofundar no assunto. Também não foi possível apurar os detalhes porque, de última hora, a imprensa que não fazia parte do pool de mídias parceiras não teve acesso aos bastidores para entrevistas, mesmo as pré-agendadas.
Assim que a MC Luanna foi interrompida pelo horário, no palco 1 (do lado, mas em outra extremidade), BK entrou com JXNV$, seu beatmaker e dobra nos shows, três back-vocals e o DJ. Considerado hoje um dos MCs mais importantes do Brasil, o carioca não levou para o Lolla o aclamado show de ÍCARUS, o recente álbum dele. Nem por isso deixou de levantar quem esperou só para vê-lo e também aqueles que ficaram ali só por curiosidade. O ponto alto aconteceu quando ele tocou “Bloco 7”, chamando geral para levantar as mãos e balançar, porque aquele era um show de rap. O único convidado ao palco foi seu parceiro musical de longa data Luccas Carlos. Juntos, cantaram os hits “Planos” e “Música de Amor Nunca Mais”.
De certa forma, BK colocou a régua lá em cima. Quando terminou, eu parti para o show do Xamã, porém não empolgou, a não ser quando entraram Major RD e Leall. A Jessie Reyez também conseguiu envolver a plateia. Mas os destaques da noite fria e chuvosa de sábado foram MC Kevin o Chris, Limp Bizkit e a banda de rock brasileira Titãs — com sua turnê de despedida. Paralelo a estes teve Thirty Seconds To Mars e Kings Of Leon. O funkeiro Kevin o Chris fez sua estreia oficial no Lollapalooza depois de participar, cinco anos atrás, como convidado do Post Malone. Do começo ao fim, ele soltou um hit atrás do outro, de “Vamos pra Gaiola” a “Evoluiu”, passando por “Tá OK” e clássicos do funk do Rio de Janeiro. Estava nervoso, mas não deixou o fogo apagar. Já Limp Bizkit e Titãs fizeram um revival dos melhores momentos do rock and roll. Tem quem fez roda na lama, bateu cabeça e até chorou — no caso dos Titãs, quem viu, viu.
No último dia de Lollapalooza, a chuva decidiu dar uma trégua. Não que isso tenha mudado o cenário, porque o lamaçal ainda dificultava a movimentação e tirava todo o brilho dos looks preparados especificamente para o evento. O palco que era dedicado à música eletrônica foi tomado pelo rap e o funk, abrindo com DJ Subúrbio, MC Soffia, Vulgo FK + MC Dricka, TZ da Coronel + Oruam. Os dois últimos chamam a atenção pela consistência da performance (mesmo com problemas técnicos e atrasos) e também pela polêmica que foi gerada por causa da camiseta do Oruam. A mesma tinha o rosto do pai do trapper estampada, seguida da palavra liberdade. O burburinho caiu nas redes sociais porque Marcinho VP, o pai do Oruam, é um traficante brasileiro, que está preso há quase 30 anos por diversos crimes. No seu desabafo por escrito, publicado no X e Instagram, Oruam disse que aquele era “apenas um grito de um filho com saudades do pai”.
Na sequência, Rael tocou seus sucessos no palco Alternativo, recebendo a participação de Emicida e Mano Brown (Racionais MC’s). Colado nele veio Gilberto Gil com todo o seu carisma. Simples, sem muita pirotecnia, Gil fez uma apresentação digna de quem é referência para quase todos os outros músicos que vieram depois dele. Sempre recebendo o amor do público com um “Gil, eu te amo”, ele dava uma atenção e retribuia o amor, dizendo que se não fosse por eles não estaria ali. Também chamou a atenção para a plateia formada por jovens. Pela idade, 81 anos, Gilberto Gil esbanja força e vitalidade encantando pessoas de todas as faixas etárias.
Na sua primeira apresentação no Brasil, Omar Apollo sentiu-se em casa. Para aqueles que não o conheciam, o cartão de visita superou as expectativas. Porém, a estrela da noite iria entrar às 21h30. Antes dela, Sam Smith mostrou porque é tão aclamado ao redor do mundo. A junção de performance, cenário, banda e presença de palco, com trocas de roupas, levou todos ao delírio. Não tem como negar que Sam sempre mantém seu trabalho em alto nível, mas por não acompanhar tanto o pop não imaginava o grau de solidez que a sua obra tem. Dessa forma, podemos dizer que dos “gringos” o show de Sam Smith está entre os 3 melhores pelo conjunto da obra. Mas a coroa é de SZA. Pelo jeito nem ela sabia o tamanho que seu trabalho tinha (e tem) no Brasil.
De todos os shows, o de SZA foi um dos únicos que o público cantou junto quase todas as músicas, como se fosse a voz de apoio dela. Um relatório da organização do Lollapalooza revelou que SZA quebrou o recorde de maior público na história do evento no BR, reunindo cerca de 117 mil pessoas. Toda a produção, baseada no álbum SOS, foi impecável. Os vários cenários criados por jogos de luzes e projeções, tendo o mar como cenário principal, ajudaram SZA a contar suas histórias, muitas sobre desilusões amorosas. Durante o tempo todo ficou com o mesmo figurino: shorts, uma camiseta básica verde com a bandeira e a inscrição Brazil, e botas de cowboy. Isso não quer dizer que brilhou menos, porque fez até dança com dois facões na mão. Tocando nos corações, inevitavelmente, a cantora levou muitas pessoas ao choro, principalmente em “F2F”. Talvez ela tenha entendido que quando o brasileiro ama um ídolo, ama de verdade. Ela já está aprovada para se tornar uma cidadã honorária do Brasil.