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Fotografia: Fausto da Silva
Publicado a: 29/04/2025

Novas composições na alquimia dos samples em liberdade.

Ligados às Máquinas na Oficina Municipal do Teatro: um sonho bem real em dia muito especial

Fotografia: Fausto da Silva
Publicado a: 29/04/2025

Dão pelo nome que aponta para uma dimensão fractal — Ligados às Máquinas. São isso porque este colectivo de compositores e músicos vivem melhor suportados pelos mecanismos maquinais que lhes conferem mobilidade e também por transmitirem a sua criatividade musical operando comandos que disparam trechos de musica pré-gravada. Na prática, resultam numa prodigiosa orquestra de disparadores de samples

Em palco sob a forma de um semi-círculo, os Ligados às Máquinas são compostos (da direita para a esquerda) por Luís Capela, Mariana Brás, Hélia Maia (voz), Andreia Matos, Pedro Falcão (no aro), José Miguel Morgado, Sérgio Felício e Fátima Pinho, assim mesmo apresentados por Paulo Jacob (um deles também) na função de maestro de orquestra. Apresentam o seu disco de estreia Amor Dimensional, sob a chancela da Omnichord Records de Hugo Ferreira. Tudo tornado possível pela casa que acolhe e viu nascer este orquestra — APCC, Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra. Outros músicos e grupos, em plena generosidade, cederam partes da suas composições, e importa relembrar tudo sem (esperamos) esquecer ninguém: Ana Deus, Bruno Pernadas, Cabrita, Carincur, Coro das Ninfas do Lis, Dada Garbeck, First Breath After Coma, Gala Drop, Lawrence Foster e Joana Carneiro (Coro e Orquestra Gulbenkian), Joana Gama, Joana Guerra, João Doce, José Valente, Lavoisier, Mano a Mano, Michel Corboz, Moullinex, Pedro Marques, Pisco, Ricardo Martins, Rita Redshoes, Salvador Sobral, Samuel Martins Coelho, Selma Uamusse, Senhor Vulcão e Surma. Sintam-se todas e todos neste palco, como em disco. 

O dia é duplamente especial: comemoração do 25 de Abril de 1974 e noite de lançamento do primeiro disco desta muito boa gente. Passaram dez anos desde a sua criação como colectivo. Muito por uma prática diária musical terapêutica, aqui com a música a assumir uma das suas funções primordiais — o estímulo emocional. Contudo, e a prova disso com este concerto, é que essa ocupação pode bem extravasar o espaço de uma instituição diária até uma sala de espectáculo. Soubemos de outro grandioso exemplo, aquando da abertura do OUT.FEST’24, com A Viagem d’Os Heróis Indianos Romanos Africanos, num palco de gentes com elevada expressão neurodivergente. Fazendo parte da Associação Nós, uma IPSS barreirense que desenvolve actividade nos campos da integração e inclusão social, nas franjas da comunidade. Aí há um mentor chamado Alan Courtis, músico e fundador da banda Reynols, onde alinhava um membro neurodivergente e que fez capa da The Wire. Mas aqui, nestes Ligados às Máquinas há um imprescindível mentor Paulo Jacob, que também prossegue com 5ª Punkada, onde encontramos também Fátima Pinho, presente nos dois grupos de música da APCC.

A Oficina Municipal do Teatro é vizinha da APPC — é só atravessar a rua para ir de um lugar ao outro, e é isso mesmo que vimos acontecer por parte dos que iam entrar em palco. Em concerto, como em disco, alinham-se temas do ciclo do dia, desde o “Amanhecer” ao “(Dormir) em direcção ao sonho”. Nesse primeiro tema entrou-se no encanto súbito de ver acontecer este sonho bem real. A matriz da música é disparada e as vozes dos outros e outras ouvem-se aos toques sincopados dos músicos (de) Ligados às Máquinas. Há comandos diversos: teclas, bocais, leitor de pulso, aro, manípulos de mãos esquerda ou direita. Quando as vozes são únicas, reconhecemos que aqui há Sobral e Uamusse, como nesse tema de arranque. Contudo, depressa se dá conta que sem estas heroínas e heróis, diante de nós público, a música não teria lugar nem era esta outra que se ouve. Segue-se “Acordar p’rá vida” e “Mexe-te, preguiçoso” que logo na escolha dos títulos aponta para o sentido com que esta música se torna dimensão, de amor, como em título do álbum. 

Passou a haver mais luz de palco para Fátima, afinal tem diante de si uma estante de “partituras”, uma vez terminada — “Tarda, sim… tarda, não” —, partindo dos samples de Joana Gama, Mano a mano e Salvador Sobral. “Algazarra fabril” ilustra bem o processo de grande folia em que se torna o som, e imaginamos o desfrutar emocional interior de cada um dos músicos. É sobretudo a isto que se assiste: a uma emotiva sensação de transporte do mais profundo estado emocional para o exterior de cada um. Para isso são fundamentais as máquinas, esta ligação a elas. Lembramos outros na condição, como Stephen Hawking, a quem agradeceremos para sempre a visão partilhada do cosmos. Sem esses (estes) dispositivos interlocutores, seríamos eternamente mais empobrecidos: no saber, no sentir e na fruição. 

Com “Carne ou Peixe?” há uma certeira voz que repete: “Estragado?” Faz pensar, por instantes: Mas afinal quem anda aqui estragado, quem é? Quem anda aqui por andar, em modo avariado de todo? Quem? Há uma languidez sumptuosa na narrativa, feita de trovoada nesta alquimia dos sons. Distingue-se o sopro da palheta de Cabrita entre os trechos disparados, mas torna-se impactante o tempo marcado pelo certeiro disparo do címbalo, através do toque no aro de Pedro. Depois dessa força turbulenta, com “Sopa à Lavrador”, seguiu-se o momento de “(Dormir) em direcção ao sonho”, contudo um certo sonho estava quase a dar por final esse tornado realidade. Ainda voltaram, sem sair das cadeiras (de rodas) nem do lugar de palco para repetir o que nunca se repete com “Mestre preguiçoso”. 

“O poder da música e da criação participativa” tal e qual como nas palavras inscritas na contra-capa em disco eternizam, trazendo uma emotiva e generosa forma de celebrar a liberdade. Não deveria haver expressões algumas silenciadas, nem quando condicionadas em corpos “presos”, cujas mentes brilham alto, criativas na emoção e na música. Vendo a música de Ligados às Máquinas, torna-mo-nos melhores connosco, pela reflexão e valorização, por essa dimensão no amar.


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